sábado, 27 de março de 2010

Réquiem de um site: contra o oportunismo burocrático

O bizarro episódio do “roubo do site” do PSOL efetuado pela cúpula liderada pela Sra. Heloísa Helena nos dá diversas lições. Ao mesmo tempo em que é difícil encontrar justificativas minimamente racionais para tal ação, temos que procurar entender esse seqüestro do site como um sintoma de algo muito mais profundo – que tende a se manifestar de forma ainda mais intensa até a Conferência Nacional. Mas antes de tudo, o que é um sintoma? Para Lacan, o sintoma emerge diante de um encontro com o real, com o impossível de suportar, que faz a fantasia vacilar, ameaçando deixar entrever aquilo que ela tem por função velar: a castração do Outro. Neste caso, esse sintoma emerge com o encontro com a possibilidade de que o Plínio seja realmente o candidato a presidência pelo PSOL. O que era impossível – lembrando que Plínio só teve apoio de 8% no início de sua campanha – está se materializando, para o horror da cúpula liderada por Sra. Heloísa Helena.


Como resposta, estamos vendo diversos atos “sem sentido” ou simplesmente injustificáveis. Temos um belo exemplo do que seria justificar o injustificável: “justificando” o ato de mudar o controle da página, modificar senhas e invadir o e-mail da Secretaria Geral, Haldor Omar disse que "não invadi nem alterei, isso não é verdade, está tudo documentado no registro do procedimento. Fiz isso a pedido de um setor do PSOL, que solicitou que eu fizesse a transferência técnica para o seu controle. Não foi feita de forma arbitrária, fui contratado para isso". Tudo bem. Quer dizer então que o roubo do site foi uma ação deliberada e que passou pela contratação de um profissional. Como disse Engels uma vez, os oportunistas honestos são os mais perigosos!


Parafraseando Lênin, que o combate ao lulismo democrata é inseparável do combate ao oportunismo burocrático no PSOL – tanto nacionalmente, como estadualmente e na dimensão municipal. Vivemos isso no seio do PSOL. Atentemo-nos!

sexta-feira, 26 de março de 2010

O PSOL está rachando?

As últimas notícias são, ao mesmo tempo, intrigantes e um tanto quanto ridículas. Quem quer convencer o grupo de Heloísa Helena dizendo que lutam por democracia interna quando já vimos diversos exemplos em que ela se posiciona como um cacique do partido? Heloísa Helena centraliza o partido e, assim, quando algo sai das rédeas de seu desejo é necessário utilizar esse poder centralizador. Vemos isso agora em relação ao “roubo do site” do PSOL efetuado pelo grupo executivo composto por Heloísa Helena, Edilson Silva, Elias Vaz, Jefferson Moura, Mario Agra, Pedro Fuentes e Roberto Robaina.



Numa nota explicativa esse grupo diz que roubaram o site porque ele estava sendo utilizado de “forma parcial por uma fração da direção do PSOL que apóia a pré-candidatura de Plínio Arruda”. Dessa forma, “respeitando sempre nossa pluralidade interna, com isonomia e proporcionalidade” “entendemos ser melhor garantir a imparcialidade de nosso site, tirando-o do ar e não colocando neste nenhum conteúdo, para que não cometamos os mesmos desvios da fração da direção que apóia a pré-candidatura de Plínio de Arruda”. O absurdo dessa legitimação barata é pavorosa. Querem dizer que por o site ser “parcial”, aqueles que são “imparciais” no partido simplesmente tomam o site “garantir sua democracia”. Essa ação é extremamente perversa!



O perverso é aquele que clama um acesso direto a alguma figura da Verdade suspendendo a ambigüidade da linguagem. O que isso quer dizer? Ao se proclamar acima das “frações” do partido, ou que tem um ponto de vista neutro dos fatos, ou que “sabe qual é o melhor para o partido” torna-se assim - com todo o poder centralizado – onipotente para fazer (quando as eleições internas proclamam a derrota de seu candidato) o que quiser, inclusive roubar o site do PSOL chamando a fração que apóia o Plínio de oportunista. Em outras palavras, podem passar por cima do partido ao proclamar o que é “democracia interna” pelos “desvios” da fração que apóia Plínio de Arruda.



Bem, o que sabemos é que a cúpula majoritária não irá simplesmente aceitar que Plínio seja nosso candidato a presidência sem utilizar seus mecanismos de poder centralizador. Serão muitas manobras para “impor a voz da maioria” - seja flertando com Marina, roubando site, distribuindo dados falsos das plenárias. Devemos esperar algo ainda pior para a Plenária Nacional. Atentemo-nos!



Espero que os companheiros do MTL e do MÊS não fiquem apenas olhando essa barbárie estalinista. Todos somos contra o oportunismo e o cretinismo parlamentar!



Pela reconstrução do Partido Socialismo e Liberdade, para além dos caciquismos e de um programa nacional-desenvolvimentista a lá Heloísa Helena!



Plínio Presidente!

quinta-feira, 25 de março de 2010

Socialismo no Século XXI?

Vivemos tempos apocalípticos. Grande parte das antigas estratégias da esquerda não passa de demandas histéricas e completamente anacrônicas: “mais keynesianismo”, “Bem-Estar Social para todos”, “pleno emprego”, etc. Além destas demandas impossíveis, a esquerda ainda se encontra sob o conto da sereia da onisciência dos partidos revolucionários, o modelo leninista par excellence. A idéia arqui-política dos partidos, isto é, a idéia de uma inteligência política que concentra as condições essenciais da transformação, encontra-se numa crise já que não responde mais a atualidade do projeto socialista do século XXI. Como bem escreve Slavoj Zizek: "é verdade que a esquerda de hoje está passando pela experiência devastadora do fim de toda uma era para o movimento progressista, uma experiência que a obriga a reinventar as coordenadas básicas de seu projeto. Contudo, foi uma experiência exatamente homóloga que deu origem ao leninismo".

Portanto, a verdadeira pergunta hoje é: qual é a estratégia do socialismo do século XXI? Sem respondermos a essa pergunta urgente a nossa prática imediata (tática) é desnorteada ou se orienta por estratégias que não dizem respeito a nossa atualidade histórica.

Palpito da seguinte forma: não existirá socialismo no século XXI se não for construído por uma pluralidade socialista. A época de um agente político primordial está fadado ao fracasso. Hoje temos uma explosão de agentes transformadores. A maior dificuldade é a reciprocidade dialética entre esses agentes que incluem movimentos sociais e populares, coletivos políticos, partidos de esquerda, sindicatos, etc.

Existem organizações institucionais e extra-institucionais. Por não conseguirem manter uma reciprocidade dialética, uma tem medo do outro (por mais que no Brasil se aceite inconscientemente a progressiva institucionalização petista como natural). Assim a como a luta dos partidos deve ser a não institucionalização do movimento, a luta dos movimentos é extremamente restrita quando não dão diretrizes de transformação política voltada aos partidos. Assim como existe um grande ceticismo em relação aos partidos – fetichismo do movimento – muitos partidos se consideram o horizonte último da transformação social. Essa é uma dialética que se encontra ainda cortada e que precisa construir laços de reciprocidade – para além do inconsciente petista. Por que a esquerda deveria respeitar sempre e incondicionalmente as regras formais do jogo democrático? Por que não deveria, em algumas circunstâncias, pelo menos, questionar a legitimidade do resultado de um procedimento democrático formal?

