domingo, 31 de janeiro de 2010

Por uma nova figura militante: vamos aprender com as quedas?

Tente de novo. Fracasse de novo. Fracasse melhor!

Samuel Beckett

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Penso que precisamos urgentemente de uma nova figura militante. Esse texto é uma contribuição nesse sentido. A busca pela nova figura militante é demandada para suceder aquela cujo lugar Lênin e os bolcheviques ocuparam no início do século passado. Naturalmente não são palavras finais sobre o tema que esta emergindo e necessita reflexão de todos para reconstruirmos uma transição viável ao socialismo.

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Com a entrada histórica da crise estrutural do capital, desde meados de 1970, uma estratégia ofensiva de transformação radical corresponde, em primeiro lugar, ao desconfortável fato negativo de que algumas formas de ação anteriores (“as políticas de consenso”, “pleno emprego, “a expansão do Estado de bem-estar-social”, “keynesianismo para todos” etc.) estão objetivamente bloqueadas, impondo reajustes profundos na sociedade como um todo – e não apenas em alguma parte específica. Estar partindo dessa “negatividade brutal” inicial não significa que os reajustamentos serão positivos, mobilizando as forças de transformação num esforço consciente para se apresentarem como portadoras de uma ordem social alternativa capaz de superar a sociedade capitalista em crise. Como essas mudanças exigidas são muito drásticas, em vez de prontamente aceitarmos o “salto para o desconhecido”, é mais provável que se prefira seguir a “linha de menor resistência” ainda por um tempo considerável, mesmo que isso signifique derrotas significativas para as forças socialistas. Por isso, como salientou István Mészáros, “somente quando as opções da ordem predominante se esgotarem se poderá esperar por uma virada espontânea para uma solução radicalmente diferente”. Esse “salto para o desconhecido” é correlato ao “salto de fé” de Kierkagaard que, não tendo a aprovação do Outro, é o momento em que o que era aparentemente impossível se materializa. Portanto, a lição de Rosa Luxemburgo continua mais válida do que nunca: não existem condições objetivas perfeitas para essa transformação radical já que elas são retroativamente criadas pelo próprio movimento. Assim como o amor, quem espera por tal transformação de forma “natural” espera para sempre.



Entrementes, essa práxis ofensiva necessita de uma bússola, uma visão que anime o que deve ser feito e por que. É uma lacuna que emerge entre o “movimento real” e a articulação com uma alternativa viável. Assim, o momento de crise profunda como a que vivemos é uma oportunidade histórica para se repensar profundamente a transição social na construção de uma alternativa radical em novas bases organizacionais, de consciência e ação. Que alternativa seria essa?



A lição que talvez sejamos forçados a aprender de nossas condições econômicas e políticas atuais é que um capitalismo humano, social, ecológico e verdadeiramente democrático e igualitário é mais irreal, ilusório e utópico do que o Comunismo. Assim, é tempo de voltar ao Comunismo? Entretanto, qual Comunismo? Ou então, um outro Comunismo é possível?



Vale frisar que stalinismo e o fracasso do socialismo real não invalidam o horizonte de emancipação radical que é o Comunismo. Por isso, é preciso reabilitar e ressignificar urgentemente o Comunismo. Stálin tornou uma ala do partido uma espécie de representação do Espírito Absoluto, perdendo qualquer capacidade de aprendizagem, um princípio socialista fundamental. Stálin introduziu duas novas características ao partido, que não estavam postuladas por Lênin, que intensificaram o seu monolitismo totalitário. Foram às sementes do stalinismo e que precisamos simbolizar e apreender criticamente para retomar o projeto Comunista hoje. Elas consistem em: 1) tornar as frações e minorias um “inimigo interno” incompatibilizando sua própria existência e 2) depuração dos elementos oportunistas. A primeira medida (adotada no X Congresso) procura tornar uma medida temporalmente específica em princípio permanente e, assim, extinguindo as diferentes tendências e minorias no interior do partido. A segunda medida busca assegurar uma composição do partido sempre favorável ao núcleo dirigente central. Essas duas características stalinistas par excellence necessitam ser verificadas constantemente em qualquer movimento anticapitalista e não apenas nos partidos políticos.



O Comunismo se apresenta como uma tarefa radical e imediata na escala que se pode: trabalho, município, bairro, centro de estudo, etc. Não podemos esperar por uma grande revolução para começar um processo de autoeducação sobre nossas capacidades de autogestão e organização coletivas. Como disse recentemente Alain Badiou, “no momento, o que interessa é a prática da organização política direta no seio das massas populares e de experimentar novas formas de organização” orientadas pela “idéia de uma sociedade cujo motor não seja a propriedade priva­da, o egoísmo e a avidez”. Entretanto, como o capitalismo está fermentando uma luta planetária para enfrentar sua crise, qualquer força social e política progressista não pode ficar estagnada ao local e parcial sendo, assim, necessário se conectar concretamente com uma coordenação de todas as resistências em todos os continentes. Sem dúvida um grande desafio pela frente: unidade organizativa na diversidade heterogênea anticapitalista global.



Voltando a Marx, o Comunismo não é um Ideal que vamos todos chegar felizes ou sem rupturas drásticas e sim o “movimento Real” de superação dos antagonismos existentes no atual tempo histórico. Esse “movimento real” é essencialmente traumático já que quebra o ordenamento acelerado da vida no capitalismo atual que, paradoxalmente, reduz a história ao imediato. Em A Ideologia Alemã Marx julga que esse processo passa por uma consciência comunista numa escala de massas:



Tanto para a criação em massa dessa consciência comunista quanto para o êxito da própria causa faz-se necessária uma transformação massiva dos homens, o que só se pode realizar por um movimento prático, por uma revolução; que a revolução, portanto, é necessária não apenas porque a classe dominante não pode ser derrubada de nenhuma outra forma, mas também porque somente com uma revolução a classe que derruba detém o poder de desembaraçar-se de toda a antiga imundice e de se tornar capaz de uma nova fundação da sociedade (p. 42)



Por essa definição, os Comunistas se definem como todos aqueles que trabalham incessantemente para produzir um futuro positivamente diferente daquele que o capitalismo pode proporcionar ou prometer num revolucionamento constante causado por sua atividade de construção dos fundamentos da revolução. Sob essa definição existem de facto milhões de Comunistas entre nós.



Naturalmente, não existe Comunismo sem Comunistas. Quem é o Comunista? Ele está engajado nas “mediações” que ligam as tarefas presentes com o futuro. No sentido comunista, essas “mediações” - instituições e organizações coletivas - demandam três características básicas: verificação constante da livre circulação de idéias e projetos (sempre no intento de expandir as práticas existentes), uma postura ofensiva socialista (diametralmente oposta da historicamente defensiva) que busca impor a construção de uma alternativa hegemônica diante da urgência histórica do aprofundamento dos antagonismos do sistema do capital e, não menos crucial, uma auto-crítica permanente que permeie pela aprendizagem todos os poros dessa instituição com o sentido de aperfeiçoar as relações entre consciência, organização e ação.



Diria também que o militante Comunista procura se acostumar a “pensar como massa” – enxerga onde está à falta e a preenche com o vazio. Não existe militante Ideal. Em termos lacanianos, todo militante é não-Todo. Sempre ser-faltante que no movimento produz novos significantes para a rearticulação da luta emancipatória. Isso quer dizer que um princípio fundamental do Comunista é a não-resistência que necessita de verificação permanente no movimento de forma cada vez mais disciplinada e sincera no sentido de um aperfeiçoamento e confiança coletiva.



