Lulismo ou lógica ideológica-política do capitalismo democrático brasileiro
I-
Os Economistas políticos (Smith, Ricardo, Sismondi, etc.) foram a vanguarda de um período histórico de crise terminal do feudalismo. Por toda a Europa, com grande parte das forças medievais já combalidas e seus quadros institucionais numa falência generalizada, emerge um corpo científico conhecido como Economia Política que procura romper com o invólucro que protegia a sociedade medieval européia de forma radical. Com a crise da sociedade feudal, a concepção de como o produz sua existência também entra em crise. A religião produzindo a vida deixa de ser o horizonte para a emergência do trabalho como a capacidade do homem prover sua existência. Hoje não estaríamos, entretanto, presenciando a crise terminal da Economia Política? A “pós-modernidade” é o período em que “o ponto de vista do capital” não encontra nenhuma solução plausível para seus quadros institucionais e produtivos. É o momento histórico de esgotamento da sociedade baseada na produção do capital em que a burguesia não tem mais condições para dizer (e fazer) como deveria ser positivamente a vida social num crescente “non-valeur” de seus imperativos.
Nesse ponto, o governo Lula é um belo exemplo: o plano macroeconômico não poderia articular politicamente uma alternativa ao modo de acumulação predominantemente financeiro de capital restando um enfoque microeconômico baseado em políticas compensatórias e mais preocupado com o “social” do que a direita. Esse “não poderia” não quer dizer que o governo Lula foi arrastado para essa posição. Foi a cúpula oportunista do PT que assegurou que qualquer tipo de transformação passaria por um forte governo neoliberal. Portanto, verdadeiro significado do dito “não há alternativa” de Margareth Thatcher é: diante do aprofundamento da crise estrutural do capital “não há alternativa” senão políticas paliativas já que estamos presenciado a naturalização da macroeconômica neoliberal como a única possível – e claro de a esquerda oportunista deve aceitar essa prerrogativa como natural e inevitável. Escolhida principalmente pela cúpula oportunista, a conduta econômica e política do governo Lula coloca em marcha o continuísmo como marca central. Esse continuísmo, entretanto, é dinâmico e abre as portas para a expansão do modelo neoliberal. Ao desistir conscientemente de um projeto alternativo, o governo Lula se apresenta como uma entrega do país a interesses alheios aos da maioria da população. Em conseqüência, concordo com Leda Paulani: o Brasil vem se tornando a passos largos numa plataforma de valorização financeira internacional. O Estado democrático brasileiro atual se afirma sob a “aliança entre o Governo e a Bolsa” como diria Engels.
II -
Antes da posse de Lula, as elites brasileiras (e internacionais) tremeram nas bases. Tanto desespero para nada. Do ponto de vista do capital, o governo Lula é um exemplar da alternativa “possível” ao neoliberalismo. O fator ideológico é importante: quem desconfiaria das intenções do PT em transformar radicalmente a sociedade brasileira? Aquele partido que começou da mobilização de baixo para cima contra a ditadura militar que assolou o país desde 1964 por 21 anos, com seu núcleo em trabalhadores do interior de São Paulo, com sua principal liderança um nordestino pobre e organizado com a esperança dos espíritos progressistas do país contra as elites que dominam a política brasileira há séculos, realmente, trouxe razões sérias para os “donos do poder” se amedrontarem. Lembre da cena ridícula da Regina Duarte dizendo “eu tenho medo”. De forma uníssona, a direita no Brasil disse “nos temos medo”. Conhecido como “o maior partido de esquerda do mundo”, o PT ainda detinha um capital político formidável e inédito na história do país. Entretanto, na prática, o que estamos presenciando nos governos do senhor Luís Inácio Lula da Silva?