Penso que estamos num momento dramático na esquerda. Sua crise não diz respeito apenas ao declínio dos movimentos marxistas em todo o mundo, mas a falta de uma estratégia numa escala de tempo extensa que consiga lidar com os enormes desafios que temos pela frente. Essa estratégia passa por uma nova concepção de partido, pela superação do horizonte democrático-popular, pelo fortalecimento dos agentes extra-institucionais, novas formas de organização de base e, não menos importante, uma luta ideológica rumo a reconstrução do projeto de emancipação no século XXI.

sexta-feira, 19 de março de 2010

A Catástrofe Naturalizada das Demissões no Chile

Como havia escrito no texto A Catástrofe no Chile e o Capitalismo de desastre, a forma de reprodução do capitalismo contemporâneo se dá por ataques orquestrados à esfera pública no auge de acontecimentos catastróficos – naturais ou não - sendo eventos “estimulantes” para novas oportunidades de mercado, de exército ou de neutralizar a ordem pública em desordem. Somente numa crise catastrófica torna o que seria politicamente inaceitável em politicamente inevitável. Talvez o melhor exemplo dessa lógica no Chile seja o aumento extrondoso das demissôes após o terremoto. Como noticiou recentemente a Telesur, ao menos 6.111 pessoas ficaram desempregadas na primeira quinzena de março depois do potente terremoto do passado 27 de fevereiro, os cidadãos mais afetados por este caso fortuito foram os de Biobío (centro-sul) Chile, uma das regiões mais afetadas pelo desastre natural; cifra representa 3000% de demissões. Engraçada foi a declaração da ministra do Trabalho, Camila Merino, que disse que "é mau que as pessoas se aproveitem para despedir trabalhadores, usando esta causa sem pagar indenizações". A ministra não entendeu nada ainda: é exatamente porque essa causa é deslocada do capitalismo que as empresas podem se utilizar desse mecanismo de demissão. Se os trabalhadores ganhassem mais com as catástrofes elas não teriam sua funcionalidade para o capitalismo-destrutivo contemporâneo. Para os capitalistas essas catástrofes - naturais ou não - são uma benção.

terça-feira, 16 de março de 2010

Estratégia e Tática no Capitalismo Contemporâneo

A estratégia socialista numa ampla escala de tempo tem como desdobramento construir o mundo do trabalho nas mãos dos trabalhadores livremente associados. As táticas, devido seu caráter mais imediato de práxis, devem estar articulada dialeticamente com essa estratégia, postulando um caráter cumulativo, agregador e universalista rumo à construção social de massas dessa estratégia. Como dizia acertadamente Lukács, sem estratégia não há tática.

Essa distinção é correlata a conhecida diferença entre alvo e mira postulada por Jacques Lacan. Enquanto o alvo é o objetivo que a pulsão circula, a mira é a continuação sem fim da própria circulação. O alvo é o destino final enquanto a mira é o modo com que intencionamos o processo para atingir o alvo. Em outras palavras, o alvo é a estratégia e a mira é as táticas. Mas porque utilizo o plural para as táticas? De Lênin a Che, de Mao a Fidel, de Ho Chi Mihn a Trotsky, de Gramsci a Rosa Luxembugo temos uma unanimidade: centralização estratégica e descentralização tática numa reciprocidade dialética.

Entrementes, qual seria a estratégia correta da esquerda hoje? Alain Badiou está certo: a ação política não pode ter como objetivo tático o anti-capitalismo. Na política lidamos contra agentes concretos e suas ações e não contra o anônimo “sistema”. Entretanto, se o anti-capitalismo não é a tática correta, ela deve ser o horizonte último de toda atividade.

A tática hegemônica – dos partidos comunistas, socialistas e social-democratas – sustentava a importância do Estado ao menos como instrumento necessário na transição a uma ordem social superior. István Mészáros constata a necessidade urgente de uma nova teoria de transição e uma remodelação da prática anticapitalista. O regime parlamentar, longe de significar uma ameaça ao capitalismo, é uma forma do mesmo legitimar-se. O capital controla todos os aspectos do “sociometabolismo” e consegue lidar com a esfera política como se fora autônoma. Partidos trabalhistas e socialistas exercem sua contestação desde que respeitem o domínio substantivo do capital. Numa perspectiva similar, Slavoj Zizek acentua que a democracia está cada vez mais mecânica. Precisamos lutar com as coisas que sabotam a democracia antes de pensar em novas formas de revolução. Paradoxalmente, essa luta se dá num tempo em que a democracia é o horizonte último da esquerda por mais que seja hoje o principal fetiche político, a rejeição dos antagonismos sociais básicos: na situação eleitoral, a hierarquia social é momentaneamente suspensa, o corpo social é reduzido a uma multidão pura passível de ser contada, e aqui também o antagonismo é suspenso. Radicalizando um pouco mais essa posição, vale à pena fazer uma longa citação do mesmo Slavoj Zizek:

“Fidelidade ao consenso democrático” significa a aceitação do atual consenso liberal-parlamentar, que impede qualquer questionamento sério da forma como essa ordem democrático-liberal é cúmplice nos fenômenos que ela oficialmente condena, e é claro, qualquer tentativa séria de imaginar uma ordem sociopolítica diferente. Em suma, significa: diga e escreva o que quiser – desde que não se questione ou perturbe, na prática, o consenso político dominante. [...] No momento em que questionamos seriamente o consenso liberal existente, somos acusados de abandonar a objetividade científica em troca de posições ideológicas ultrapassadas. Esse é o ponto “leninista” do qual não se pode nem se deve abrir mão: hoje, a verdadeira liberdade de pensamento significa liberdade para questionar o consenso democrático-liberal “pós-ideológico” dominante – ou não significa nada”.

Para Alain Badiou, a política envolveu sempre a articulação de três momentos: o povo; as organizações políticas e sociais; e o Estado. O povo dividir-se-ia em tendências ideológicas mais ou menos ligadas a posições de classe, status social etc. Essas tendências pugnariam por objetivos conflitantes entre si, e seriam representadas por organizações, dentre as quais se destacariam os partidos políticos – únicos a terem representação direta no estado. Esses últimos disputariam uns com os outros para dominarem o estado, a fim de efetivar os objetivos que representam. Têm-se, então, quatro orientações básicas: revolucionária, fascista, reformista e conservadora. As duas primeiras acreditam que o conflito político implica algum componente de violência; as duas restantes assentam o conflito dentro das regras institucionais. Mas todas têm em comum o aceite da representação. A forma típica de como vêm sendo articulados esses momentos na política coetânea é o parlamentarismo. Mas o parlamentarismo é politicamente conservador, exclui as rupturas, constituindo-se na captura da política pelo Estado – o qual rege o consenso da política como representação. O parlamentarismo expulsa do jogo os revolucionários. Em sua conclusão Badiou propõe algumas idéias: pensar a política independentemente da questão do Estado, abandono da representação, e um investimento na corrosão do estado a partir de “rupturas subjetivas” no povo: 1) Independência total do processo político organizado em relação ao Estado. O que implica um pensamento prático em ruptura com o consenso constitucional e formal. 2) Abandono da idéia de representação. Uma política não representa ninguém. Ela só se autoriza por si mesma. 3) Concepção da ação militante independente de toda perspectiva de ocupação do estado trata-se de produzir no povo rupturas subjetivas. E assim concretizar, aqui e agora, o definhamento do Estado. 4) A organização política não é um partido, pois todo partido é determinado pelo Estado. A política deve ser uma “política sem partido”.