O militante não é Uno. Ele é profundamente dividido. Ele não pode ser apenas inserido num partido ou num movimento social. São duas lógicas de militância que não podem ser combinadas numa síntese superior vulgar. É necessário estar em ambos e não reduzir um ao outro. Não fazer os movimentos sociais massa de manobra do partido e nem fazer do partido uma “segurança política” do movimento social. O desafio do militante é respeitar a diferença mínima existente entre eles para não forçar uma trágica unificação. Em outras palavras, o militante é um sujeito que, na realidade, é o entrelaçamento de duas subjetividades e que, ao manter ferozmente sua divisão, tem como garantia um discurso da universalidade. O real militante dessa universalidade é o destino para todos do que a constitui.



O que vemos hoje em alguns partidos de esquerda é exatamente o “pensamento partidário”, normalmente obtuso que se direciona pela lógica do poder enquanto também vemos em alguns movimentos sociais um “fetichismo do movimento” que não se orienta politicamente. É um grande desafio pela frente.



Concluindo, um ponto crucial ao militante é sua fidelidade a uma verdade que é um processo e não uma iluminação. Uma verdade é um processo concentrado e sério que jamais deve entrar em competição com as opiniões estabelecidas. Assim, desafiemos aqueles oportunistas que querem ser o grande Outro (sejam dos partidos ou dos movimentos sociais) e ser, assim, os Juízes Supremos da Verdade.



Boa militância a todos!

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Sobre Prinx

Enquanto estava indeciso sobre o futuro, Prinx se perguntava em que caminho estava andando. Quando suas inquietações se suspenderam percebeu subitamente que o próprio caminho que fazia era sua indecisão. Assim o caminho que tomava refletia sua indecisão – por mais que aparentemente nunca soube direito se estava em algum caminho prescrito ou não.

Tomar decisões conscientes que digam respeito ao futuro nunca foram fáceis para Prinx. Nunca soube ao certo se estava seguindo a chama de um novo céu ou estava descendo ao inferno para descobrir como matar o diabo. Na claridade suas decisões sempre foram nebulosas. Não sabia se era apenas ele ou todos que se moviam na existência dessa forma.

Ao esquecer que sua partida nunca era cedo o suficiente, suas quedas em nada eram brandas. Aprendeu a cair, mas sem o Ascenso desejado. Talvez a queda já fosse o impulso ao erro tão maldito que fazia esquecermos sua partida. Prinx estava confuso ao descobrir a potência da irracionalidade expressa pela própria realidade. Não podia mais harmonizar a vida como se as contradições não o cortassem ao meio a todo o momento. Ao invés de se despedaçar percebeu tardiamente que chegou tarde demais. Descobrira a falta! Descobrira o ardido salubre do vazio! Não poderia perder tempo com resoluções estéreis. Procurou personificar a unidade dos contrários e, ao fazer isso, Prinx nunca mais foi feliz. Ganhou a queda para perder o vôo do homem no próprio ar.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Marina Silva: já foi tarde!

Até a pouco tempo existiam chances reais que, pela articulação da cúpula do PSOL, a Sra. Marina Silva fosse nomeada como pré-candidata a presidência numa aliança PV-PSOL. Essa chance hoje se esgotou, principalmente pela força da militância de esquerda do PSOL em denunciar esse absurdo como as aparições públicas de Marina Silva e de alguns personagens históricos do PV. Todas essas aparições mostraram o óbvio: tanto o PV como Marina Silva estão lutando ativamente por um “ecocapitalismo apolítico” cuja melhor expressão é a aliança DEM-PV articulada pelo ícone reacionário-chique Fernando Gabeira no Rio de Janeiro.


Como contraponto a essa barbárie o nome de Plínio de Arruda Sampaio fora colocado desde o 2º congresso do PSOL, em agosto do ano passado como uma alternativa real à disputa dualista entre PT e PSDB. Seu nome tem recebido adeptos importantes de todas as regiões do país e até internacionalmente – Raul Marcelo, Marcelo Freixo, Carlos Nelson Coutinho, Francisco de Oliveira, bispo D. Luiz Flávio Cappio, D. Tomás Balduíno, Fábio Konder Comparato, Aziz Ab´Saber, Heloísa Fernandes, Carlos Dinnazi, István Mészáros, Alfredo Bosi, Caio Navarro de Toledo, François Chesnais, Ricardo Antunes, Jorge Grespan, Paulo Arantes, Virgínia Fontes, Leandro Konder e mais incontáveis outros.


Nesse tempo muito se discutiu entre Marina Silva e candidatura própria. Entretanto, esse debate foi desnorteado já que a opção real que existia era entre Marina e Plínio. Hoje, dia 21 de janeiro, na reunião da executiva nacional, foi aprovado por unanimidade o encerramento de negociações com o PV sendo oficializada três pré-candidaturas: Plínio, Babá e Martiniano Cavalcanti.


Com esses três nomes em jogo, a verdadeira pergunta para as discussões no PSOL parece ser agora: quais desses nomes têm a potencialidade política real de reorganização da esquerda brasileira, construção de um programa anticapitalista amplo com diversos movimentos sociais e inserção social-histórica para ser mais bem sucedido nas eleições do que Heloísa Helena foi em 2006? O desafio é grande (para não dizer enorme) para qualquer um deles e depende de um engajamento de todos no partido e fora dele para que o melhor nome seja escolhido.


Aquele que está conseguindo representar uma política de alianças centrada nos partidos da Frente de Esquerda Socialista (PSOL, PCB e PSTU) e nos setores do movimento de massas comprometidos com uma intervenção transformadora na luta de classes com um enorme potencial de reorganização de forças políticas e sociais é Plínio Arruda. Esperemos dos outros dois pré-candidatos essa mesma tarefa para o aprofundamento de um projeto político que seja uma alternativa ao Brasil lulista contemporâneo.

Iniciamos uma década que tem tudo para ser apocalíptica

Iniciamos uma década que tem tudo para ser apocalíptica. Alguns atentos observadores apontam 2010-2020 como tempo de mudanças substanciais na ordem mundial, principalmente no que diz respeito ao ordenamento do sistema financeiro internacional após 2008, ao processo de ampla militarização, esgotamento dos recursos naturais, novas formas de apartheid (muros, favelas, guetos, etc.), penalização da pobreza e dos movimentos de transformação social, desemprego crônico, novos desenvolvimentos tecnológicos (especialmente a biogenética), incapacidade sistêmica de apropriação privada da propriedade intelectual e, não menos importante, o corte radical da relação aparentemente natural entre capitalismo e democracia-liberal. Esse conjunto de processos, dialeticamente interconectados, demonstra os limites do capital como um todo.

Os limites do capital não como uma parede. Muito menos apontam para um colapso iminente ou uma implosão da civilização capitalista. Ao contrário, os limites do capital manifestam os antagonismos existentes e concretos de certa configuração histórica em desdobramento. Quando o capital ultrapassa seus limites emerge uma crise sempre em proporção mais ampliada que a anterior. Na crise de meados de 1970, a “saída da crise” foi a neoliberalização – financeirização, privatização, quebra do padrão dólar-ouro, expansão do crédito, liberdade aos capitais, desregulamentação, precarização e feminização do trabalho, etc. – da qual nos encontramos no fim da forma que tomou historicamente. Em outras palavras, a “saída da crise” delimita como irá ser o padrão de desenvolvimento até a próxima crise. Cada crise tem respostas diferentes e, assim, não permite grandes generalizações. Não é possível entender a crise de 2008 como um novo 1873 ou 1929. Para a crise de 2008 foram necessárias todas as outras crise financeiras existentes no capitalismo, mas sua lógica e funcionalidade se transforma historicamente.