Desde que subiu ao poder o PT não arriscou nada radical. Implementou a política econômica vigente herdada dos governos FHC escolhendo a “linha de menor resistência” não afrontando os interesses de classe constituídos, internos e externos, focando o papel do Estado numa dualidade: por uma lado buscou capacitar melhor o mercado financeiro, marca do capitalismo global desde 1970. Os governos do FHC haviam apenas colocado os germes dessa transformação rumo à inserção no mercado financeiro internacional. Por outro lado, atua com a filantropia estatal. O programa Fome Zero, marca do marketing política de Lula, se equipara mais a caridade a lá Angelina Jolie do que uma política pública do Estado. Transparece o caráter típico da esquerda pós-política: ao capacitar o mercado financeiro e considerar o capitalismo como um horizonte intransponível, recorre-se a medidas paliativas “para inglês ver” que, numa primeira aproximação, fomenta a despolitização social deixando intactos os problemas estruturais da sociedade brasileira (estagnação econômica e salarial, desemprego crônico, vulnerabilidade externa, divisão de renda e de terra extremamente desigual, dependência de importados, aumento da produção de matérias-primas, etc.). Para um ícone da luta contra a ditadura militar, o governo Lula e a cúpula oportunista do PT afunda a esquerda sob o caráter “social” de medidas que reproduzem, sob o signo da democracia, as iniqüidades e as práticas violentas crônicas da sociedade brasileira desde tempo imemoriáveis.O governo Lula, ao focar-se na caridade estatal ao invés dos 10 milhões de empregos prometidos na campanha eleitoral, é marcado pelo continuísmo das políticas econômicas de enxugamento dos serviços públicos, alta taxa de juros, políticas monetárias e fiscais rígidas e abertura comercial buscando assegurar o lugar ao sol dos investidores externos.
III -
Quando o capitalismo não consegue vislumbrar mais transformações macroeconômicas (no sentido de uma maior acumulação e expansão), a funcionalidade do Estado de transforma. Para Lênin, o Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das classes. O Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de classe não podem ser objetivamente conciliados. E, reciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de classe são inconciliáveis. Nesse sentido, o limite da democracia é o Estado. Esse Estado não paira no ar ou tem uma ação autônoma aos interesses das classes. Na realidade, o Estado “normaliza” a submissão social impondo pela violência os limites de subversão da “ordem pública” harmônica e estável. Tudo se passa como se as forças armadas, a política, os juízes, as milícias latifundiárias ao exterminar os “inimigos internos” traz paz e saúde social.
IV-
O poder de definição da rotulação criminosa é uma questão de classe. O sujeito criminalizado – de forma geral, a pobreza – é a forma mais bem acabada de atribuição política daqueles que ferem a “ordem pública” sendo, em última análise, uma construção histórica do controle social. O crime, portanto, não é aleatório ou a-histórico. Ao contrário, advêm do processo de luta social para transformar as bases materiais que sustentam a necessidade de legitimação da ordem estabelecida além de (re)afirmar o poder de rotulação criminosa pela classe dominante e pelo poder burocrático, policial, militar, e, muitas vezes, paramilitar. Essa rotulação passa pela “forma” com que se estabelecem os inimigos da ordem – sindicalistas, terroristas, favelados, imigrantes, a pobreza, etc. O papel dos meios de comunicação na construção simbólica dos criminosos é clara quando pegamos o exemplo do MST. A atual ofensiva conservadora contra os integrantes do MST e o próprio MST pelos principais órgãos de construção de consenso e do “senso comum” (Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, Gazeta do Povo, Veja, Globo, etc. ) demonstra como o crise é político e definido segundo o horizonte ontológico da propriedade privada, da liberdade dos trabalhadores de vender sua força de trabalho em condições precárias, da visão parcial da classe capitalista e, finalmente, os “donos do poder” que se encontram no sistema democrático formado por juízes, o ministérios público, a polícia, o legislativo, executivo e o nostálgico judiciário. O enquadramento do criminoso, portanto, está dialeticamente ligado com a dinâmica da luta de classes que, sob o regime-sistema democrático capitalista, paradoxalmente para alguns, estabelece como criminoso qualquer um que tenha atuação política “desviante” ao padrão do pensamento único do fim da histórica sob o regime democrático. Aqueles contra a democracia são, portanto, criminosos potenciais que, de forma patológica, seriam “desviantes” do padrão da “ordem pública” do capitalismo democrático que se mostra como o horizonte da práxis transformadora da sociedade.
V-
Ao invés do avesso do neoliberalismo, o governo Lula se apresenta como a encarnação econômica e política do processo de transformação da democracia num estado de emergência econômico da qual a esquerda se encontra desencantada e melancólica. O lulismo se torna a ideologia dominante da esquerda brasileira numa espécie de fatalismo diante da não existência de um projeto coletivo alternativo de nação. Portanto, o desafio da esquerda é elaborar um projeto coletivo de transformação positiva da realidade estruturalmente dividida em classes. A “tensão” entre as classes é histórica e depende da intensividade da luta dos subalternos contra a “normalização” dos interesses dominantes abertamente contra os “inimigos internos”, muitas vezes chamados de terroristas, para a louvação do “senso comum anti-político” da classe média.