Sem dúvidas essa estratégias são muito controversas. Entretanto, num momento de crise (do capitalismo, da política, da organização social, da esquerda, etc) como vivemos atualmente abres-se uma oportunidade histórica para se repensar profundamente a transição social na construção de uma alternativa estratégica radical em novas bases organizacionais, de consciência e ação. É uma lacuna que emerge entre o “movimento real” e a articulação com uma alternativa viável. Se essas estratégias são válidas para a superação do capital no Século XXI ou não, é a práxis cotidiana a única verdadeira pedra basilar de julgamento.

domingo, 14 de março de 2010

2010? Um ano de reviravoltas sociopolíticas?

Gramsci dizia que uma crise se verifica quando a classe dirigente faliu em empreender seu projeto político ou quando as massas superaram sua passividade política e que, mesmo desorganizadas, iniciam um momento de reivindicações espontâneas. Mais do que excludentes, penso que ambas causas mesclam-se e combinam-se na nossa realidade contemporânea. É inegável a falência do projeto econômico neoliberal com a crise financeira internacional acompanhada com a ajuda do Estado da bancarrota capitalista por mais que seu suplemente político de terceira via democrática-liberal ainda esteja em pé – principalmente pela aceitação da esquerda da democracia como horizonte político último.



Neste ano, ainda cheio de surpresas, devemos nos deparar com o escancaramento da crise fiscal do Estado - com o acirramento da repressão estatal (com diferentes mecanismos) contra a espontaneidade das sublevações sociais -, a privatização de outras catástrofes (naturais ou não) e, não menos importante, uma rearticulação da direita rumo à reconstrução de seu poder político diante da falência de seu compromisso de classe. No Brasil o custo da atual crise, tendendo a piorar, necessita de novos mecanismos de controle social da qual as respostas estão presentes todos os dias seja na expansão das milícias público-privadas, assistencialismo social, intervenção econômicas e militar em áreas baseadas no vacilante protetorado estadunidense, etc. Outra etapa ainda mais destrutiva do capitalismo está se iniciando como uma “revolução branda” da qual poucos querem ver diante da falta de perspectivas.



Assim, impõem as forças da esquerda um alargamento do compromisso com as bases sociais e políticas que possibilite não apenas o apoio material, mas também uma solidariedade efetiva que comprometa outros setores dos assalariados apresentando um projeto alternativo de transição que reoriente a estrutura produtiva e a relação das forças políticas que pendem ainda a uma centralização estéril do ponto de vista do trabalho. Os últimos acontecimentos na Grécia já são alarmes profundos do que espera a Europa neste ano. Atentemo-nos para o desenrolar desse processo. Na Tailândia 100 mil maifestantes tomam as ruas. Como dizia Lênin, de nada adianta nos organizarmos depois de um acontecimento. Devemos estar organizados antes dele na sua espreita.

sexta-feira, 12 de março de 2010

O capitalismo ecológico das favelas no Rio

Os favelados sabem que são a “sujeira” ou a “praga” que seus governos preferem que o mundo não veja

Mike Davis

As favelas são o sintoma da globalização capitalista. Elas não fazem parte de um projeto social que deu errado ou um acidente no processo de distribuição de renda e espaço. Pelo contrário, as favelas são o resultado necessário diante do processo de concentração e centralização da riqueza. Vemos, atualmente, portanto, a criação de muros que buscam estabelecer essa lógica semelhante a um apartheid. É um resultado direto da globalização a criação de novos muros – seja entre os EUA e o México, Israel e os palestinos, nos campos de refugiados, nas favelas, alphaviles etc. Não devemos ter medo de propor que a favela é hoje o campo de concentração por excelência da globalização capitalista. Mais de 70% da população urbana no Terceiro Mundo é favelada.



Desde meados de 1970, o crescimento das favelas é maior no hemisfério sul do que a urbanização propriamente dita. Em São Paulo, por exemplo, em 1973 as favelas detinham 1,2% da população enquanto em 1993 detinha cerca de 20%, crescendo na década de 1990 num ritmo de 16,4% ao ano. Na Amazônia, 80% de seu crescimento tem-se dado nas favelas, em sua maior parte privadas de serviços públicos e transporte municipal mostrando a transformação de “urbanização” e “favelização” em sinônimos. Na Ásia essas tendências são semelhantes. Desde o final da década de 1970, após a entrada da China no mundo capitalista, estima-se que lá mais 200 milhões mudaram-se das áreas rurais para as cidades (e espera-se que mais 250 ou 300 milhões sigam-nos nas próximas décadas) fazendo com que, em 2005, já existam 166 cidades chinesas, em comparação com as 9 nos EUA, que tem a população maior que 1 milhão de habitantes.



A favela, ao mesmo tempo dentro e fora do ordenamento espacial da lei, persiste no cotidiano com um excesso de controle por parte do Estado para assegurar principalmente suas bordas, para que os conflitos sociais que possibilitaram a ascensão das favelas não se dissolvam pelo tecido social fazendo com que, ao mesmo tempo, exista um enclausuramento dos favelados. Essa violência aberta ocasiona diversas mortes aleatórias e irresolvidas.



No Rio de Janeiro, para conter a expansão das favelas está sendo colocado em prática um projeto para cercear 10 favelas. Aqui vem a questão: para acabar com a expansão das favelas o remédio dado pelas políticas públicas é a criação de eco-muros que separem radicalmente os favelados. O morro Dona Marta, na zona sul do Rio de Janeiro, está sendo a primeira experiência da criação explícita de um muro que cerceia seus habitantes. Na favela da Rocinha o projeto prevê que o muro terá cerca de 2.800 metros de extensão num total de mais de 11 mil metros de muro que serão erguidos. Esse é o significado Real da democracia-liberal hoje. Durante os preparativos dos Jogos Olímpicos de 1936, os nazistas expurgavam os sem-teto e favelados das áreas de Berlim que talvez fosse avistada por visitantes internacionais. Estamos no mesmo caminho com a Super Copa e Olimpíadas no Rio.



Outro modo interessante de lidar com as favelas no Rio é a compra da primeira aeronave não tripulada da Polícia Federal -a ser utilizada tanto na vigilância da Amazônia quanto no sobrevôo a favelas- que faz parte da frota de 15 aviões controlados à distância, comprada em outubro da empresa israelense IAI (Israel Aerospace Industries) por R$ 345 milhões. O Heron, modelo adquirido pelo governo brasileiro, é usado atualmente por órgãos de defesa de países como EUA, Canadá, Índia e Turquia. No Brasil, esses aviões - cujo nome técnico é Vant (Veículo Aéreo Não Tripulado) - serão usados pela PF para mapear e monitorar todo o território nacional que podem ser comandados por um piloto em terra, que fica numa base a até mil quilômetros de distância, ou voar em missões pré-programadas. Decolagem e pouso são automáticos. Cada aeronave é dotada de aparelhos que permitem captar imagens em alta resolução mesmo quando está a 10 mil metros de altitude (10 mil metros!).



Para não finalizar por aí agora sendo financiado pela concessionária Lamsa o projeto de R$ 20 milhões cobrirá 7,6 quilômetros com estruturas de acrílico, placas de aço, muros de concreto e placas forradas com isopor. Como diz uma agencia de notícias, cada um dos 200 módulos conta com 38 metros de comprimento e 3 metros de altura. O Complexo da Maré será isolado por 1.115 metros de barreiras na altura da Vila dos Pinheiros, e no Parque da Maré a proteção acústica terá 1.080 metros de placas de concreto armado e 220 metros de placas de acrílico, principalmente nos trechos residenciais. As barreiras também vão separar os moradores dos conjuntos habitacionais degradados da Cidade de Deus dos carros que trafegam na Linha Amarela (mas não problema, a prefeitira do Rio irá fazer o treinamento de 160 líderes comunitários em desenvolvimento sustentável).



