sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Contra a violência do agronegócio e a criminalização das lutas sociais

As grandes redes de televisão repetiram à exaustão, há algumas semanas, imagens da ocupação realizada por integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em terras que seriam de propriedade do Sucocítrico Cutrale, no interior de São Paulo. A mídia foi taxativa em classificar a derrubada de alguns pés de laranja como ato de vandalismo.

Uma informação essencial, no entanto, foi omitida: a de que a titularidade das terras da empresa é contestada pelo Incra e pela Justiça. Trata-se de uma grande área chamada Núcleo Monções, que possui cerca de 30 mil hectares. Desses 30 mil hectares, 10 mil são terras públicas reconhecidas oficialmente como devolutas e 15 mil são terras improdutivas. Ao mesmo tempo, não há nenhuma prova de que a suposta destruição de máquinas e equipamentos tenha sido obra dos sem-terra.

Na ótica dos setores dominantes, pés de laranja arrancados em protesto representam uma imagem mais chocante do que as famílias que vivem em acampamentos precários desejando produzir alimentos.

Bloquear a reforma agrária
Há um objetivo preciso nisso tudo: impedir a revisão dos índices de produtividade agrícola - cuja versão em vigor tem como base o censo agropecuário de 1975 - e viabilizar uma CPI sobre o MST. Com tal postura, o foco do debate agrário é deslocado dos responsáveis pela desigualdade e concentração para criminalizar os que lutam pelo direito do povo. A revisão dos índices evidenciaria que, apesar de todo o avanço técnico, boa parte das grandes propriedades não é tão produtiva quanto seus donos alegam e estaria, assim, disponível para a reforma agrária.

Para mascarar tal fato, está em curso um grande operativo político das classes dominantes objetivando golpear o principal movimento social brasileiro, o MST. Deste modo, prepara-se o terreno para mais uma ofensiva contra os direitos sociais da maioria da população brasileira.

O pesado operativo midiático-empresarial visa isolar e criminalizar o movimento social e enfraquecer suas bases de apoio. Sem resistências, as corporações agrícolas tentam bloquear, ainda mais severamente, a reforma agrária e impor um modelo agroexportador predatório em termos sociais e ambientais, como única alternativa para a agropecuária brasileira.

Concentração fundiária
A concentração fundiária no Brasil aumentou nos últimos dez anos, conforme o Censo Agrário do IBGE. A área ocupada pelos estabelecimentos rurais maiores do que mil hectares concentra mais de 43% do espaço total, enquanto as propriedades com menos de 10 hectares ocupam menos de 2,7%. As pequenas propriedades estão definhando enquanto crescem as fronteiras agrícolas do agronegócio.

Conforme a Comissão Pastoral da Terra (CPT, 2009) os conflitos agrários do primeiro semestre deste ano seguem marcando uma situação de extrema violência contra os trabalhadores rurais. Entre janeiro e julho de 2009 foram registrados 366 conflitos, que afetaram diretamente 193.174 pessoas, ocorrendo um assassinato a cada 30 conflitos no 1º semestre de 2009. Ao todo, foram 12 assassinatos, 44 tentativas de homicídio, 22 ameaças de morte e 6 pessoas torturadas no primeiro semestre deste ano.

Não violência
A estratégia de luta do MST sempre se caracterizou pela não violência, ainda que em um ambiente de extrema agressividade por parte dos agentes do Estado e das milícias e jagunços a serviço das corporações e do latifúndio. As ocupações objetivam pressionar os governos a realizar a reforma agrária.

É preciso uma agricultura socialmente justa, ecológica, capaz de assegurar a soberania alimentar e baseada na livre cooperação de pequenos agricultores. Isso só será conquistado com movimentos sociais fortes, apoiados pela maioria da população brasileira.

Contra a criminalização das lutas sociais
Convocamos todos os movimentos e setores comprometidos com as lutas a se engajarem em um amplo movimento contra a criminalização das lutas sociais, realizando atos e manifestações políticas que demarquem o repúdio à criminalização do MST e de todas as lutas no Brasil.

http://www.petitiononline.com/boit1995/petition.html

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Notas sobre a nova configuração do capitalismo e a construção de alternativas positivas viáveis hoje

Estou postando a última parte do artigo que fiz chamado "A Crise de Marx - a emergência de uma “nova configuração do capitalismo” com o aprofundamento da crise estrutural do capital". Se alguém quiser peça por e-mail.