Momentos de crise são momentos cheios de oportunidades para se construir o processo de transição socialista em novas bases de consciência, organização e ação. Do ponto de vista do capital, crise é um momento de autocrítica ferrenha em que a classe dominante busca restabelecer as bases de extração da mais-valia aprofundando a concentração de capital com a mediação do Estado. Em tempos de crise, portanto, o papel central do Estado como “última instância” do capital floresce com toda a força com uma posição política rígida (mesmo nas democracias): expressamente contra a sublevação popular da “ordem pública” além de ajudar na coordenação da “saída da crise” do ponto de vista midiático-empresarial.

Como disse Francisco Teixeira, na atual fase de acumulação sem desenvolvimento, na qual o capitalismo atinge os limites de sua expansão histórica, não só é difícil manter as conquistas históricas da classe trabalhadora, como também avançar com elas, no sentido de mais emprego, de relações estáveis de trabalho e de aumento no poder de compra dos salários. É preciso ir além da luta contra os efeitos negativos do trabalho e reinscrever na ordem do dia, como estratégia prioritária, a luta pelo socialismo. A pergunta que fica é: como expropriar o excesso de capital (equipamentos, trabalho, etc) para atender as necessidades humanas?

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Todos com Bensaïd

Todos nos entristecemos com a morte de Daniel Bensaïd. Sempre é muito impressionante ler Bensaïd pelo número de debates com que ele tinha um conhecimento profundo além de estar ativamente em criativas discussões com os teóricos atuais vivos da esquerda como Alain Badiou, Slavoj Zizek, Judith Butler, Michael Löwy, Ernesto Laclau, David Harvey, Fredric Jameson, Alex Callinicos, John Holloway, Toni Negri, Perry Anderson, Zigmunt Bauman, etc. Além deles também debate com Foucault, Derrida, Bordieu e a nova escória da filosofia francesa como Bernard Levy e André Glucksman. Sem dúvidas, Bensaid foi um homem voltado para a ação de transformação em seu tempo.



Retomo aqui um debate em que ele estava inserido e que, sem dúvida, é importantíssimo para abrir brechas em nossa era pós-política do “fim da história” da democracia-liberal: o debate sobre a natureza do stalinismo.



Para Bensaïd temos como desafio uma discussão aprofundada sobre a noção de totalitarismo em geral e o “totalitarismo burocrático” exposto na máxima de Trotsky “A sociedade sou eu!”.



“pensar o stalinismo, não como conseqüência inevitável de Outubro, mas como uma contra-revolução burocrática enraizada em contradições sociais colossais, permite dirigir o caráter fatalista da história. Contra-reformadores liberais e stalinistas arrependidos concordam em ver na reação stalinista o desenvolvimento genético natural da revolução bolchevique. Também chegam a essa conclusão os “renovadores” pós-stalinistas, quando pensam o stalinismo como “desvio teórico” e não como uma terrível reação social”.



Penso que Bensaïd tem uma extrema preocupação com o “movimento real” entre Lênin e Stálin. Pensar que o stalinismo seria um “desvio teórico” ou uma “traição” lembraria “a procura de um pecado original. Ela leva não só a uma liquidação do “leninismo”, mas também, em grande medida, a uma renúnica ao marxismo crítico, ou mesmo à herança do Iluminismo: da culpa de Lênin logo se remontou à “culpa de Marx” e mesmo à “culpa de Rousseau”.



A preocupação com esse processo histórico tem um caráter prático já que o esclarecimento sobre o “desastre obscuro” do stalinismo, como Badiou e Zizek chamam, “permitiria evitar que um uso vulgar e extremamente elástico servisse para fazer da oposição entre democracia puta e totalitarismo indefinido a unida linha divisória legítima de nosso tempo”. Contra a chantagem fukuyamista – democracia ou totalitarismo? – temos que repensar profundamente “qual democracia?” e “qual totalitarismo?” para não cairmos na democracia-liberal como limite da história. Penso que Bensaïd nos brinda com um Axioma Universal para a esquerda hoje: “a democracia socialista não é solúvel no estatismo burocrático”. Precisamos urgentemente verificar esse axioma na práxis política e social.



Para quem tiver interesse em conhecer esse formidável militante recomendo a obra dele. No Brasil temos traduzidos poucos livros de sua obra com mais de 30 títulos que vão de temas desde 1968, Walter Benjamin, o surrealismo, os trotskismos, a privatização do mundo, etc:



Marx, o intempestivo: grandezas e misérias de uma aventura crítica. Civilização Brasileira, 1999.



Marxismo, modernidade e utopia (com Michael Löwy). São Paulo, Xamã, 2000.



Os irredutíveis: Teoremas da resistência para o tempo presente. Boitempo, 2008.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

2010 – “Um outro Comunismo é possível?”

O ano de 2010 será um ano de grandes viradas políticas e econômicas no plano internacional. Estamos diante de um aprofundamento da crise crônica de superprodução mundial, um iminente estouro no sistema financeiro internacional, militarização regional, esgotamento dos recursos naturais renováveis, criminalização dos movimentos sociais e políticos, estreitamento dos interesses entre Capital e Estado, aumento do desemprego, precarização do trabalho, crescente desigualdade social e internacional, etc. O que falta nesse mapeamento geral é efetivamente “apenas” a esquerda.



A turbulência da crise financeira comprovou o refluxo político – neoliberalização e governo Lula no Brasil – das últimas décadas e a desordem ideológica, política e organizacional da esquerda. O trauma foi tão grande que deixou muito gente ainda mais atordoada que antes. Assim, grande parte da esquerda acabou por não sinalizar as ações coletivas que poderiam desembocar numa luta anti-capitalista efetiva e ampla.



Em outras palavras, a condição defensiva da esquerda mostrou sua esterilidade política. A esquerda bateu num muro – os limites históricos do capital. Alguns ainda estão confusos com a forte batida e outros estão trabalhando na negação desse muro conjuntamente com a afirmação de uma “nova forma histórica”. Por estarmos nas primeiras etapas da crise mundial, o sacudido foi tanto mostrou muito mais a impotência da esquerda do que sua organização revolucionária. Retomemos um pouco o debate.