Entrementes, o processo de triagem capitalista já começou e, para continuar funcionando, precisa da crescente máquina do Estado. A produção crônica de favelas também diz respeito ao enxugamento da produção capitalista que não precisa de grande parte da população trabalhadora jogando-os, normalmente sem volta, a uma completa exclusão social. Entretanto, as favelas são um dos poucos “lugares factuais autênticos” da sociedade atual já que são, literalmente, uma coleção dos que não fazem “parte de parte alguma” e que, conseqüentemente, não tem nada a perder “senão as correntes”. São os elementos excedentes da sociedade em que a lei policial pode utilizar de forma discriminatória o uso e a funcionalidade de suas ações repressoras. Por isso a necessidade urgente de formas mínimas de auto-organização.

quinta-feira, 11 de março de 2010

SObre a formação de quadros revolucionários hoje - parte 2

Os quadros sabem que é necessário fazer todo o trabalho útil a revolução e que, por exemplo, passar da linha de frente de combate para atividades como recolher lenha tem a mesma importância estratégica. Por isso que, como dizia Ho Chi Mihn, a formação dos quadros deve dar toda a importância necessária à transformação ideológica. É preciso compreender bem os alunos para poder desenvolver suas aptidões e eliminar seus defeitos. É preciso ensinar e inventar. Ensinar é fazer aprender, forjar é desembaraçar o cérebro de seus vícios. Por exemplo: atualmente os nossos quadros são afligidos por um defeito grave: o orgulho e a insolência. É preciso extirpá-lo a qualquer preço. Senão o saber adquirido pelo estudo seria até nefasto. É por orgulho e presunção que os quadros ambicionam as altas funções. Exemplo: um quadro servindo no nível zona se queixará e se desencorajará se a organização transferi-lo para o nível província. Ele considera esta transferência indigna de suas capacidades que deveriam normalmente lhe valer um posto mais elevado! Esta inclinação para os altos postos deve ser extirpada. É necessário fazer todo trabalho útil a revolução, ao partido, ao movimento, etc: não existe trabalho nobre nem trabalho vil.

O recado de Rosa Luxemburgo é mais válido do que nunca: “com homens preguiçosos, levianos, egoístas, irrefletidos e indiferentes não se pode realizar o socialismo. A sociedade socialista precisa de homens que estejam, cada um em seu lugar, cheios de paixão e entusiasmo pelo bem-estar coletivo”. Assim, do militante socialista se impõem uma coragem e perseverança baseada numa clareza interior que não coloca em dúvidas a causa pela qual se está lutando. Por isso o militante pode se definido sumariamente por uma autodisciplina voluntária voltada a uma seriedade moral e ao senso de dignidade e responsabilidade etico-política e social por “pensar como massa”. Esse pensar, é claro, não diz respeito a suposições supersticiosas individuais, mas do contato ativo-social de criar e expandir a convicção social de que a participação política de todos nas decisões que permeiam as questões fundamentais da vida em sociedade não são apenas possíveis como necessárias. A natureza associativa do militante busca demonstrar que a força coletiva supre as fraquezas individuais num trabalho de organização permanente para colaborar em ações concretas para que os grupos sociais conjuguem seus esforços visando objetivos comuns - tanto negativos em relação a ordem existente como positivos (muito mais difíceis) no sentido de serem mediações transitórias rumo uma nova sociedade.

Não é a toa que, como dizia Gramsci, “odeio os indiferentes porque me provocam tédio as suas lamúrias de eternos inocentes. Peço contas a todos eles pela maneira como cumpriram a tarefa que a vida lhes impôs e impõe quotidianamente, do que fizeram e sobretudo do que não fizeram. E sinto que posso ser inexorável, que não devo desperdiçar a minha compaixão, que não posso repartir com eles as minhas lágrimas. Sou militante, estou vivo, sinto nas consciências viris dos que estão comigo pulsar a atividade da cidade futura que estamos a construir. Vivo, sou militante. Por isso odeio quem não toma partido, odeio os indiferentes”. Como salienta Slavoj Zizek, “não existem espectadores inocentes nos momentos cruciais de decisão revolucionária, porque, em tais momentos, a própria inocência – que isenta de tomar decisão, que me autoriza a preceder como se a luta que estou testemunhando realmente não me concernisse – é a mais alta traição. Quer dizer, o medo de ser acusado de traição é a minha traição, porque, mesmo que “nada tenha feito contra a revolução”, esse próprio medo, o fato de que ele surja dentro de mim, demonstra que minha posição subjetiva é externa à revolução, que eu vivo a “revolução” como força externa que me ameaça”. Por isso, “todo revolucionário autentico tem de assumir a atitude de abstrair completamente, e mesmo desprezar, a imbecil particularidade de sua própria existência imediata”. Aqui a rejeição do hábito é crucial: em muitas situações políticas as escolhas são dadas sob a condição de que façamos a escolha certa. Por isso o quadro militante é politicamente extraparlamentar ao suspender a ordem legal como o horizonte da ação revolucionária. Não existem “garantias” para a ação ético-política do militante. A busca por “garantias” (as condições ainda não estão maduras, não temos o apoio da maioria do povo, é cedo demais para a revolução, a revolução não será democrática o suficiente, etc.) é o medo do abismo do agir.
Como dizia Lênin, a partir do momento em que as tarefas eram bem definidas e em que se possuía bastante força tentar realizá-las novamente, os fracassos momentâneos eram apenas um meio já que a experiência revolucionária e a habilidade de organização são coisa que se adquirem. “É preciso apenas desenvolver em nós mesmos qualidades necessárias! É preciso que tenhamos consciência de nossos defeitos, o que, no trabalho revolucionário, já é mais de meio caminho para corrigir”. Estamos neste momento hoje. Assim, como sempre, é necessário aprofundar e ampliar constantemente o trabalho de influencia entre as massas ou se deixa de ser revolucionário. Aqui a importância do quadro militante aprender na escola, nos livros, com outros e, não menos importante, junto das massas.

Meu avô costumava dizer que sem quadros revolucionários a militância social é cega os quadros revolucionários são a expressão de qualidade na quantidade de militância. Por isso que no movimento social, a formação de militantes políticos em coexistência com partidos de experiência histórico-concreta na luta de massas e com o horizonte definido para uma revolução socialista sempre foi o grande desafio, debaixo do dispersionismo, do voluntarismo e espontaneísmo das massas e, de outro lado, o revolucionarismo pequeno-burguês querendo impor-lhes “disciplinas” autoritárias.

Uma vez Che falou que, mesmo correndo o risco de parecer ridículo, o verdadeiro revolucionário é guiado por grandes sentimentos de amor. Seria impossível pensar num militante sem essa qualidade. Entretanto, que amor seria esse? Acredito que essa concepção de amor é muito parecida com a de Jacques Lacan: amor é dar o que não se tem para quem não quer. O militante não se limita a dar, mas recebe, em alguns momentos, muito mais do que aquilo que dá: adquire novas experiências, maturidade política, aprende como vivem nossos camponeses e trabalhadores, novas formas de contato humano, aprende a lidar com o inimigo, etc. Por isso o estímulo do militante não depende do Outro para que regulamente ou ordene sendo um exercício de autodisciplina contínua e sem fim. O fato de que as formalidades da vida militar não adaptarem a militância não exclui a disciplina estrita e informal que nasce da convicção profunda do combate que estamos integrados e que depende de todos. Assim, o intuito do militante é o auto-controle com a consciência de dever com a sociedade que estamos construindo.