Notas finais.

Estamos entrando numa nova etapa do capitalismo mundial com o aprofundamento da crise estrutural do capital. O Estado forte e autoritário está novamente emergindo numa espécie de “chineização do Estado liberal” conjuntamente com o processo de “japoneização do trabalho”. A democracia poderá continuar formalmente (como sempre ocorreu), mas as decisões chaves para a sustentação da economia mundial estão tendo, cada vez mais, um caráter autoritário pelo ímpeto de administrar a atual crise. Um dos fatores essenciais da reprodução do capital se torna a necessária “ajuda externa” do Estado que, quando preciso, suspende a ordem democrática em nome das “prioridades econômicas”. Torna-se escancarada a ligação incestuosa do Estado capitalista com o “mundo parasitário das finanças”. O Estado age no que é “perigoso” para a estabilidade do sistema financeiro (mas não só nele) com seus “financiamentos de emergência”, seja nacionalizando bancos como o Northern Rock na Inglaterra e a AIG nos EUA ou na ajuda dos financiamentos de compra do Bear Stearns pela JPMorgan Chase com um pequeno empréstimo de US$ 29 bilhões do governo norte-americano, sem garantia nenhuma além de seus títulos de propriedade. Em outras palavras, o Estado é a última instância de salvamento da bancarrota capitalista. A pergunta que fica é: até quando o Estado terá condições de salvar as empresas capitalistas (da produção aos bancos, da agricultura a dívida) diante das dimensões atuais da crise? E, no caso dos EUA e alguns outros, até quando essas iniciativas poderão continuar sem se encontrar drasticamente com o crescente endividamento que, a cada dia, percebemos ser impagável?


Com os desdobramentos da crise estrutural do capital, essa relação se torna cada vez mais incestuosa. Entretanto, com a dependência sempre crescente do capital de “ajuda externa” do Estado estamos nos aproximando de um limite sistêmico, pois somos obrigados a enfrentar a insuficiência crônica de ajuda externa referente àquilo que o Estado tem condições de oferecer (Mészáros, 2003, p. 30, 31). Segundo o “Relatório sobre a estabilidade financeira mundial” do Fundo Monetário Internacional, em 2008 os salvamentos dados pelos bancos centrais e governos dos Estados Unidos, Reino Unido e zona do euro chegou a US$ 9 trilhões, dos quais US$ 4,5 trilhões em forma de garantia. Entretanto, a “ajuda externa” do Estado não é eterna. Ela possui a instrumentalidade de ajudar temporariamente o sistema, mas historicamente é sempre insuficiente para o objetivo de garantir de forma permanente a estabilidade social e internacional, além de marcar profundamente a crescente simbiose entre capital e Estado de maneira irretornável deixa de forma explícita a conformidade de interesses “sociais” de ambos para a reprodução do sistema do capital.


Além disso, o Estado necessita resgatar – pela “nacionalização” alguns dos principais empreendimentos capitalistas e até mesmo ramos inteiros da indústria quando elas se tornam falidas, fazendo-as retornar, no momento adequado, ao “setor privado competitivo”, uma vez que sua viabilidade econômica tenha sido garantida graças pesados investimentos estatais, financiados por impostos gerais (Mészáros, 2006, p. 733, 734). Para administrar a crise, o Estado precisa assumir um papel intervencionista direto em todos os planos da vida social, promovendo e dirigindo ativamente a sustentação do capital fornecendo as “garantias políticas” para a continuação da dominação já materialmente estabelecida e enraizada estruturalmente. O Estado está agora, mais do que nunca, condenado a administrar a crise de forma permanente, por mais custoso que seja em termos sociais e ecológicos. Com o aprofundamento dos antagonismos intrínsecos da hierarquia estrutural do capital sobre o trabalho, o Estado busca minimizar ad infinitum a instabilidade inerente das explosões sociais contra a precarização e a flexibilização do trabalho (a níveis ainda mais intensivos) além da ejeção forçada da produção de milhões de trabalhadores que dão corpo às já enorme fileiras do desemprego crônico.


