A estratégia socialista numa ampla escala de tempo tem como desdobramento construir o mundo do trabalho nas mãos dos trabalhadores livremente associados. As táticas, devido seu caráter mais imediato de práxis, devem estar articulada dialeticamente com essa estratégia, postulando um caráter cumulativo, agregador e universalista rumo à construção social de massas dessa estratégia. Como dizia acertadamente Lukács, sem estratégia não há tática.
Essa distinção é correlata a conhecida diferença entre alvo e mira postulada por Jacques Lacan. Enquanto o alvo é o objetivo que a pulsão circula, a mira é a continuação sem fim da própria circulação. O alvo é o destino final enquanto a mira é o modo com que intencionamos o processo para atingir o alvo. Em outras palavras, o alvo é a estratégia e a mira é as táticas. Mas porque utilizo o plural para as táticas? De Lênin a Che, de Mao a Fidel, de Ho Chi Mihn a Trotsky, de Gramsci a Rosa Luxembugo temos uma unanimidade: centralização estratégica e descentralização tática numa reciprocidade dialética.
Entrementes, qual seria a estratégia correta da esquerda hoje? Alain Badiou está certo: a ação política não pode ter como objetivo tático o anti-capitalismo. Na política lidamos contra agentes concretos e suas ações e não contra o anônimo “sistema”. Entretanto, se o anti-capitalismo não é a tática correta, ela deve ser o horizonte último de toda atividade.
A tática hegemônica – dos partidos comunistas, socialistas e social-democratas – sustentava a importância do Estado ao menos como instrumento necessário na transição a uma ordem social superior. István Mészáros constata a necessidade urgente de uma nova teoria de transição e uma remodelação da prática anticapitalista. O regime parlamentar, longe de significar uma ameaça ao capitalismo, é uma forma do mesmo legitimar-se. O capital controla todos os aspectos do “sociometabolismo” e consegue lidar com a esfera política como se fora autônoma. Partidos trabalhistas e socialistas exercem sua contestação desde que respeitem o domínio substantivo do capital. Numa perspectiva similar, Slavoj Zizek acentua que a democracia está cada vez mais mecânica. Precisamos lutar com as coisas que sabotam a democracia antes de pensar em novas formas de revolução. Paradoxalmente, essa luta se dá num tempo em que a democracia é o horizonte último da esquerda por mais que seja hoje o principal fetiche político, a rejeição dos antagonismos sociais básicos: na situação eleitoral, a hierarquia social é momentaneamente suspensa, o corpo social é reduzido a uma multidão pura passível de ser contada, e aqui também o antagonismo é suspenso. Radicalizando um pouco mais essa posição, vale à pena fazer uma longa citação do mesmo Slavoj Zizek:
“Fidelidade ao consenso democrático” significa a aceitação do atual consenso liberal-parlamentar, que impede qualquer questionamento sério da forma como essa ordem democrático-liberal é cúmplice nos fenômenos que ela oficialmente condena, e é claro, qualquer tentativa séria de imaginar uma ordem sociopolítica diferente. Em suma, significa: diga e escreva o que quiser – desde que não se questione ou perturbe, na prática, o consenso político dominante. [...] No momento em que questionamos seriamente o consenso liberal existente, somos acusados de abandonar a objetividade científica em troca de posições ideológicas ultrapassadas. Esse é o ponto “leninista” do qual não se pode nem se deve abrir mão: hoje, a verdadeira liberdade de pensamento significa liberdade para questionar o consenso democrático-liberal “pós-ideológico” dominante – ou não significa nada”.
Para Alain Badiou, a política envolveu sempre a articulação de três momentos: o povo; as organizações políticas e sociais; e o Estado. O povo dividir-se-ia em tendências ideológicas mais ou menos ligadas a posições de classe, status social etc. Essas tendências pugnariam por objetivos conflitantes entre si, e seriam representadas por organizações, dentre as quais se destacariam os partidos políticos – únicos a terem representação direta no estado. Esses últimos disputariam uns com os outros para dominarem o estado, a fim de efetivar os objetivos que representam. Têm-se, então, quatro orientações básicas: revolucionária, fascista, reformista e conservadora. As duas primeiras acreditam que o conflito político implica algum componente de violência; as duas restantes assentam o conflito dentro das regras institucionais. Mas todas têm em comum o aceite da representação. A forma típica de como vêm sendo articulados esses momentos na política coetânea é o parlamentarismo. Mas o parlamentarismo é politicamente conservador, exclui as rupturas, constituindo-se na captura da política pelo Estado – o qual rege o consenso da política como representação. O parlamentarismo expulsa do jogo os revolucionários. Em sua conclusão Badiou propõe algumas idéias: pensar a política independentemente da questão do Estado, abandono da representação, e um investimento na corrosão do estado a partir de “rupturas subjetivas” no povo: 1) Independência total do processo político organizado em relação ao Estado. O que implica um pensamento prático em ruptura com o consenso constitucional e formal. 2) Abandono da idéia de representação. Uma política não representa ninguém. Ela só se autoriza por si mesma. 3) Concepção da ação militante independente de toda perspectiva de ocupação do estado trata-se de produzir no povo rupturas subjetivas. E assim concretizar, aqui e agora, o definhamento do Estado. 4) A organização política não é um partido, pois todo partido é determinado pelo Estado. A política deve ser uma “política sem partido”.
Sem dúvidas essa estratégias são muito controversas. Entretanto, num momento de crise (do capitalismo, da política, da organização social, da esquerda, etc) como vivemos atualmente abres-se uma oportunidade histórica para se repensar profundamente a transição social na construção de uma alternativa estratégica radical em novas bases organizacionais, de consciência e ação. É uma lacuna que emerge entre o “movimento real” e a articulação com uma alternativa viável. Se essas estratégias são válidas para a superação do capital no Século XXI ou não, é a práxis cotidiana a única verdadeira pedra basilar de julgamento.
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