A coragem do quadro militante deve ser construída progressivamente e conscientemente em atos cotidianos que sirvam de exemplos-vivos para afinarmos nossos espíritos revolucionários. A coragem é a virtude que se manifesta pela materialização do impossível. Por isso o quadro revolucionário militante se considera constantemente morto de antemão. Vai para suas batalhas sem nenhuma pretensão de retornar. Somente uma posição tão radical pode romper com o marasmo da forma política do capitalismo contemporâneo.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Sobre a formação de quadros revolucionários hoje - parte 1

“A revolução se faz através do homem, mas o homem tem que forjar dia a dia seu espírito revolucionário” Che Guevara

A questão da formação de quadros é urgente em nossos dias. Em tempos que, como diz István Mészáros, “a humanidade não tem uma infinidade de tempo a sua disposição, pois, na realidade, ela é forçada a enfrentar o perigo de potencial auto-aniquilação em razão da aparente incontrolabilidade de seu modo de reprodução sociometabólica sob o domínio do capital”, a forma da ação é, não apenas na época de Che Guevara, mas mais ainda hoje, “uma tarefa inadiável no momento”.

O conceito “quadro” vem da teoria militar francesa onde se designava o conjunto de oficiais que comandavam as tropas. Ou seja, faz parte da estrutura de comando militar em ação. Traduzindo este conceito para a política, é os dirigentes ou as lideranças que conduzem as massas rumo a um objetivo claro. Quando Che Guevara falou de “quadros”, os denominou como “coluna vertebral da revolução”. Significam sustentáculo. Aqueles que garantem mobilidade e funcionamento da estrutura da organização. Por isso precisam ter “alto nível de desenvolvimento político”. Como “alto nível de desenvolvimento político” não se deve entender só o aprendizado da teoria marxista; deve-se também exigir a responsabilidade do indivíduo pelos seus atos, a disciplina que restringe qualquer debilidade transitória e que não esteja em conflito com uma alta dose de iniciativa, a preocupação constante por todos os problemas da Revolução. Para desenvolvê-lo é necessário começar por estabelecer o princípio seletivo na massa, é ali onde é necessário buscar as personalidades nascentes provadas no sacrifício ou que começam agora a mostrar suas inquietudes, e levá-las a escola especiais, ou, na falta delas, para cargos de maior responsabilidade que ponha à prova no trabalho prático.

Como diz Che, um quadro é “um indivíduo que alcança o suficiente desenvolvimento político para poder interpretar as grandes diretrizes emanadas do poder central troná-las suas e transmiti-las como orientação à massa, percebendo, além disso, as manifestações dessa massa com aos seus desejos e motivações. É um indivíduo de disciplina ideológica e administrativa que conhece e pratica o centralismo democrático e sabe avaliar as contradições existentes no método para aproveitar ao máximo suas múltiplas facetas; quem sabe praticar, na produção, o princípio da discussão coletiva e responsabilidade única; cuja finalidade está provada e cujo valor físico e moral desenvolveu-se no compasso de seu desenvolvimento ideológico, de tal maneira que está sempre disposto a enfrentar qualquer debate e responder até com sua vida pela boa marcha da Revolução. É além disso, um indivíduo com capacidade de análise própria, o que lhe permite tomar decisões necessárias e praticar a iniciativa criadora de modo que não se choque com a disciplina. O quadro, pois, é o criador, é um dirigente de alta estatura, um técnico de bom nível político que pode, raciocinando dialeticamente, levar adiante seu setor de produção ou desenvolver a massa desde o seu posto político de direção”. Como diz Ademar Bogo, “se a organização é de natureza revolucionária, os quadros tenderão a buscar formas de enfrentar os inimigos, acumular forças, elevar o nível de consciência das massas e a multiplicar quadros para assumirem as tarefas cada vez mais difíceis dentro do processo revolucionário que se vai construindo ... a organização é sempre, mais do que uma referência política, ela ganha status de lugar, onde pensamos, planejamos, atuamos e convivemos coletivamente. Esta é a melhor escola. A organização e a participação voltadas para os desafios, se constituem na referência básica para a multiplicação de quadros. Mas estes não saem todos iguais como em uma linha de montagem. Cada momento histórico imprime características novas na conduta e natureza dos quadros, precisamos estar atentos para manter vivo o espírito revolucionário em cada período”. Aqui a necessidade de quadros disciplinados, coerentes, virtuosos com capacidade de propor questões e saídas de fácil entendimento. Que saibam se comunicar sem fadigar junto as massas, que estas sempre queiram ouvir mais um pouco e sintam certo desapontamento quando se deixa de falar.

Conhecer a formação dos quadros não é uma tarefa fácil. Para ter êxito nessa tarefa é necessário conhecê-la muito bem. Por isso, a primeira pergunta é: quem é o formador de quadros? O formador de quadros nas organizações populares deve ser um modelo do ponto de vista ideológico, moral e de seus métodos de trabalho. O formador de quadros deve sempre aprender. Como dizia Lênin, devemos “aprender, aprender e ainda aprender sempre”. Ou ainda, segundo Ho Chi Mihn, os quadros devem estudar para se corrigir ideologicamente: entregar-se à revolução com ardor, é elogiável. Mas enquanto não se tem ainda idéias exatamente revolucionárias, é necessário estudar, para retificar. É somente quando a ideologia é justa que a ação é isenta de erro e que se pode levar em bom termo sua tarefa revolucionária. Deve-se também estudar para cultivar a moral revolucionária: é necessário possuir as virtudes revolucionárias, saber devotar-se ate o sacrifício pela revolução, para poder dirigir as massas e conduzir a revolução à vitória. Estudar para ter confiança: confiança na Organização, no povo, no futuro da nação, no futuro da revolução. Estudar para agir: o estudo e a ação devem-se acompanhar. Não há estudo útil sem ação. Não há ação que tenha bom êxito sem estudo. Por isso que um quadro procura sempre a auto-educação.

O que é preciso ensinar o formador de quadros?

Teoria. Não basta conhecer a teoria marxista para apenas falar sobre ela, isso é, sem aplicá-la na transformação revolucionária. Aperfeiçoa-se a teoria ao colocá-la em ação. Assim como agir sem teoria é como andar numa floresta escura com os pés amarrados, teoria sem a verificação prática-coletiva não tem utilidade alguma na transformação social. Muitos consideram a teoria uma perda de tempo, mas, ao contrário, ela economiza muito tempo de práticas sem sentido permitindo tomar medidas justas e além de aplicá-las corretamente por ajudar a compreender a sociedade, o movimento, a organização popular, a estratégia, as táticas, etc. Como diz Che, se não somos “teóricos”, também não podemos ser “ignorantes”.

Prática. É necessário ensinar o trabalho prático. Por exemplo, é necessário saber como explicar ao povo porque a mobilização e a organização têm como objetivo a transformação viável da sociedade, como mobilizá-las no plano moral, organizar o trabalho, etc. No campo dos quadros militares é necessário identificar as aptidões físicas e morais dos combatentes, ensinar técnicas, táticas, movimentos, etc. Como bem sabia Mao, saber guerrear é, em primeiro lugar, saber se defender. O quadro ganha respeito dos trabalhadores por sua ação sendo imprescindível que conte com o apoio, amor e carinho dos e das camaradas a que deve guiar no caminho da revolução e da construção cotidiana de uma sociedade para além do capital.

segunda-feira, 8 de março de 2010

O que é o Comunismo hoje?