Como conseqüência desse processo, estamos presenciando um corte radical entre democracia e Estado que se tornam progressivamente antagônicos sob o estratégico aprofundamento da hibridização entre capital e Estado . Consequentemente, o próprio elo entre democracia e capitalismo está, agora, cortado. Nesse sentido, com o desenrolar dessa simbiose entre Estado e capital é que as medidas paliativas dentro da ordem estabelecida começam a se esgotar progressivamente atualizando a urgência histórica de uma transformação estrutural e abrangente que se apresenta como uma alternativa radical para o sistema estabelecido em sua totalidade.

Para concluir vamos trazer algumas reflexões acerca das seminais contribuições de Mészáros para a construção da alternativa hegemônica do trabalho ao sistema do capital.


Por o modo de reprodução sociometabólica global do capital ser estruturalmente incapaz de estabelecer e manter uma relação historicamente sustentável dos seres humanos com a natureza além da negação usurpadora do poder de decisão não apenas na economia e na política, mas também no campo da cultura, aos indivíduos que constituem o sujeito histórico real, o trabalho, como o possuidor e realizador potencial da energia criativa humana sob uma imposição cega sobre a sociedade dos imperativos expansivos irracionais do valor de troca (não importando o quão destrutivas possam ser), a elaboração prática de um sistema alternativo exige um reexame das premissas práticas fundamentais do sistema do capital em sua totalidade combinada para ser suplantado historicamente por uma alternativa não menos abrangente e orgânica. Como as mediações antagônicas hierarquicamente consolidadas do pelo capital não podem ser reformadas, corrigidas ou controladas por constituírem um sistema perversamente interbloqueado num caráter centrífugo, a transição historicamente sustentável para além do capital envolve um conjunto de princípios e determinações operativos mais substantivos e orgânicos sob a forma de deliberações autônomas e conscientes, críticas e também autocríticas, dos indivíduos orientados para a elaboração estratégica das mediações não antagônicas exigidas pela “nova forma histórica”. Esse tipo de mediação não se refere a algum futuro mais ou menos remoto, mas ao processo histórico agora em curso.

Este é o único modo viável de suplantar numa base duradoura a ordem sociometabólica cada vez mais destrutiva do capital pela alternativa hegemônica positivamente sustentável do sistema orgânico socialista. Pois apenas ao afirmar de maneira bem-sucedida seus princípios enquanto reprodução social em constante autorrenovação pode a alternativa hegemônica socialista adquirir – e manter – sua profunda legitimidade histórica (Ver “Estrutura social e formas de consciência: a determinação social do método”. Boitempo, 2009. Especialmente o último capítulo “método em uma época histórica de transição”, p. 300).


Para o sucesso desse empreendimento, a negação da ordem estabelecida é apenas a primeira parte vital e necessária. Sua legitimidade histórica depende da instituição de uma ordem reprodutiva viável a longo prazo em seus próprios termos positivos. Dessa forma, “a tarefa radical por princípio buscada de modo consciente para superar os antagonismos da ordem existente é inseparavelmente negativa e positiva ao mesmo tempo. E esse é o único significado apropriado que podemos dar ao termo radical, que não se pode permitir continuar atado a uma – definitivamente insustentável – postura puramente negativa” (idem, p. 302). Não é a toa que Marx definiu o socialismo como “consciência de si positiva do homem”. Ainda com Mészáros, a única mediação historicamente sustentável e viável para a alternativa socialista é a mediação de si própria por parte de um sujeito social ativo que seja capaz de intervir autonomamente e conscientemente no processo de transformação exigida em nosso “destino histórico” sob uma tomada de decisão substantiva pelo corpo social em sua totalidade – uma automediação. Para concluir nas palavras do húngaro:


Somente a instituição e manutenção bem-sucedidas do sistema de mediações não antagônicas como a alternativa hegemônica da nova forma histórica à ordem do capital agora dominante pode mostrar uma saída desses perigosos antagonismos. Pois estes não podem ser superados sem a inter-relação plenamente eqüitativa de solidariedade substantiva entre os indivíduos sociais livremente associados, assim como de seus países, na forma de sua solidariedade internacional genuína capaz de confrontar positivamente as falhas do passado. Essa é a única perspectiva historicamente sustentável para o futuro (2009, p. 308, 309).

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

É o fim do neoliberalismo?

A atual crise mostra o fim do neoliberalismo? Sim e não.