Tese: a atual esquerda que se auto-enclausura em reivindicações como “mais tolerância”, “mais direitos humanos”, “mais democracia” continua essencialmente nos horizontes da social-democracia clássica. Desconsiderando a crise estrutural do capital que se aprofunda e seus antagonismos explosivos, aceitam explicitamente uma quebra radical no aspecto revolucionário das reivindicações sociais do socialismo dando a elas uma feição democrática. As palavras de Marx parecem ressoar perfeitamente sobre as diretrizes políticas dos movimentos emancipatórios que, sob o Significante-Mestre da democracia liberal, desconsideram a progressiva atuação excessiva do Estado em nome da democracia e da tolerância:



O caráter peculiar da social-democracia resume-se no fato de exigir instituições democrático-republicanas como meio não de acabar com os dois extremos, capital e trabalho assalariado, mas de enfraquecer seu antagonismo e convertê-lo em harmonia. Por mais diferentes que sejam as medidas propostas para alcançar esse objetivo, por mais que sejam enfeitadas com concepções mais ou menos revolucionárias, o conteúdo permanece o mesmo. Esse conteúdo é a transformação da sociedade via democrática, porém uma transformação dentro dos limites da pequena burguesia. Só que não se deve formar a concepção estreita de que a pequena burguesia, por princípio, visa a impor um interesse egoísta. Ela acredita, pelo contrário, que as condições particulares para sua emancipação são as condições gerais sem as quais a sociedade moderna não pode ser salva nem evitada a luta de classes... O que os torna representantes da pequena burguesia é o fato de que sua mentalidade não ultrapassa os limites que esta não ultrapassa na vida, de que são conseqüentemente impelidos, teoricamente, para os mesmos problemas e soluções para os quais o interesse material e a posição social impelem, na prática, a pequena burguesia (Marx, 18 Brumário, p. 54, 55).



Nesse sentido, não é exatamente essa crença na forma democrática para a emancipação social que caracteriza o reformismo – impregnado na esquerda - hoje? Os argumentos utilizados são basicamente os seguintes: a sociedade contemporânea é caracterizada por uma crescente fragmentação, uma diversificação dos estilos de vida, uma multiplicação das identidades, uma pluralidade de experiências. Nesse mundo “pós-moderno” o antagonismo de classe se dissolveu nessa crescente diversidade tornando-se uma diferença como as outras. Como conseqüência, qualquer concepção de Universalidade teria ficado para trás. Essas mudanças ampliaram enormemente as oportunidades de escolha, tanto no nível do consumo quanto na possibilidade de criação de estilos de vida variados. A esquerda, a partir daí, deve criar suas políticas baseadas na multiplicidade e na diversidade. É necessário, portanto, abrir mão da noção de socialismo por algo mais abrangente: a democracia que não privilegia o conceito de classe. A questão é: o elogio as diferenças e identidade pós-moderna não revela suas limitações, teóricas e políticas, quando trata exatamente da situação de classe numa visão democrática? É possível imaginar as diferenças de classe sem exploração e dominação? A “diferença” que define uma classe como “identidade” é, por definição, uma relação de desigualdade e poder, de uma forma que não é necessariamente a das “diferenças” sexual ou cultural. Uma sociedade verdadeiramente democrática tem condições de celebrar diferenças de estilo de vida, de cultura ou de preferência sexual; mas em que sentido seria “democrático” celebrar as diferenças de classe? Se se espera de uma concepção de liberdade ou igualdade adaptada a diferenças culturais ou sexuais que ela amplia a concepção de liberdade humana, pode-se fazer a mesma afirmação de uma concepção de liberdade e igualdade que acomode as diferenças de classe?



Estranhamente (mas não tanto), nessas novas teorizações sobre o capitalismo contemporâneo, o que desaparece é o próprio capitalismo aceitando-o como futuro inexorável (que tipo de ações e organização em conseqüência?). A tentativa de suprir a lacuna de classe, portanto, se direcionou para sua supressão intelectual numa miríade de identidades e diversidades politicamente "fukuyamistas".



Tese 2: A lição que talvez sejamos forçados a aprender de nossas condições econômicas e políticas atuais é que um capitalismo humano, social, ecológico e verdadeiramente democrático e igualitário é mais irreal e utópico do que o Comunismo. Entretanto, qual Comunismo? Um outro Comunismo é possível?



Entrementes, aonde vai o capitalismo também vai a Idéia Comunista. O Comunismo é a alternativa específica ao capitalismo. Sem o capitalismo, não precisamos do Comunismo; aceitamos conceitos muito difusos e indeterminados de democracia que não se oponham especificamente a nenhum sistema identificável de relações sociais, na verdade nem chegam a reconhecer um sistema assim. Nada permanece além de uma pluralidade fragmentada de opressões e de lutas emancipatórias. Assim aquele que se afirma como projeto mais inclusivo do que o Comunismo na verdade é o menos inclusivo. Em vez de aspirações universalistas do Comunismo e da política integradora da luta contra a exploração de classe, temos uma pluralidade de lutas particulares que terminam na submissão ao capitalismo. É possível que o novo pluralismo esteja, na verdade, se inclinando na direção da aceitação do capitalismo, no mínimo com a melhor ordem social a que teremos acesso. Aqui a divisao entre esquerda e direita está se modifiicando consideravelmente nos últimos anos.



Atendemo-nos nesse ponto exatamente porque talvez esteja na hora de novas políticas emancipatórias compostas por uma explosiva combinação de diferentes agente e não um particular. Vivemos em tempos apocalípticos, tempos de emergência, de “estado de exceção” em que o fim está próximo e podemos apenas nos preparar para ele.



Uma questão relevante é que o “desastre obscuro” do stalinismo e o fracasso do socialismo real não invalidam o horizonte de emancipação radical que é o Comunismo. Por isso, é preciso reabilitar e ressignificar o Comunismo. Mas como? Socialmente. Como disse recentemente Badiou, “no momento, o que interessa é a prática da organização política direta no seio das massas populares e de experimentar novas formas de organização” orientadas pela “idéia de uma sociedade cujo motor não seja a propriedade priva­da, o egoísmo e a avidez”. Nesse sentido ainda, enfatizaria que apenas a “violência popular” pode permitir as classes expropriadas se fazerem ouvir nas democracias-liberais contemporâneas. Nessa “violência popular” se impõem uma severa (e justa) crítica as experiências socialistas a partir das próprias ações coletivas, isso é, na tríade - consciência, organização e ação - temos como desafio a verificação constante dos princípios socialistas – contra o sectarismo stalinista, por exemplo. Por isso verificarmos nossas ações contra o centralismo político revestido de “verticalismo anti-democrático” fazendo com que o limite interno da democracia se imponha a si mesma (a cada tendência, organização, etc.) e não um limite exterior imposto desde cima ou fora dela é um desafio emancipatório que, acredito eu, temos que lidar de frente.



Contra o dogmatismo e sectarismo que os militantes de esquerda necessitam lutar aqui e agora, numa recente carta endereçada por Alain Badiou a Slavoj Zizek, encontramos uma bela definição não apenas do que é ser comunista, como ainda do momento atual do comunismo perante o seu próprio “fator” como invariante histórica de emancipação - sendo que outra invariante a humanidade não dispõe:


“Nós encontramo-nos no limiar de um ponto de método essencial e no qual, creio-o bem, não há entre nós nenhum desacordo de princípio. Tratando-se de figuras históricas como Robespierre, Saint-Just, Babeuf, Blanqui, Bakounine, Marx, Engels, Lenine, Trotski, Rosa Luxemburgo, Estaline, Mao Tse-Tung, Chou Enlai, Enver Hoxha, Guevara, Castro e alguns outros (e penso nomeadamente em Jean Bertrand Aristide [Haiti]), é ponto capital, sobre todos eles, nada ceder perante as tentativas de criminalização reacionárias ou perante as anedotas eriçadas com que o capital os pretende fechar e anular. Nós podemos e devemos discutir entre nós (um ‘nós’ que sinaliza aqueles para quem o capitalismo e as suas formas políticas são um horror, um ‘nós’ que nós somos para quem a emancipação igualitária é a única máxima de valor universal) o uso que fazemos, ou não fazemos, dessas figuras históricas. Essa discussão pode ser eventualmente viva e fortemente antagônica, mas ela dá-se ‘entre Nós’, e a nossa regra opõe-se absolutamente a toda a conspiração de latidos do adversário”.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Reorganizando a esquerda anti-capitalista: uma pequena contribuição diante da crise institucional contemporânea dos partidos e movimentos políticos

No último texto chamando "por que Lênin teorizava?" enfatizei que uma das crises da qual vive o marxismo hoje é uma crise de sua base filosófica: o materialismo dialético. Muita fala é gasta em análises vulgares e mecanicas da realidade social, por mais que sejam feitas afirmando que sao "análises concretas da situação concreta". Não iremos, por hora, retormar essa crise. Tretemos de outra igualmente importante: a crise do marxismo que se encontra nas instituições de transformação social. Para retomarmos esse debate para nossos dias uma primeira proposição seria: não existe teoria Universal do Partido, um único modelo de organização que possa ser aplicado em condições distintas.