O Comunismo é uma hipótese estratégica que nomeia a alternativa viável diante do aprofundamento da “produção destrutiva” do capitalismo contemporâneo além de ser um fazer (verificado coletivamente) baseado no auto-controle dos produtores e consumidores livremente associados. O Comunismo não é uma Idéia, mas um processo histórico-concreto de lutas orientadas ao sentido de supressão das classes antagônicas sob o horizonte da revolução social. Não são lutas apenas contra os inimigos de classe personificado pelos capitalistas (industriais, agrários ou financeiros), burocratas, militares, milícias, etc. Também são lutas por um modo de troca social qualitativamente diferente - para além dos imperativos existenciais do capital orientados a expansão e acumulação e seu simulacro político: a democracia-liberal. Assim, o Comunismo tem uma dimensão negativa e positiva ao mesmo tempo, uma escala de tempo extensa e pressupõem a luta ideológica para se produzir nos dizres de Marx, com os instrumentos políticos adequados ao enorme desafio presente, “consciência comunista em escala de massa”.



Quando o “momento da verdade” revolucionária bate a porta, não precisamos de subterfúgios para fugir da luta. Quando ela se distancia de nosso horizonte, é porque necessitamos modificar nossas estratégias militantes. Esse é o desafio hoje. Considerando que apenas a práxis social pode responder satisfatoriamente para a superação do atual estado de coisas, limitar a vista ao passo que se está dando é uma estratégia que não responde satisfatoriamente ao fardo histórico que carregamos hoje – típicas do mundo imediatista “pós-moderno”. Como as antigas estratégias defensivas são anacrônicas e fracasssadas, vemos emergir nas últimas décadas uma multiplicidade infinita de táticas desconexas e sem um horizonte estratégico claro e comum - o dito de Bernstein "o movimento é tudo, o objetivo nada" ganha uma nova e maior significação.



A contradição principal em que encontramos hoje está na ausência de instrumentos políticos adequados para essa transformação possível e necessária seja realidade. Um dos sustentáculos dessa ausência é a continuidade do domínio das mitologias sobre a autoconsciência das organizações incluídas, descrevendo o partido leninista, por exemplo, como a instituição da ofensiva socialista par excellence. Analisando esses instrumentos do movimento da classe trabalhadora, sabemos que, certamente, todos existiram para superar alguns dos obstáculos principais na via para a emancipação. Em primeira instância, foram o resultado de explosões espontâneas e, como tal, representavam um momento de ataque. Mais tarde, como resultado de esforços conscientes, estruturas coordenadas emergiram tanto em países particulares como em escala internacional. Mas nenhuma dessas estruturas poderia ir além do horizonte de lutar por objetivos específicos, limitados, até mesmo se o seu objetivo último estratégico fosse uma transformação socialista radical de toda a sociedade. O próprio partido bolchevique estava apenas assegurando “Paz, Terra e Pão” para criar uma base social viável para a revolução. Nesse sentido, o “Partido de Vanguarda” foi construído de forma a poder se defender dos ataques cruéis de um Estado policial, sob as piores condições de clandestinidade, das quais inevitavelmente decorreram inúmeras imposições do segredo absoluto.



O que existe em comum em grandes figuras históricas de Lênin a Che, de Mao a Fidel, de Ho Chi Mihn a Trotsky, de Stálin a Rosa Luxemburgo é a concepção de centralização estratégica e descentralização tática numa reciprocidade dialética. Por isso, o momento de crise profunda como a que vivemos é uma oportunidade histórica para se repensar profundamente a transição social na construção de uma alternativa radical em novas bases organizacionais, de consciência e ação. É uma lacuna que emerge entre o “movimento real” e a articulação com uma alternativa viável. Entrementes, necessitamos urgentemente de uma estratégia socialista que cumpra esse desafio imenso.

O avanço da direita no Brasil: quando a democracia se torna um obstáculo para os capitalistas da mídia

Quando os grandes monopólios da mídia corporativa se reúnem, nós da esquerda sabemos que temos um grande desafio pela frente. Esse é o significado do 1º Fórum Democracia e Liberdade de Expressão, realizado pelo Instituto Millenium em São Paulo, na segunda-feira, 1º. de março. Marcaram presença nesse encontro a Associação Brasileira de Empresas de Rádio e Televisão (Abert) e a Associação Nacional dos Jornais (ANJ), entidades que envolvem a Globo, o SBT, a Record, a Folha de S. Paulo, o Estado de S. Paulo, a RBS, Instituto Liberal, Movimento Endireita Brasil (MEB), e outras empresas que decidiram boicotar a I Conferência Nacional de Comunicação, numa demonstração de forte apreço pela democracia.



Não é todo dia que presenciamos um encontro de tão ilustres competidores da "mídiocracia" brasileira. Com o enfraquecimento institucional e de representação da direita, personificado principalmente pelo PSDB e pelo DEM, a ação até contra um governo centrista-democrático como o do PT se radicaliza. O “jogo institucional” da democracia – que a esquerda “caiu” com o governo Lula – é um entrave para a direita hoje. Como bem dizia Cláudio Abramo, diferentemente da esquerda e seus fraccionismos estéreis, a direita “na hora H se une”. Vivemos esse momento hoje no Brasil.



Como disse Washington Araújo, o grande intuito desse encontro da mídia corporativa que representa a direita brasileira hoje é, entre outros, impor que: 1) Liberdade de expressão é interditar todo e qualquer debate democrático sobre os meios de comunicação; 2) Liberdade de expressão só pode ser invocada pelos que controlam o monopólio das comunicações no país. 3) Liberdade de expressão é bem supremo estando abaixo apenas do Deus-Mercado; 4) Liberdade de expressão é denunciar qualquer debate sobre mecanismos para termos uma imprensa minimamente responsável. 5) Liberdade de expressão é gerar factóides, divulgar informações sabidamente falsas apenas para aproveitar o calor da luta. 6) Liberdade de expressão é deitar falação contra avanços sociais, contra mobilidade social, contra cotas para negros e índios em universidades públicas. 7) Liberdade de expressão é cartelizar a informação e divulgá-la como capítulos de uma mesma novela em variados veículos de comunicação. 8) Liberdade de expressão é explorar a boa fé do povo com programas de televisão que manipulam suas emoções e suas carências oferecendo uma casa aqui outro carro ali e assim por diante – como o governo Lula, diga-se de passagem. 9) Liberdade de expressão é somente aprovar comentários aptos à publicação em sítio/blog da internet se estes referendarem o pensamento do autor e proprietário do sítio/blog. 10) Liberdade de expressão é apresentar imparcialidade jornalística do meio de comunicação mesmo quando os principais jornalistas fazem de sua coluna tribuna eminentemente partidária. 11) Liberdade de expressão é submeter decisões editoriais a decisões comerciais de empresas e emissoras de comunicação. 12) Liberdade de expressão é minimizar o descaso do poder público ante as enchentes de São Paulo – e o resto do Brasil - e reduzir candidato à presidência a mero poste. 13) Liberdade de expressão é ter dois pesos em política externa: Cuba é o inferno e China é o paraíso. 14) Liberdade de expressão é demonizar movimentos sociais e defender a todo custo latifúndios vastos e improdutivos. 15) Liberdade de expressão é lutar para manter o status quo: o direito de informar é meu e ninguém tasca.



Bem, como disse muito sinceramente o picareta Arnaldo Jabor no Fórum, “a questão é como impedir politicamente o pensamento de uma velha esquerda que não deveria mais existir no mundo”? Não me parece que o meio para isso acontecer seja minimamente pela “democracia representativa” que a esquerda tanto idolatra.



Portanto, atentemo-nos! Os inimigos estão de organizando rapidamente e sabemos que sua força não é pequena.

sexta-feira, 5 de março de 2010

A militância na era do capitalismo global – parte 2: a redescoberta da paixão política

É tempo de definir a estratégia socialista para além do capital já que, como bem dizia Lukács, não existe tática sem estratégia.