Os planos de resgate para o salvamento da bancarrota capitalista não foram direcionadas para o sistema financeiro, mas sim para os bancos. Essa atuação conflui perfeitamente com a virada neoliberal que se apresentou como o poder do Estado de proteger as instituições financeiras, custe o que custar. O projeto de classe neoliberal – que, por sinal, tem um êxito enorme – provou sua força durante o escancaramento da crise em setembro de 2008. Desde lá vemos a aceleração da crise um nível de contágio internacional nunca visto na história, exatamente pela condição interconectada do sistema financeiro devida a liberalização econômica colocada em prática nas últimas décadas. Ao injetar trilhões para salvaguardar a funcionalidade dos bancos no sistema mundial, o Estado neoliberal deixou de lado a panacéia do “Estado mínimo” que, retoricamente, conquistou até mesmo grande parte da esquerda após a queda do muro de Berlim.

Entretanto, essa ação cleptocrata teve custos: a crise do crédito põe fim ao processo de financeirização como resposta da crise que se desdobra desde 1970. A contração do crédito faz as empresas reduzirem a produção e a massa salarial. A acumulação desses efeitos abaixa a demanda, tanto de bens intermediários como de consumo. Isso afeta as empresas que reduzem ainda mais a produção e a massa salarial, etc etc. Essa forma de propagação da crise passa dos Estados Unidos ao Japão, da Europa Ocidental a América Latina e reforça o caráter cumulativo da atual crise global.

Em conseqüência, o aumento do desemprego, a falência de muitas empresas, assim como uma desorientação das potências dominantes só pode ser combatida com uma ação efetiva. A esquerda, na maioria das vezes, evoca o receituário keynesiano como resposta, desconsiderando sua inoperância hoje. O impasse do sistema capitalista hoje é tal que, sem intervenções políticas para modificar o horizonte econômico, a crise será muito longa. Quando se lê a burguesia falando com ela mesma (Jornal Valor, The Economist, Newsweed, etc.) se sabe que os fundamentos para uma nova e mais intensiva ofensiva do capital contra o trabalho e o resta no sistema público está sendo preparada colocando. no futuro. uma tenebrosa mistura entre neoliberalismo e neoconservadorismo. Um neoliberalismo de Estado.

Essa crise mostra os “limites históricos” (MARX) do capital assim como em 1968. Entretanto, diante da crise do fim dos anos 1960, existiu um levante político contra as coordenadas do capitalismo que, quando foi derrotado, trouxe para o capitalismo um respiro importante ao esvaziar as demandas existentes (direitos civis, feminização do trabalho, psicodelia nas propagandas etc.) para introduzir a sua dinâmica de funcionamento. Hoje, entretanto, as desencantadas esquerdas ainda não se contrapõem aos caminhos que estão sendo delineados pela classe dominante diante da atual crise. Ao cair principalmente na ideologia da tolerância, multiculturalismo, direitos humanos, contra violência, democracia-liberal, lulismo, obamismo, etc. a esquerda faz um grande favor ao capitalismo que, diante de sua esterilidade, vê um novo projeto de classe ainda mais incisivo que o neoliberalismo se estabelecer.

Não existe outra saída para a atual crise senão o controle dos meios de produzir as riquezas sociais, ou, em outras palavras, o controle sobre as decisões em relação ao que deve ser produzido, para quem e como. Com o esse objetivo é necessário criar formas de organização e reivindicação que sejam capazes de abrir uma via social positiva para o socialismo. Atentemo-nos.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Tolerância Totalitária

Que tipo de sujeito deve ser criado pelo capitalismo contemporâneo para melhor funcionar? Sem dúvida, uma caratecterística seminal é a tolerância. Devemos ser tolerantes aos negros, aos homossexuais, transsexuais, pós-sexuais, aos intrusos em nosso espaço cultural, as mulheres, as diversas opções que promove a "pós-modernidade", aos judeus, árabes, índios, a natureza, etc. Entretanto, não devemos nos enganar. Essa tolerância se assenta sob o esvaziamento do caráter traumático da alteridade. Por isso, devemos ser tolerantes e não dividir coletivamente as angústias, medos e a insegurança. Se nega a negatividade a priori sendo a tolerância, paradoxalmente, uma ótima artimanha para manter no seu devido espaço (bem longe de preferência!) aquele que põem em risco a integradade do sujeito. Nada melhor para a atomização capitalista!