Lênin sempre enfatizou a existência de duas consciências: a “socialista” e a “tradeunionista”. A primeira trata-se da “consciência do antagonismo irreconciliável entre seus interesses e todo o regime político e social contemporâneo”. A consciência de classe implica, assim, certa compreensão das relações entre todas as classes da sociedade atual. A segunda se distingue como a “convicção de que é necessário agrupar-se em sindicatos, lutar contra os patrões, reclamar do governo a promulgação de tais ou quais leis necessárias para os trabalhadores, etc”. Trata-se de uma luta que não coloca em questão o regime social e político esperando apenas por mudanças paliativas e obter melhorias nas condições de venda da força de trabalho. Em termos de consciência temos duas formas de entender as instituições de transformação política, como o PSOL.



Lênin desenvolve a teoria da “instância exterior” que promove a ultrapassagem da consciência tradeunionista. Lênin sempre chamou atenção para as possíveis emergências de “tradeunionismo” no interior dessa “instância exterior”. Percebeu isso ao dizer, no final da vida, que a URSS estava se tornando não uma ditadura do proletariado, mas uma ditadura do Partido. Parece que a questão que necessitamos simbolizar hoje é a seguinte: o “movimento Real” entre Lênin e Stalin e não fetichizar Lênin ou demonizar Stálin.



O modelo leninista de partido tinha quatro cinco fundamentais: 1) um destacamento consciente da classe que, ao mesmo tempo em que se identifica com ela, se distingue organicamente dela; 2) revolucionários profissionais que militam por inteiro pela revolução; 3) representar o estágio máximo de organização da classe trabalhadora; 4) a vida interna do partido de conduz pela disciplina consciente (e não de Quartel) e rigorosa; 5) o partido dirige a luta das massas não substituindo-las, mas cumprindo seus objetivos. Como dizia Rosa Luxemburgo sobre essa forma-partido, “o partido de Lênin foi o único que compreendeu as exigências e o dever de um partido revolucionário... Tudo que um partido deve demonstrar em termos de coragem, energia, clarividência revolucionária, foi exibido com plenitude por Lênin... Sua insurreição de outubro não foi só a verdadeira salvação da revolução russa, como também a salvação da honra do socialismo internacional”. Assim, um das causas do sucesso da revolução russa foram as ações contra o centralismo político revestido de “verticalismo anti-democrático” fazendo com que o limite interno da democracia se imponha a si mesma (a cada tendência, organização, etc.) e não um limite exterior imposto desde cima ou fora dela.



A pergunta que fica é: o que o modelo de Stálin trouxe de novo e que, assim, temos que constantemente verificar sua presença nas instituições sociopolíticas contemporâneas? Stálin tornou uma ala do partido uma espécie de representação do Espírito Absoluto, perdendo qualquer capacidade de aprendizagem, um princípio socialista fundamental. Stálin introduziu duas novas características ao partido, que não estavam postuladas por Lênin, que intensificaram o seu monolitismo totalistário. Foram as sementes do “desastre obscuro” do stalinismo e que precisamos urgentemente apreender críticamente para retomar o projeto Comunista hoje. Elas consistem em: 1) tornar as frações e minorias um “inimigo interno” incompatibilizando sua própria existência e 2) depuração dos elementos oportunistas. A primeira medida (adotada no X Congresso) procura tornar uma medida temporal em princípio permanente e, assim, extinguindo as diferentes tendências e minorias no interior do partido. A segunda medida busca assegurar uma composição do partido sempre favorável ao núcleo dirigente central. Nessas duas características stalinistas par excellence estamos adentrando numa mistura entre sectarismo, burocratismo e oportunismo crônico.



No caso do burocratismo, a formalização da prática é sua característica mais fundamental. A práxis burocrática se afirma quando o formalismo dominem, ou, para ser mais exato, quando o formal se converte no seu próprio conteúdo barrando o movimento existente. Marx dizia que a prática burocratizada é “dar o formal como conteúdo, e o conteúdo como formal”. Lênin lutou até o final da vida contra o burocratismo. Em 1919 ele escreve no Projeto de Programa do Partido “a continuação da luta contra o burocratismo é uma condição necessária e vital para o êxito da edificação socialista”. Sem sombra de dúvidas uma lição que precisamos retomar urgentemente verificando-a constantemente. Como está essa questão no PSOL?



A concepção leninista de partido, com a segurança do direito de tendência, pondo em primeiro plano a democracia interna para garantir uma relação justa entre direção e base, foi rompida radicalmente por Stálin. Ao quebrar o acento na livre circulação de idéias e alternativas políticas no interior do partido numa relação horizontal para uma participação consciente de todos os militantes, Stálin produziu uma tragédia histórica da qual nao podemos isenta-lo e nem muito mesmos aqueles que agem como tal ainda hoje em nossos partidos e movimentos políticos.



Retomando Lênin, a práxis revolucionária se dá numa tríade formada por consciência, organização e ação. Quando uma delas ganha autonomia – seja por fatores externos ou internos - todo o conjunto fica capenga. Contra o sectarismo, burocratismo ou autoritarismo, um partido revolucionário só se sustenta com uma democracia interna ampla rumo uma crescente ligação positiva entre consciência, organização e ação.

Por que Lênin teorizava?

Precisamos urgentemente de uma teoria revolucionária explícita para nossos tempos. A pergunta “que fazer?” de Lênin demanda respostas.



Como a esquerda pode negociar com a dinâmica da atual crise? A narrativa dominante sobre a atual crise (e que grande parte da esquerda aceita como fato) diz que ela teve como causa a atuação excessiva de alguns capitalistas financeiros internacionais ambiciosos e que, assim, a solução se encontra num novo pacto regulatório entre a “economia real” e a “economia financeira” mais humano, tolerante, ecológico e harmônico. Essa saída ideológica além de isentar o próprio sistema capitalista de culpa, tem graves conseqüências políticas. Uma delas é a ascensão de um novo conservadorismo que se projeta numa mistura entre a terceira via (que eterniza a democracia-liberal) e populismo de extrema-direita com seu alvo voltado contra o inimigo: terrorista, imigrante, favelado, militante de esquerda, refugiado, etc.