A forma-partido clássico morreu em nosso século XXI. As diversas tentativas de suscitá-lo serão medidas fracassadas já que não acompanham a atualidade do projeto socialista. As estratégias passadas não são mais apenas duvidosas, mas absolutamente irrealizáveis já que a crise estrutural do capital as tornou completamente anacrônicas. Aqui a necessidade de rompimento com as estratégias passadas (defensivas, parciais, setoriais, etc.) conjuntamente com as organizações que a encabeçam e a forma de militância nelas. Como sujeito social emancipador é verdadeiramente abrangente, conjuntamente com a necessidade de reconstrução da forma-partido, temos o desafio de identificar a forma-militante que emerge nesse início de século. Portanto, junto com a forma-partido clássico se vai uma forma-militante personificada por Lênin e os camaradas bolcheviques, trotskistas, estalinos, etc.



Acredito que a crise da antiga forma-militante do século XX é ligada a passagem da lógica do sacrifício para a lógica da coragem neste nosso século XXI. Em todos grandes revolucionários do século XX (Lênin, Rosa, Che, Fidel, Ho Chi Min, etc.) é enfatizado diversas vezes o caráter do sacrifício pessoal para o militante conseguir ser um soldado da causa. Mirando no sacrifício era possível ser um bom militante para levar adiante as tarefas que lhe eram confiadas, capaz de guardar para si as feridas e contradições internas da Organização. Hoje não há mais espaço para cobrar sacrifícios. Este militante profissional baseado no sacrifício individual está a caminho da extinção neste início de século. A rigor, os que sobrevivem são fantasmas que ainda perambulam pelas ruas a acreditar na possibilidade da manutenção daquele modelo. Pensa ainda numa organização leninista ou, no limite extremo, stalinista. Imagina-se numa época que já passou. Saudoso, quer as massas na rua, o partido a guiá-las. E elas, insubmissas, não o obedecem.



Assim a pergunta que fica é: o militante do século XXI terá a coragem (e não o sacrifício) de correr de forma autodisciplinada os riscos necessários para colocar na prática um ideal necessário, possível, viável e urgente? Acredito que essa pergunta seja importante porque o militante do século XXI modificou sua visão do futuro. O militante do século XX tinha certa certeza de um terreno paradisíaco que viríamos a construir. Como vivemos no fim de um conceito de história que não aceita mais determinismos que possibilitavam colocar o Partido como portador da Razão Histórica, o militante do século XXI tem como desafio não apenas a (re)construção das necessárias estruturas organizacionais da solidariedade de classe. Assim temos como desafio o forjamento de uma subjetividade classista que não se reduza apenas a reivindicações que defendam a unidade dos trabalhadores e os efeitos perversos do capitalismo, mas também consolidem positivamente uma sociabilidade que elucide os antagonismos existentes entre capital e trabalho, além do papel das burocracias sindicais e partidárias, caminhando com uma autocrítica permanente implantando pela práxis cotidiana mudanças radicais na divisão social do trabalho em direção à igualdade substantiva.



Nesse sentido, a força emancipadora emergente e multifacetada do século XXI só conseguirá prevalecer se conseguir se organizar sobre princípios muitos diferentes de troca daqueles dominantes na sociedade capitalista em crise. Nesse sentido proponho que um princípio do militante do século XXI, como diria Marx, seja a troca de atividades entre indivíduos e organizações autogeridas com o interesse comum totalmente objetivo de construção de uma sociedade para além do capital e do parlamentarismo.



Isso porque a militância não é apenas um envolvimento mais ou menos limitado em discussões, geralmente reduzido ao ritual extremamente vazio de “consulta”, mas a aquisição progressiva dos poderes alienados de tomada de decisão usurpados pelo capital e pelo Estado que são retomados pelo corpo social de produtores livremente associados. Por isso a militância significa o exercício criativo e autoaperfeiçoador, em benefício de todos, dos poderes de tomada de decisão adquiridos conjuntamente. E sim, é preciso ter olhos para ver esse novo militante que surge. Só com os olhos abertos, com uma visão muito ampla, avessa a dogmatismos, a fórmulas prontas, é que os partidos de esquerda poderão também tê-lo em suas fileiras – algo mais necessário do que nunca para a reconstrução da forma-partido.



Uma vez Che falou que, mesmo correndo o risco de parecer ridículo, o verdadeiro revolucionário é guiado por grandes sentimentos de amor. Seria impossível pensar num militante sem essa qualidade. Entretanto, que amor seria esse? Acredito que essa concepção de amor é muito parecida com a de Jacques Lacan: amor é dar o que não se tem para quem não quer. O militante não se limita a dar, mas recebe, em alguns momentos, muito mais do que aquilo que dá: adquire novas experiências, maturidade política, aprende como vivem nossos camponeses e trabalhadores, novas formas de contato humano, aprende a lidar com o inimigo, etc. Por isso o estímulo do militante não depende do Outro para que regulamente ou ordene sendo um exercício de autodisciplina contínua e sem fim. O fato de que as formalidades da vida militar não adaptarem a militância não exclui a disciplina estrita e informal que nasce da convicção profunda do combate que estamos integrados e que depende de todos. Assim, o intuito do militante é o auto-controle com a consciência de dever com a sociedade que estamos construindo.



A coragem do militante deve ser construída progressivamente e conscientemente em atos cotidianos que sirvam de exemplos-vivos para afinarmos nossos espíritos revolucionários. A coragem é a virtude que se manifesta pela materialização do impossível. A hora do destino chegou. Faremos o militante do século XXI: nós mesmos.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Militância na era do capitalismo global. Ainda é possível?

Numa era em que o capitalismo-democrático global é apresentado como nosso destino inexorável e que, assim, nos adaptamos a ele ou somos esmagados pelo ritmo da história, qual é o papel do militante?

Primeiramente clamo que necessitamos urgentemente de uma nova disciplina social. O recado de Rosa Luxemburgo é mais válido do que nunca: “com homens preguiçosos, levianos, egoístas, irrefletidos e indiferentes não se pode realizar o socialismo. A sociedade socialista precisa de homens que estejam, cada um em seu lugar, cheios de paixão e entusiasmo pelo bem-estar coletivo”. Assim, do militante socialista se impõem uma coragem e perseverança baseada numa clareza interior que não coloca em dúvidas a causa pela qual se está lutando. Por isso o militante pode se definido sumariamente por uma autodisciplina voluntária voltada a uma seriedade moral e ao senso de dignidade e responsabilidade etico-política e social por “pensar como massa”. Esse pensar, é claro, não diz respeito a suposições supersticiosas individuais, mas do contato ativo-social de criar e expandir a convicção social de que a participação política de todos nas decisões que permeiam as questões fundamentais da vida em sociedade não são apenas possíveis como necessárias. A natureza associativa do militante busca demonstrar que a força coletiva supre as fraquezas individuais num trabalho de organização permanente para colaborar em ações concretas para que os grupos sociais conjuguem seus esforços visando objetivos comuns - tanto negativos em relação a ordem existente como positivos no sentido de serem mediações a uma nova sociedade. Lembremos de Antonio Gramsci, militante marxista inteiramente dedicado a seu projeto social, mártir e paradigma de ação política, prática crítica e prática intelectual, com um legado que enriquece nossa humanidade.