A idelogia tolerante, portanto, funciona perfeitamente com a lógica do individualismo possessivo. Ao impossibilitar uma verdadeira negação por manter-se longe das possibilidades de transformação coletiva, a postura tolerante se equipara a postura cínica e resignada. Esconde suas angústias por detrás de uma hipotética resolução das atuais dificuldades, individuais e coletivas.

A ideologia tolerante também oblitera o intolerável. É possível ser tolerante com o nazismo? E com a divisão de classes? É possível ser tolerante ao neoliberalismo, ao desemprego crrescente, a injustiça social e aos políticos-latifundiários-policiais que reprimem abertamente com a violência objetiva cotidiana uma massa incontável de favelados, imigrantes, desempregados, subempregados, etc? É possível tolerar a criminalização do movimentos sociais como o MST e da probreza em geral? É possível tolerar o sofrimento alheio? Essas questões que são obliteradas passam por adversidades naturais e, dessa forma, se tornam estáticas e não-transformáveis.

Portanto, uma das características do capitalismo contemporâneo pós-político é o desenvolvimento da tolerância à injustiça social que atua concomitantemente à tolerancia como projeto social politicamente correto de transformar tudo velozmente para manter uma franca indiferença em relação profundidade da crise na totalidade do sistema social vigente. Atentemo-nos.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

O lulismo como lógica ideológica-política do capitalismo democrático brasileiro

Lulismo ou lógica ideológica-política do capitalismo democrático brasileiro

I-

Os Economistas políticos (Smith, Ricardo, Sismondi, etc.) foram a vanguarda de um período histórico de crise terminal do feudalismo. Por toda a Europa, com grande parte das forças medievais já combalidas e seus quadros institucionais numa falência generalizada, emerge um corpo científico conhecido como Economia Política que procura romper com o invólucro que protegia a sociedade medieval européia de forma radical. Com a crise da sociedade feudal, a concepção de como o produz sua existência também entra em crise. A religião produzindo a vida deixa de ser o horizonte para a emergência do trabalho como a capacidade do homem prover sua existência. Hoje não estaríamos, entretanto, presenciando a crise terminal da Economia Política? A “pós-modernidade” é o período em que “o ponto de vista do capital” não encontra nenhuma solução plausível para seus quadros institucionais e produtivos. É o momento histórico de esgotamento da sociedade baseada na produção do capital em que a burguesia não tem mais condições para dizer (e fazer) como deveria ser positivamente a vida social num crescente “non-valeur” de seus imperativos.

Nesse ponto, o governo Lula é um belo exemplo: o plano macroeconômico não poderia articular politicamente uma alternativa ao modo de acumulação predominantemente financeiro de capital restando um enfoque microeconômico baseado em políticas compensatórias e mais preocupado com o “social” do que a direita. Esse “não poderia” não quer dizer que o governo Lula foi arrastado para essa posição. Foi a cúpula oportunista do PT que assegurou que qualquer tipo de transformação passaria por um forte governo neoliberal. Portanto, verdadeiro significado do dito “não há alternativa” de Margareth Thatcher é: diante do aprofundamento da crise estrutural do capital “não há alternativa” senão políticas paliativas já que estamos presenciado a naturalização da macroeconômica neoliberal como a única possível – e claro de a esquerda oportunista deve aceitar essa prerrogativa como natural e inevitável. Escolhida principalmente pela cúpula oportunista, a conduta econômica e política do governo Lula coloca em marcha o continuísmo como marca central. Esse continuísmo, entretanto, é dinâmico e abre as portas para a expansão do modelo neoliberal. Ao desistir conscientemente de um projeto alternativo, o governo Lula se apresenta como uma entrega do país a interesses alheios aos da maioria da população. Em conseqüência, concordo com Leda Paulani: o Brasil vem se tornando a passos largos numa plataforma de valorização financeira internacional. O Estado democrático brasileiro atual se afirma sob a “aliança entre o Governo e a Bolsa” como diria Engels.