Uma pergunta corrente é: o capitalismo poderá sobreviver a essa crise? Indubitavelmente sempre respondo: sem dúvida alguma! A questão é: a que custo? Também sem dúvidas com o custo de uma maior expropriação dos direitos do trabalho num intensificação da atual precarização generalizada, expansão do crédito (e dívidas), fundos de pensão, maior degradação ambiental, aumento das desigualdades de classe e, para o sucesso disso tudo, um aumento na repressão policial e política.

Então, que problemas temos pela frente? Além dos problemas das instituições de transformação social contemporâneas, uma das principais crises em que o marxismo se encontra hoje é de cunho teórico. A crise do marxismo não se deve apenas as derrotas políticas dos movimentos marxistas, mas também pelo declínio do materialismo dialético como base filosófica do marxismo.



Nas famosas Teses sobre Feuerbach, em que se verifica uma das rupturas do pensamento de Marx com todo o pensamento filosófico anterior, ele escreve que “os filósofos até hoje se contentaram em interpretar o mundo de diferentes formas, entretanto, trata-se de transformá-lo”. Contra a “razão stalinista” que se fixa apenas no processo de transformação, é necessário enfatizar a via de mão dupla entre teoria e prática. Marx nunca negou que uma filosofia idealista faça parte da realidade. Entretanto, se se trata de transformar o mundo, é preciso rejeitar a teoria que é mera interpretação e aceitar a filosofia ou a teoria que é prática, isto é, vê o mundo como objeto da práxis.



Todos nós sabemos a clássica frase de Lênin de Que fazer?: “sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário possível”. O outro lado dessa frase encontra-se em “esquerdismo” e não é tão conhecida: “uma teoria revolucionária correta só se forma de maneira definitiva em estreita conexão com a experiência prática de um movimento verdadeiramente de massas e verdadeiramente revolucionário”. Isto é, a teoria necessita da prática não só para surgir e verificar-se nela, como também para formar-se “de uma maneira definitiva”. Esse é o “a mais” de Lênin. Lênin opera com uma concepção de práxis quanto ao fazer teoria, ao organizar, dirigir e desenvolver uma prática revolucionária e, não menos importante, reflete sobre a própria práxis. Assim a concepção leniniana de práxis supõe três coisas fundamentais: uma concepção teórica cuja especificidade vem de sua unidade com a prática, uma visão da prática que provem de unidade com a teoria e, finalmente, a reflexão sobre a própria unidade tanto de uma como da outra sobre a práxis.



Entretanto, essa práxis necessita de uma bússola, uma visão que anime o que deve ser feito e por que. É uma lacuna que emerge entre o movimento real e a articulação com uma alternativa viável. Aqui algumas perguntas sobre essa alternativa, do ponto de vista da esquerda, são essenciais: É tempo de voltar ao Comunismo? Se a resposta for afirmativa, que Comunismo seria esse? Assim, parafraseando o Fórum Social Mundial, “um outro Comunismo é possível”?



O Comunismo é visto hoje como um sinônimo de Totalitarismo. Esse discurso “fukuyamista” só faz sentido quando a democracia-liberal contemporânea torna-se o horizonte ontológico da humanidade. Apenas mudanças paliativas e assistencialistas seriam possíveis e, assim, lutemos todos dentro do jogo democrático – por mais que seja essa mesma democracia o principal obstáculo a transformação social radical hoje com suas políticas de criminalização dos movimentos sociais e da pobreza, sua incapacidade crônica de prover condições mínimas de vida, saúde e educação no sentido de reduzir as desigualdades sociais, o desenvolvimento de aparelhos de controle amplo como militarização e novos mecanismos próprios de um estado de exceção, etc.



Para Marx o Comunismo não é um Ideal que vamos todos chegar felizes ou sem rupturas drásticas e sim o “movimento Real” de superação dos antagonismos existentes no atual tempo histórico. Esse “movimento real” é essencialmente traumático já que quebra o ordenamento acelerado da vida no capitalismo atual que, paradoxalmente, reduz a história ao imediato. Em síntese, o Comunismo persegue superar o capitalismo criando um modo inteiramente diferente de produção e distribuição de serviços e riqueza. Por essa definição, os comunistas se definem como todos aqueles que trabalham incessantemente para produzir um futuro diferente daquele que o capitalismo pode proporcionar ou prometer histericamente. Com essa definição existem de facto milhões de comunistas ativos entre nós. Por que não?

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

A ideologia da “traição”: um mal-entendido histórico

Na incapacidade de efetuar um severa auto-crítica, ainda hoje grande parte de esquerda costuma falar dos erros históricos de orientação política como “traição”. Essa desculpa personalista costuma acompanhar os sectários Juízes Supremos da Verdade Revolucionária que, em qualquer mudança no percurso inesperada, não deixam de apontar à famosa “traição”. Como sabemos, a questão da “revolução traída” é muito caro a Trotski. Os autores e pessoas que sofrem sua influência (Mandel e Deuscher, por exemplo) têm a tendência de utilizar a categoria “traição” para entender algum aspecto em todas as revoluções como, por exemplo, os “funcionários políticos e burocratas” que sufocaram a “democracia direta” no curso da revolução francesa. No seu ingênuo dogmatismo, aqueles que sufocam o movimento de transformação e traem a revolução são sempre os outros. Aqueles ordinários malditos! Aqui o dogmatismo se reveste de oportunismo cínico. Em lacanês, oportunismo é querer ser o grande Outro que vai nortear todo o movimento e, assim, os desvios são considerados “traições” que, dependendo da fúria fundamentalista, devem ser punidos antes que seja “tarde demais”.



Outro exemplo seria Stálin. Conjuntamente com a terceira via fukuyamista muitos esquerdistas ainda culpa Stálin pelo desastre da União Soviética. Sentem ao mesmo tempo um repúdio a experiência soviética e apontam a traição por parte de Stálin como causa do autoritarismo instalado com o desdobramento do processo revolucionário. Nesse ponto não existe diferença entre eles. Recentemente Domenico Lusurdo fez uma pergunta que não quer calar: como um “traidor” conseguiu dar uma poderosa contribuição ao processo de emancipação dos povos coloniais e, no que toca ao Ocidente, à derrubada do antigo regime e à edificação do Estado social?



Pintando Stálin como um traidor do “ideal socialista”, podemos cair, como Trotsky caiu, num idealismo abstrato profundo. Num texto no final da vida Trotsky escreveu: “a verdadeira família socialista, liberada pela sociedade dos pesados e humilhantes fardos da vida cotidiana, não terá necessidade de nenhuma regulamentação e a mera idéia de leis sobre divórcio e sobre o aborto não lhe parecerá melhor na lembrança do que as casas de tolerância ou os sacrifícios humanos”. Na realidade, é a própria sociedade capitalista contemporânea que busca “não ter nenhuma regulamentação” e não a futura e abstrata sociedade socialista. Outro ato falho desse nível encontra-se no programa de transição onde Trotski propõem que “somente a expropriação dos bancos privados e a concentração de todo o sistema de crédito nas mãos do Estado colocarão à disposição deste os meios reais necessários, quer dizer, materiais e não apenas fictícios e burocráticos, para a planificação econômica”. Parece até que Ben Bernanke, atual presidente do Federal Reserve, tinha lido Trostski ao efetuar o salvamento da bancarrota financeira dos Estados Unidos a partir de 2007.