VI -
Assim como os Estados Unidos que acabaram por polarizar a disputa política entre dois partidos que, no final de contas, são farinha do mesmo saco, no Brasil o PT cria uma unidade dialética com o PSDB. Um não funciona sem o outro já que o condicionamento é mútuo. Criado como uma força extraparlamentar, hoje o PT encontra-se afundado na ideologia do “lulismo” enquanto presenciamos uma repolitização da direita e seus queridos Aécio Neves, Geraldo Alckmin, José Serra, Fernando Henrique (que, por hora, é o excluído da vez). A ofensiva da direita encontra seu estado embrionário na América Latina com o exemplo vivo de Honduras que, desde o golpe de estado da canalha fascista, matou mais de cem pessoas. Atentemo-nos.
VII –
As bandeiras sedutoras para esquerda atual escondem a incapacidade de transformação radical da sociedade capitalista contemporânea. Elas se reduzem a um capitalismo mais humano, social, ecológico, tolerante, multicultural. Muito bonito, mas no plano econômico e político passamos em nível global pelo aprofundamento da crise estrutural que tende a hibridização do capital com o Estado, o aumento da violência punitiva contra a pobreza, precarização do trabalho, expansão financeira, concentração de renda, ideologia contra o terrorismo, monopólio dos meios de comunicação e informação, auto-encarceramento da esquerda, favelização, desemprego crônico e, não menos importante, a possibilidade real de uma catástrofe ecológica. Qualquer uma dessas tendências não depende de mudanças paliativas microeconômicas da qual apenas técnicos poderiam calcular as probabilidades de melhora mínima dessas questões. O socialismo como alternativa viável ao sistema-regime capitalista é o processo social de autocontrole da atividade e da alocação do trabalho e de seus frutos para seus fins. Como Marx expressou, é o controle social pelos “produtores associados” que, para tal empreitada, necessita primeiramente negar o corpo social que controle a extração do trabalho excedente. Em nosso capitalismo subdesenvolvido que não tem compensações e nem alternativas, o axioma universal para superar o atual estado de coisas é mais válido do que nos países mais desenvolvidos: as classes dominantes, determinadas por seus interesses econômicos, políticos e culturais, logram seu padrão de estabilidade, paz social, “ordem pública”, organização do Estado, a repressão sobre a atividade política das classes subalternas. Contra esse processo, um projeto alternativo coletivo se coloca na ordem do dia. Atentemo-nos.
Alhures,
Saudações socialistas
Fernando Marcellino
02/10/09
Um comentário:
Rusche e Kirchheimer foram os primeiros, antes ainda de Foucault, a estabelecer as relaçoes entre prisao e fábrica em seu clássico "cárcere e fábrica'".
Neste sentido a noçao de paralaxe entre economia e política pode ser vislumbrada se olharmos esta relaçao como sintoma: a exploraçao de mais-valia da fábrica é regulada a partir da repressao a classe trabalhadora nas prisoes.
Pois bem, para além do raciocínio criminoloógico tradicionnal e, principalmente, para além do pensamento criminológico pós-moderno levinasiano, pensemos: nao é possível vislumbrar a história da relaçao cárcere e fábrica a partir de uma tríade hegeliana?
em primeiro lugar a fábrica "em si" enquanto uma instituiçao economica que dava seus primeiros passos no mundo ocidental sendo ela mesma também repressoora enquanto fábrica (como as workhouses inglesas ou a experiëncia anterior na holanda).
em segundo lugar a fábrica "para si" ou exteriorizada, ou seja, a prisao enquano um "AIE" do discurso economico fabril. Curioso aqui lembrar que a prisao é um fenomeno sociaal que nao passou por uma teoria prévia que a justificasse ideologicamente.
em segundo lugar a fábrica "em si e para si" na forma como o estado, hoje, tende a privatizar as prisoes, em tempos de crise, demonstrando a interferencia do Capital agora diretamente sob a instituiçao de controle que, outrora, era exclusiva do Estado. Claro que a reflexao de Rusche e Kirchheimer, bem como de Juarez Cirino, continua: o poder economico nao vai deixar de aproveitar a possibilidade de explorar mais-valia agora tambem na prisao... só que, desta vez, criando uma mao de obra muito mais barata do que a tradicional mao de obra fabril, sob o argumento estigmatizante de que estao a explorar trabalho de presos, ou seja, de párias!
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