II -

Antes da posse de Lula, as elites brasileiras (e internacionais) tremeram nas bases. Tanto desespero para nada. Do ponto de vista do capital, o governo Lula é um exemplar da alternativa “possível” ao neoliberalismo. O fator ideológico é importante: quem desconfiaria das intenções do PT em transformar radicalmente a sociedade brasileira? Aquele partido que começou da mobilização de baixo para cima contra a ditadura militar que assolou o país desde 1964 por 21 anos, com seu núcleo em trabalhadores do interior de São Paulo, com sua principal liderança um nordestino pobre e organizado com a esperança dos espíritos progressistas do país contra as elites que dominam a política brasileira há séculos, realmente, trouxe razões sérias para os “donos do poder” se amedrontarem. Lembre da cena ridícula da Regina Duarte dizendo “eu tenho medo”. De forma uníssona, a direita no Brasil disse “nos temos medo”. Conhecido como “o maior partido de esquerda do mundo”, o PT ainda detinha um capital político formidável e inédito na história do país. Entretanto, na prática, o que estamos presenciando nos governos do senhor Luís Inácio Lula da Silva?

Desde que subiu ao poder o PT não arriscou nada radical. Implementou a política econômica vigente herdada dos governos FHC escolhendo a “linha de menor resistência” não afrontando os interesses de classe constituídos, internos e externos, focando o papel do Estado numa dualidade: por uma lado buscou capacitar melhor o mercado financeiro, marca do capitalismo global desde 1970. Os governos do FHC haviam apenas colocado os germes dessa transformação rumo à inserção no mercado financeiro internacional. Por outro lado, atua com a filantropia estatal. O programa Fome Zero, marca do marketing política de Lula, se equipara mais a caridade a lá Angelina Jolie do que uma política pública do Estado. Transparece o caráter típico da esquerda pós-política: ao capacitar o mercado financeiro e considerar o capitalismo como um horizonte intransponível, recorre-se a medidas paliativas “para inglês ver” que, numa primeira aproximação, fomenta a despolitização social deixando intactos os problemas estruturais da sociedade brasileira (estagnação econômica e salarial, desemprego crônico, vulnerabilidade externa, divisão de renda e de terra extremamente desigual, dependência de importados, aumento da produção de matérias-primas, etc.). Para um ícone da luta contra a ditadura militar, o governo Lula e a cúpula oportunista do PT afunda a esquerda sob o caráter “social” de medidas que reproduzem, sob o signo da democracia, as iniqüidades e as práticas violentas crônicas da sociedade brasileira desde tempo imemoriáveis.O governo Lula, ao focar-se na caridade estatal ao invés dos 10 milhões de empregos prometidos na campanha eleitoral, é marcado pelo continuísmo das políticas econômicas de enxugamento dos serviços públicos, alta taxa de juros, políticas monetárias e fiscais rígidas e abertura comercial buscando assegurar o lugar ao sol dos investidores externos.


III -

Quando o capitalismo não consegue vislumbrar mais transformações macroeconômicas (no sentido de uma maior acumulação e expansão), a funcionalidade do Estado de transforma. Para Lênin, o Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das classes. O Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de classe não podem ser objetivamente conciliados. E, reciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de classe são inconciliáveis. Nesse sentido, o limite da democracia é o Estado. Esse Estado não paira no ar ou tem uma ação autônoma aos interesses das classes. Na realidade, o Estado “normaliza” a submissão social impondo pela violência os limites de subversão da “ordem pública” harmônica e estável. Tudo se passa como se as forças armadas, a política, os juízes, as milícias latifundiárias ao exterminar os “inimigos internos” traz paz e saúde social.