Portanto, ao invés da categoria “traição” poderia ser usada a categoria da aprendizagem. Nesse sentido, sem dúvida, não aprendemos o suficiente ainda com a URSS e com as experiências históricas do socialismo. A memória histórica do movimento socialista deve ser defendida. Para isso temos o desafio de des-desmonização de Stálin (e também Trotski, Kruschov e outros) além de uma des-canonização de Marx.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

A biopolítica da vida cotidiana

Sempre quando vejo câmeras me pergunto: o que são as câmeras senão os olhos do grande Outro que asseguram a normalidade de determinado lugar? A resposta do Império diante do fracassado atentado terrorista também é, como não poderia deixar de ser, biopolítico e tem a mesma funcionalidade das câmeras que infestam nosso espaço social na sociedade capitalista contemporânea.



Todos os passageiros da Nigéria, Iêmen, Paquistão, Afeganistão, Cuba, Irã e outros oito países em vôo para os Estados Unidos serão revistados rigorosamente e terão sua bagagem inspecionada sob novas medidas de segurança que começam nesta segunda-feira nos EUA. Todos os passageiros aéreos com destino aos Estados Unidos vindos desses países além de Sudão, Síria, Iraque, Líbano, Líbia, Somália, Argélia e Arábia Saudita enfrentarão maior rigidez nas revistas aleatórias, sob as novas regras do Departamento de Segurança e Transportes dos EUA, com atenção especial dada a viajantes desses sete países. Um alto funcionário da administração Obama chamou os procedimentos de inspeção de "medidas sustentáveis que são um importante aprimoramento na nossa postura de segurança". Numa época em que o terrorismo se tornou o equivalente de todos os males sociais, a biopolítica da vida cotidiana tende a se intensificar com novas formas de segurança e cerceamento contra o “inimigo”. Entretanto, quem é o inimigo do ponto de vista da política conservadora contemporânea e que, infelizmente, grande parte da esquerda bate palma?



Carl Schmitt, uma das figuras mais brilhantes da teoria política moderna, escreve que a condição contraditória da democracia-liberal (num tom profético diga-se de passagem) se clarifica sob nas formas de tratamento dado ao “estrangeiro”:



"O Estado democrático também (só para citar os Estados Unidos da América) está longe de permitir que estrangeiros participem de seu poderio e de sua riqueza. Até hoje ainda não surgiu nenhum democracia que não conhecesse o conceito de “estrangeiro” e que concretizasse a igualdade de todas as pessoas. Se, no entanto, quiséssemos levar a sério uma democracia de humanidade e realmente igualar as pessoas politicamente, então essa seria uma igualdade com a inclusão de todas as pessoas politicamente, independentemente de origem e faixa etária".



Não é só hoje que a questão do estrangeiro e do imigrante bate as portas da história no cotidiano, principalmente nos países mais desenvolvidos? Ou ainda, que o estrangeiro representa um inquietante risco devido sua radical e insanável imprevisibilidade principalmente nas grandes metrópoles mundiais? E não é exatamente em cima desses “estrangeiros” que as políticas de extrema direita buscam respaldo hoje?



Quando Carl Schmitt escreve que a divisão amigo/inimigo nunca é explícita (na verdade é invisível), isso deixa em aberto a noção de culpabilidade do inimigo que nunca tem uma imagem definida. Tendo uma identidade baseada numa pluralidade plástica do imaginário, o inimigo nunca é o inimigo. Diante disso, fico tentado a propor que, sob as modificações gerais nos mecanismos de exceção que se exercem sob a intrusão progressiva de medidas excessivas no próprio ordenamento democrático, típico de nossa era pós-política, Smith necessita de uma torção crucial: em nossa época pós-política onde se assenta o estado de exceção contemporâneo vivemos sob uma inserção progressiva do direito do inimigo como paradigma jurídico das democracias-liberais tornando-se o foco ideológico de qualquer dissenso no consenso democrata. Hoje esse inimigo é visto na prática política (e de polícia) cotidiana na relação do ordenamento jurídico com os imigrantes, os favelados, moradores dos guetos, refugiados, prisioneiros, terroristas, participantes de movimentos sociais – ou seja, aqueles que perturbam a ordem pública. Essa virada demonstra a morfologia contemporânea do estado de exceção onde o direito do inimigo torna-se a regra sem contraponto nas sociedades democrático-liberais. Sem dúvida, quem atualiza essa teoria para os dias de hoje é o penalista Günter Jakobs. Ele situa o inimigo como uma não-pessoa que deve ser combatido por sua periculosidade potencial. Dessa forma, existe um distanciamento do ato dito criminoso para o autor hipoteticamente criminoso. Assim como a política norte-americana busca a prevenção de novos ataques terroristas futuros, o direito do inimigo atua na prevenção de crimes sob o fardo (para o inimigo) da diminuição das garantias constitucionais e processuais, aumento desproporcional das penas, flexibilização do princípio da legalidade, exagerada antecipação da tutela penal, etc. Assim como a luta contra o terrorismo, o direito do inimigo se volta para o futuro hipotético onde se é punido pelo delito por vir e não pelo delito comedido. Nesse sentido, Zizek escreve da política internacional norte-americana pós-11 de setembro que seus principais pontos são:



"o poder militar americano deve permanecer “fora de qualquer contestação” no futuro previsível; dado que hoje o principal inimigo é um fundamentalista “irracional” que, ao contrário dos comunistas, carece até mesmo do sentido elementar de sobrevivência e do respeito ao próprio povo, a América tem o direito a ataques preventivos, ou seja, a atacar países que ainda não representam uma ameaça clara contra os Estados Unidos, mas que poderiam sê-lo no futuro; apesar de deverem procurar formar coalizões internacionais ad hoc para tais ataques, os EUA devem se reservar o direito de agir independentemente caso não consigam reunir apoio internacional suficiente".



Assim como o terrorista, o inimigo de Jacobs não tem identidade específica. Esse vazio de identidade possibilita com que qualquer um que não esteja de acordo com as prerrogativas políticas dominantes possa ser identificado como um inimigo e tratado como tal. Para engrossar a lista dos hipotéticos inimigos, como regra na história, também temos os excessos sociais como favelados, desempregados, imigrantes, pobres, etc. Essa plasticidade infinita do imaginário acerca do inimigo se transforma, além de paranóia social, num método altamente desenvolvido para se exercer, dentro da normatividade, uma atividade de exclusão dos excrementos que precisam ser colocados fora de circulação para assegurar o bom andamento do sistema democrático. A categoria de homo sacer, desenvolvida por Agamben, nos ajuda aqui: o homo sacer é aquele que, no antigo direito romano, poderia ser morto impunemente e cuja morte não tinha nenhum valor de sacrifício. Hoje, o que vemos é o direito do inimigo funcionando como uma institucionalização da penalização dos Homo Sacer contemporâneos – o favelado, o imigrante, o terrorista, o precarizado, o desempregado, os habitantes dos guetos nos EUA, o informalizado, o refugiado, os integrantes do MST, etc.



Esse fortalecimento do Estado penal não demonstra que o caráter punitivo do “direito” é seu ponto principal diante da crise econômica e social que vivemos? Em termos lacanianos, esses excessos na estrutura jurídica são marcados por sintomas que ele produz – os sintomas do nazismo foram, sem dúvida, os campos de concentração e, exatamente por isso, seu estatuto indizível. Hoje, entretanto, diante da falsa oposição entre estado de exceção e democracia liberal sobre o capitalismo global, os sintomas são outros tendo uma dinâmica e uma funcionalidade diferente.



