segunda-feira, 1 de março de 2010

A Catástrofe no Chile e o Capitalismo de desastre

Depois do Haiti, temos um novo exemplo do “capitalismo de desastre” no Chile. Como salientou a jornalista Naomi Klein, a forma de reprodução do capitalismo contemporâneo se dá por ataques orquestrados à esfera pública no auge de acontecimentos catastróficos – naturais ou não - sendo eventos “estimulantes” para novas oportunidades de mercado, de exército ou de neutralizar a ordem pública em desordem. Somente numa crise catastrófica torna o que seria politicamente inaceitável em politicamente inevitável.



A presidente Michelle Bachelet decretou hoje o "estado de exceção de catástrofe" para as zonas de Maule e Biobio, por 30 dias, para "garantir a ordem pública e acelerar a entrega de ajuda". Neste domingo o recém-eleito presidente Sebastián Piñera também disse que "quando temos uma catástrofe desta magnitude, sem água ou luz, a população, com certa razão, fica angustiada e perde o sentido da ordem pública”... diante desta situação, “temos que recorrer a todos os recursos, e nossas Forças Armadas estão preparadas para contribuir em tempo de crise e de catástrofe”. A lição é: quando o povo perde "o sentido da ordem pública" é necessário acionar o Exército para "contribuir internamente" nesse momento criado pela "catástrofe". Engraçado notar a semelhança entre esse mecanismo de suspensão da ordem por uma catástrofe com a instauração de um estado de exceção.



No artigo 48º da Constituição de Weimar se estabelecia que “se, no Reich alemão, a segurança e a ordem pública estiverem seriamente conturbados ou ameaçados, o presidente do Reich pode tomar as medidas necessárias para o restabelecimento da segurança e da ordem pública, eventualmente com a ajuda das forças armadas. Para esse fim, ele pode suspender total ou parcialmente os direitos fundamentais...”. O que significa estar seriamente conturbando ou ameaçando a ordem pública? Conturbando e ameaçando a quem? Nos últimos anos da República de Weimar, o estado de exceção foi integral. Hitler não teria tomado o poder na Alemanha se não houvesse um regime de ditadura presidencial e a suspensão do funcionamento do Parlamento por quase três anos. Logo após subir ao poder, Hitler promulgou o Decreto para a proteção do povo e do Estado onde suspendeu a Constituição de Weimar do que dizia respeito às liberdades individuais. Como esse decreto nunca foi revogado, com o comando de Hitler, a Alemanha nazista ficou doze anos em estado de exceção (com a promessa que duraria mil anos). Como dizia o brilhante Carl Schimitt, a importância do estado de exceção se encontra exatamente no seu estatuto de exceção. Por isso, numa linguagem quase lacaniana ele escreve que,



A filosofia da vida concreta não pode subtrair-se à exceção e ao caso extremo, mas deve interessar-se ao máximo por ele. Para ela, a exceção pode ser mais importante do que a regra, não por causa da ironia romântica do paradoxo, mas porque deve ser encarada com toda a seriedade de uma visão mais profunda do que as generalizações das repetições medíocres. A exceção é mais interessante do que o caso normal. O normal não prova nada, a exceção prova tudo; ela não só confirma a regra, mas a própria regra só vive da exceção. Na exceção, a força da vida real rompe a crosta de uma mecânica cristalizada na repetição.



Em síntese podemos dizer que hoje as catástrofes naturais são belas “desculpas” para impor um reordenamento a partir da violência excessiva do Estado contra os “desbalanços” do capitalismo em crise.



Alain Badiou enfatiza que a representação do Estado em relação à sociedade, por exemplo, sempre envolve um excesso. Dessa forma, a idealização liberal da transparência do Estado não passa de um sonho já que a própria lógica do Estado é de intervenção excessiva sobre aquilo que representa. Slavoj Zizek ainda acrescenta que não existe apenas o excesso do Estado em relação à multidão que ele representa, mas também existe um excesso do próprio Estado em relação a si mesmo. Para seu funcionamento “normal” o Estado excede a si mesmo, mesmo que esse imperativo deva permanecer ignorado – o fetiche da democracia é que o processo democrático pode controlar esse excesso. Dessa forma, resumidamente, o estado de exceção é o excesso político constitutivo necessário para que se torne possível reproduzir a estrutura capitalista de poder democrático historicamente – é a representação por excelência da política moderna. A pergunta que fica é: quando o estado de exceção é um imperativo?



Acredito que a conclusão radical a ser tirada desses novos movimentos do capitalismo de desastre é que sob o estado de exceção se busca assegurar a impossibilidade de uma possível suspensão ainda mais radical e qualitativamente diferente seja construída. O estado de exceção é – seja por catástrofes naturais ou não -, o assegurador último que o Ato revolucionário falhe. Portanto talvez tenhamos que nos acostumar a vivemos numa “Nova Orleans Global” e não glorificarmos a "fukuyamização" da vida cotidiana.

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