IV-

O poder de definição da rotulação criminosa é uma questão de classe. O sujeito criminalizado – de forma geral, a pobreza – é a forma mais bem acabada de atribuição política daqueles que ferem a “ordem pública” sendo, em última análise, uma construção histórica do controle social. O crime, portanto, não é aleatório ou a-histórico. Ao contrário, advêm do processo de luta social para transformar as bases materiais que sustentam a necessidade de legitimação da ordem estabelecida além de (re)afirmar o poder de rotulação criminosa pela classe dominante e pelo poder burocrático, policial, militar, e, muitas vezes, paramilitar. Essa rotulação passa pela “forma” com que se estabelecem os inimigos da ordem – sindicalistas, terroristas, favelados, imigrantes, a pobreza, etc. O papel dos meios de comunicação na construção simbólica dos criminosos é clara quando pegamos o exemplo do MST. A atual ofensiva conservadora contra os integrantes do MST e o próprio MST pelos principais órgãos de construção de consenso e do “senso comum” (Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, Gazeta do Povo, Veja, Globo, etc. ) demonstra como o crise é político e definido segundo o horizonte ontológico da propriedade privada, da liberdade dos trabalhadores de vender sua força de trabalho em condições precárias, da visão parcial da classe capitalista e, finalmente, os “donos do poder” que se encontram no sistema democrático formado por juízes, o ministérios público, a polícia, o legislativo, executivo e o nostálgico judiciário. O enquadramento do criminoso, portanto, está dialeticamente ligado com a dinâmica da luta de classes que, sob o regime-sistema democrático capitalista, paradoxalmente para alguns, estabelece como criminoso qualquer um que tenha atuação política “desviante” ao padrão do pensamento único do fim da histórica sob o regime democrático. Aqueles contra a democracia são, portanto, criminosos potenciais que, de forma patológica, seriam “desviantes” do padrão da “ordem pública” do capitalismo democrático que se mostra como o horizonte da práxis transformadora da sociedade.

V-

Ao invés do avesso do neoliberalismo, o governo Lula se apresenta como a encarnação econômica e política do processo de transformação da democracia num estado de emergência econômico da qual a esquerda se encontra desencantada e melancólica. O lulismo se torna a ideologia dominante da esquerda brasileira numa espécie de fatalismo diante da não existência de um projeto coletivo alternativo de nação. Portanto, o desafio da esquerda é elaborar um projeto coletivo de transformação positiva da realidade estruturalmente dividida em classes. A “tensão” entre as classes é histórica e depende da intensividade da luta dos subalternos contra a “normalização” dos interesses dominantes abertamente contra os “inimigos internos”, muitas vezes chamados de terroristas, para a louvação do “senso comum anti-político” da classe média.

VI -

Assim como os Estados Unidos que acabaram por polarizar a disputa política entre dois partidos que, no final de contas, são farinha do mesmo saco, no Brasil o PT cria uma unidade dialética com o PSDB. Um não funciona sem o outro já que o condicionamento é mútuo. Criado como uma força extraparlamentar, hoje o PT encontra-se afundado na ideologia do “lulismo” enquanto presenciamos uma repolitização da direita e seus queridos Aécio Neves, Geraldo Alckmin, José Serra, Fernando Henrique (que, por hora, é o excluído da vez). A ofensiva da direita encontra seu estado embrionário na América Latina com o exemplo vivo de Honduras que, desde o golpe de estado da canalha fascista, matou mais de cem pessoas. Atentemo-nos.


VII –

As bandeiras sedutoras para esquerda atual escondem a incapacidade de transformação radical da sociedade capitalista contemporânea. Elas se reduzem a um capitalismo mais humano, social, ecológico, tolerante, multicultural. Muito bonito, mas no plano econômico e político passamos em nível global pelo aprofundamento da crise estrutural que tende a hibridização do capital com o Estado, o aumento da violência punitiva contra a pobreza, precarização do trabalho, expansão financeira, concentração de renda, ideologia contra o terrorismo, monopólio dos meios de comunicação e informação, auto-encarceramento da esquerda, favelização, desemprego crônico e, não menos importante, a possibilidade real de uma catástrofe ecológica. Qualquer uma dessas tendências não depende de mudanças paliativas microeconômicas da qual apenas técnicos poderiam calcular as probabilidades de melhora mínima dessas questões. O socialismo como alternativa viável ao sistema-regime capitalista é o processo social de autocontrole da atividade e da alocação do trabalho e de seus frutos para seus fins. Como Marx expressou, é o controle social pelos “produtores associados” que, para tal empreitada, necessita primeiramente negar o corpo social que controle a extração do trabalho excedente. Em nosso capitalismo subdesenvolvido que não tem compensações e nem alternativas, o axioma universal para superar o atual estado de coisas é mais válido do que nos países mais desenvolvidos: as classes dominantes, determinadas por seus interesses econômicos, políticos e culturais, logram seu padrão de estabilidade, paz social, “ordem pública”, organização do Estado, a repressão sobre a atividade política das classes subalternas. Contra esse processo, um projeto alternativo coletivo se coloca na ordem do dia. Atentemo-nos.



Alhures,

Saudações socialistas

Fernando Marcellino

02/10/09