Como dizia Gramsci, “odeio os indiferentes porque me provocam tédio as suas lamúrias de eternos inocentes. Peço contas a todos eles pela maneira como cumpriram a tarefa que a vida lhes impôs e impõe quotidianamente, do que fizeram e sobretudo do que não fizeram. E sinto que posso ser inexorável, que não devo desperdiçar a minha compaixão, que não posso repartir com eles as minhas lágrimas. Sou militante, estou vivo, sinto nas consciências viris dos que estão comigo pulsar a atividade da cidade futura que estamos a construir. Vivo, sou militante. Por isso odeio quem não toma partido, odeio os indiferentes”. Como salienta Slavoj Zizek, “não existem espectadores inocentes nos momentos cruciais de decisão revolucionária, porque, em tais momentos, a própria inocência – que isenta de tomar decisão, que me autoriza a preceder como se a luta que estou testemunhando realmente não me concernisse – é a mais alta traição. Quer dizer, o medo de ser acusado de traição é a minha traição, porque, mesmo que “nada tenha feito contra a revolução”, esse próprio medo, o fato de que ele surja dentro de mim, demonstra que minha posição subjetiva é externa à revolução, que eu vivo a “revolução” como força externa que me ameaça”. Por isso, “todo revolucionário autentico tem de assumir a atitude de abstrair completamente, e mesmo desprezar, a imbecil particularidade de sua própria existência imediata”. Aqui a rejeição do hábito é crucial: em muitas situações políticas as escolhas são dadas sob a condição de que façamos a escolha certa. Por isso o militante é politicamente extraparlamentar ao suspender a ordem legal como o horizonte da ação revolucionária. Não existem “garantias” para a ação ético-política do militante. A busca por “garantias” (as condições ainda não estão maduras, não temos o apoio da maioria do povo, é cedo demais para a revolução, a revolução não será democrática o suficiente, etc.) é o medo do abismo do agir.

A militância é correlata ao processo de assumir solitariamente a responsabilidade e o compromisso de, nos termos de Robespierre, ser (em conjunto com outros militantes) “meros instrumentos da Vontade do Povo”. É uma decisão soberana (de arriscar a vida, matar ou ser morto) que o grande Outro não pode acobertar. Ao mesmo tempo, a autonomia do militante e sua responsabilidade moral impossibilitam a transferência de sua culpa hesitante para alguma figura do grande Outro. Assim, em termos lacanianos, o militante se autoriza por si mesmo. Diferentemente dos “auto-heróis” com seus depoimentos “históricos-políticos” cheios de mistificação ideológica e mentira política, Gramsci aponta na função do militante a dedicação ativa à vida prática como construtor, organizador e mobilizador permanente das organizações de classe.

Concluo dizendo que o militante se considera constantemente morto de antemão. Vai para suas batalhas sem nenhuma pretensão de retornar. Somente uma posição tão radical pode romper com o marasmo da forma política do capitalismo contemporâneo.

segunda-feira, 1 de março de 2010

A Catástrofe no Chile e o Capitalismo de desastre

Depois do Haiti, temos um novo exemplo do “capitalismo de desastre” no Chile. Como salientou a jornalista Naomi Klein, a forma de reprodução do capitalismo contemporâneo se dá por ataques orquestrados à esfera pública no auge de acontecimentos catastróficos – naturais ou não - sendo eventos “estimulantes” para novas oportunidades de mercado, de exército ou de neutralizar a ordem pública em desordem. Somente numa crise catastrófica torna o que seria politicamente inaceitável em politicamente inevitável.



A presidente Michelle Bachelet decretou hoje o "estado de exceção de catástrofe" para as zonas de Maule e Biobio, por 30 dias, para "garantir a ordem pública e acelerar a entrega de ajuda". Neste domingo o recém-eleito presidente Sebastián Piñera também disse que "quando temos uma catástrofe desta magnitude, sem água ou luz, a população, com certa razão, fica angustiada e perde o sentido da ordem pública”... diante desta situação, “temos que recorrer a todos os recursos, e nossas Forças Armadas estão preparadas para contribuir em tempo de crise e de catástrofe”. A lição é: quando o povo perde "o sentido da ordem pública" é necessário acionar o Exército para "contribuir internamente" nesse momento criado pela "catástrofe". Engraçado notar a semelhança entre esse mecanismo de suspensão da ordem por uma catástrofe com a instauração de um estado de exceção.



No artigo 48º da Constituição de Weimar se estabelecia que “se, no Reich alemão, a segurança e a ordem pública estiverem seriamente conturbados ou ameaçados, o presidente do Reich pode tomar as medidas necessárias para o restabelecimento da segurança e da ordem pública, eventualmente com a ajuda das forças armadas. Para esse fim, ele pode suspender total ou parcialmente os direitos fundamentais...”. O que significa estar seriamente conturbando ou ameaçando a ordem pública? Conturbando e ameaçando a quem? Nos últimos anos da República de Weimar, o estado de exceção foi integral. Hitler não teria tomado o poder na Alemanha se não houvesse um regime de ditadura presidencial e a suspensão do funcionamento do Parlamento por quase três anos. Logo após subir ao poder, Hitler promulgou o Decreto para a proteção do povo e do Estado onde suspendeu a Constituição de Weimar do que dizia respeito às liberdades individuais. Como esse decreto nunca foi revogado, com o comando de Hitler, a Alemanha nazista ficou doze anos em estado de exceção (com a promessa que duraria mil anos). Como dizia o brilhante Carl Schimitt, a importância do estado de exceção se encontra exatamente no seu estatuto de exceção. Por isso, numa linguagem quase lacaniana ele escreve que,



A filosofia da vida concreta não pode subtrair-se à exceção e ao caso extremo, mas deve interessar-se ao máximo por ele. Para ela, a exceção pode ser mais importante do que a regra, não por causa da ironia romântica do paradoxo, mas porque deve ser encarada com toda a seriedade de uma visão mais profunda do que as generalizações das repetições medíocres. A exceção é mais interessante do que o caso normal. O normal não prova nada, a exceção prova tudo; ela não só confirma a regra, mas a própria regra só vive da exceção. Na exceção, a força da vida real rompe a crosta de uma mecânica cristalizada na repetição.



Em síntese podemos dizer que hoje as catástrofes naturais são belas “desculpas” para impor um reordenamento a partir da violência excessiva do Estado contra os “desbalanços” do capitalismo em crise.



Alain Badiou enfatiza que a representação do Estado em relação à sociedade, por exemplo, sempre envolve um excesso. Dessa forma, a idealização liberal da transparência do Estado não passa de um sonho já que a própria lógica do Estado é de intervenção excessiva sobre aquilo que representa. Slavoj Zizek ainda acrescenta que não existe apenas o excesso do Estado em relação à multidão que ele representa, mas também existe um excesso do próprio Estado em relação a si mesmo. Para seu funcionamento “normal” o Estado excede a si mesmo, mesmo que esse imperativo deva permanecer ignorado – o fetiche da democracia é que o processo democrático pode controlar esse excesso. Dessa forma, resumidamente, o estado de exceção é o excesso político constitutivo necessário para que se torne possível reproduzir a estrutura capitalista de poder democrático historicamente – é a representação por excelência da política moderna. A pergunta que fica é: quando o estado de exceção é um imperativo?



Acredito que a conclusão radical a ser tirada desses novos movimentos do capitalismo de desastre é que sob o estado de exceção se busca assegurar a impossibilidade de uma possível suspensão ainda mais radical e qualitativamente diferente seja construída. O estado de exceção é – seja por catástrofes naturais ou não -, o assegurador último que o Ato revolucionário falhe. Portanto talvez tenhamos que nos acostumar a vivemos numa “Nova Orleans Global” e não glorificarmos a "fukuyamização" da vida cotidiana.