quarta-feira, 3 de março de 2010

Militância na era do capitalismo global. Ainda é possível?

Numa era em que o capitalismo-democrático global é apresentado como nosso destino inexorável e que, assim, nos adaptamos a ele ou somos esmagados pelo ritmo da história, qual é o papel do militante?

Primeiramente clamo que necessitamos urgentemente de uma nova disciplina social. O recado de Rosa Luxemburgo é mais válido do que nunca: “com homens preguiçosos, levianos, egoístas, irrefletidos e indiferentes não se pode realizar o socialismo. A sociedade socialista precisa de homens que estejam, cada um em seu lugar, cheios de paixão e entusiasmo pelo bem-estar coletivo”. Assim, do militante socialista se impõem uma coragem e perseverança baseada numa clareza interior que não coloca em dúvidas a causa pela qual se está lutando. Por isso o militante pode se definido sumariamente por uma autodisciplina voluntária voltada a uma seriedade moral e ao senso de dignidade e responsabilidade etico-política e social por “pensar como massa”. Esse pensar, é claro, não diz respeito a suposições supersticiosas individuais, mas do contato ativo-social de criar e expandir a convicção social de que a participação política de todos nas decisões que permeiam as questões fundamentais da vida em sociedade não são apenas possíveis como necessárias. A natureza associativa do militante busca demonstrar que a força coletiva supre as fraquezas individuais num trabalho de organização permanente para colaborar em ações concretas para que os grupos sociais conjuguem seus esforços visando objetivos comuns - tanto negativos em relação a ordem existente como positivos no sentido de serem mediações a uma nova sociedade. Lembremos de Antonio Gramsci, militante marxista inteiramente dedicado a seu projeto social, mártir e paradigma de ação política, prática crítica e prática intelectual, com um legado que enriquece nossa humanidade.

Como dizia Gramsci, “odeio os indiferentes porque me provocam tédio as suas lamúrias de eternos inocentes. Peço contas a todos eles pela maneira como cumpriram a tarefa que a vida lhes impôs e impõe quotidianamente, do que fizeram e sobretudo do que não fizeram. E sinto que posso ser inexorável, que não devo desperdiçar a minha compaixão, que não posso repartir com eles as minhas lágrimas. Sou militante, estou vivo, sinto nas consciências viris dos que estão comigo pulsar a atividade da cidade futura que estamos a construir. Vivo, sou militante. Por isso odeio quem não toma partido, odeio os indiferentes”. Como salienta Slavoj Zizek, “não existem espectadores inocentes nos momentos cruciais de decisão revolucionária, porque, em tais momentos, a própria inocência – que isenta de tomar decisão, que me autoriza a preceder como se a luta que estou testemunhando realmente não me concernisse – é a mais alta traição. Quer dizer, o medo de ser acusado de traição é a minha traição, porque, mesmo que “nada tenha feito contra a revolução”, esse próprio medo, o fato de que ele surja dentro de mim, demonstra que minha posição subjetiva é externa à revolução, que eu vivo a “revolução” como força externa que me ameaça”. Por isso, “todo revolucionário autentico tem de assumir a atitude de abstrair completamente, e mesmo desprezar, a imbecil particularidade de sua própria existência imediata”. Aqui a rejeição do hábito é crucial: em muitas situações políticas as escolhas são dadas sob a condição de que façamos a escolha certa. Por isso o militante é politicamente extraparlamentar ao suspender a ordem legal como o horizonte da ação revolucionária. Não existem “garantias” para a ação ético-política do militante. A busca por “garantias” (as condições ainda não estão maduras, não temos o apoio da maioria do povo, é cedo demais para a revolução, a revolução não será democrática o suficiente, etc.) é o medo do abismo do agir.

A militância é correlata ao processo de assumir solitariamente a responsabilidade e o compromisso de, nos termos de Robespierre, ser (em conjunto com outros militantes) “meros instrumentos da Vontade do Povo”. É uma decisão soberana (de arriscar a vida, matar ou ser morto) que o grande Outro não pode acobertar. Ao mesmo tempo, a autonomia do militante e sua responsabilidade moral impossibilitam a transferência de sua culpa hesitante para alguma figura do grande Outro. Assim, em termos lacanianos, o militante se autoriza por si mesmo. Diferentemente dos “auto-heróis” com seus depoimentos “históricos-políticos” cheios de mistificação ideológica e mentira política, Gramsci aponta na função do militante a dedicação ativa à vida prática como construtor, organizador e mobilizador permanente das organizações de classe.

Concluo dizendo que o militante se considera constantemente morto de antemão. Vai para suas batalhas sem nenhuma pretensão de retornar. Somente uma posição tão radical pode romper com o marasmo da forma política do capitalismo contemporâneo.

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