A ascensão do campo de concentração é diretamente ligada à busca por normalizar a extinção sistemática dos elementos excedentes. Garantir a ordem, principalmente em tempos de crise, significa trazer o excesso que falta a própria estrutura democrática: o estado de exceção e seus campos. Segundo Agamben, a essência do campo consiste na materialização do estado de exceção e na conseqüente criação de um espaço em que a vida nua e a norma entram em um limiar de indistinção. Dessa forma, é necessário que nos encontremos virtualmente na presença de um campo toda vez que é criada tal estrutura, independentemente da natureza dos crimes que aí são cometidos e qualquer que seja a sua denominação ou topografia específica. Nesse sentido, o campo surge como um evento que marca de modo decisivo o próprio espaço político na modernidade sendo o nómos biopolítico do planeta. O campo é o espaço da exceção, a matriz oculta da política em que vivemos e que devemos aprender a reconhecer através de suas metamorfoses – seja diante de determinados aeroportos que retém estrangeiros aos campos de refugiados, dos guetos as favelas, das prisões aos bairros imigrantes etc.



A novidade é que, agora, este instituto é desligado do estado de exceção no qual se baseava e deixado em vigor na situação normal. O campo é o campo que se abre quando o estado de exceção começa a tornar-se a regra. Nele, o estado de exceção, que era essencialmente uma suspensão temporal do ordenamento com base numa situação factícia de perigo, ora adquire uma disposição espacial permanente que, como tal, permanece, porém, estavelmente fora do ordenamento normal.



Se essa relação paradoxal com a Lei é norma no campo, esse diagnóstico possibilita propormos que a favela é hoje o campo de concentração permanente da globalização capitalista. Desde meados de 1970, o crescimento das favelas é maior no hemisfério sul do que a urbanização propriamente dita. Em São Paulo, por exemplo, em 1973 as favelas detinham 1,2% da população enquanto em 1993 detinha cerca de 20%, crescendo na década de 1990 num ritmo de 16,4% ao ano. Na Amazônia, 80% de seu crescimento tem-se dado nas favelas, em sua maior parte privadas de serviços públicos e transporte municipal mostrando a transformação de “urbanização” e “favelização” em sinônimos. Na Ásia essas tendências são semelhantes. Desde o final da década de 1970, após a entrada da China no mundo capitalista, estima-se que lá mais 200 milhões mudaram-se das áreas rurais para as cidades (e espera-se que mais 250 ou 300 milhões sigam-nos nas próximas décadas) fazendo com que, em 2005, já existam 166 cidades chinesas, em comparação com as 9 nos EUA, que tem a população maior que 1 milhão de habitantes (idem, p. 22). O número de cidade também explodiu: oficialmente, desde 1978, passaram de 193 para 640 cidades. A Zona Econômica de Xangai, criada em 1983, maior entidade de planejamento subnacional do mundo, engloba a metrópole e cinco províncias vizinhas com uma população agregada tão grande quanto a dos Estados Unidos. Esse processo de intensificação urbana é acompanhado por uma favelização generalizada. É a humanidade em excesso em seu processo de triagem capitalista que, para funcionar, precisa da máquina do Estado. Nesse sentido, a produção crônica de favelas também diz respeito ao enxugamento da produção capitalista que não precisa de grande parte da população trabalhadora jogando-os, normalmente sem volta, a uma completa exclusão social. O crescimento da informalidade do trabalho (um desemprego “ativo”), com cerca de 1 milhão de pessoas pelo mundo, mostra como atividades como a prostituição infantil e o mercado negro de órgãos são respostas não acidentais diante das transformações no capitalismo global, mas sim necessário para sua lógica de reprodução interna. Sob a crise estrutural do capital que vivenciamos desde 1970, além de novos ganhos defensivos a favor do trabalho estarem fora de questão, a tendência corrente é que muitas das concessões do passado serem gradualmente extorquidas pelo capital. Dessa forma, a estrutura democrática busca uma acomodação do trabalho aos imperativos do capital de reaver as concessões a favor do trabalho envolvendo uma piora progressiva das condições socioeconômicas e o brusco aumento do desemprego.



Como corolário, todos os países capitalistas avançados são confrontados por numerosos exemplos de legislação autoritária, apesar das preensões à “democracia”. Essas medidas autoritárias se tornam necessárias pelas crescentes dificuldades de administração das condições cada vez mais deterioradas da vida socioeconômica no sentido de apoiar, com a ameaça da lei, as posturas mais agressivas do capital com relação a sua força de trabalho. É o crescimento dos “inativos disponíveis”, como dizem os apologistas do capital. A pergunta é: disponíveis para quem? Ou, para que? Segundo previsões da OIT, um tanto quanto bastante conservadoras, a quantidade de desempregados no mundo poderá dar um salto em 2009, com um aumento de 39 milhões a 59 milhões, para atingir a cifra de 239 milhões. Na zona do euro, em abril, o nível de desemprego atingiu 9,2% com mais de 396 mil demitidos. Na Espanha, cerca de 18,1% da população esta desempregada. Nos EUA, só em abril de 2009 foram despedidos cerca de 539 mil trabalhadores e em maio 532 mil. Estima-se que o nível de desemprego já atinja em junho 9,3% da população e que em 2010 cheguem a cerca de 10% no país “mais desenvolvido do mundo”. Esse processo é acompanhado pela precarização das condições de vida desses excessos que são ejetados da produção capitalista. Nesse sentido é que as favelas são um dos principais sintomas da globalização do capital, principalmente no Terceiro Mundo. Não por um resultado acidental de falta de visão política ou políticas públicas específicas – seu crescimento exponencial em nível global nos últimos quarenta anos é uma necessidade estrutural diante da incapacidade do Estado e do capital se reproduzirem ampliadamente (sua lógica interna). São próprios do fim da ascendência histórica do capital desde o fim da década de 1960. As favelas são hoje os excessos perturbadores que estão sob um crescimento exponencial nas megalópoles do Terceiro Mundo. No mundo os maiores percentuais habitacionais de favelados estão na Etiópia (impressionantes 99,4%), Tchade (também 99,4%), Afeganistão (98,5%) e Nepal (92%). Com 10 a 12 milhões de invasores de terrenos e moradores de favelas, Mumbai é a capital global dos favelados, seguida da Cidade do México e Daca (9 a 10 milhões cada) e depois Lagos, Cairo, Karashi, Kinshasa, Brazzaville, São Paulo, Xangai e Délhi (6 a 8 milhões cada). Enquanto nos países mais desenvolvidos os favelados são apenas 6% da população urbana, nos países menos desenvolvidos os favelados constituem 78,2% dos habitantes urbanos correspondendo a pelo menos um terço da população urbana mundial. Existem mais de 200 mil favelas cuja população varia de centenas a mais de um milhão cada. As cinco grandes metrópoles da Ásia (Karashi, Mumbai, Délhi, Kolkata e Daca), por exemplo, tem cerca de 15 mil comunidades faveladas com uma população que excede os 20 milhões de habitantes. A Cidade do México, outro exemplo, tinha em 1992 cerca de 6,6 milhões de pessoas vivendo amontoadas em 348 quilômetros quadrados de moradias informais. Uma das formas mais impressionante de moradia informal é, entretanto, a dos chamados “homens engaiolados” de Honk Kong, onde mais de 250 mil pessoas moram ilegalmente em telhados e poços de ventilação fechados nos centros dos prédios. Eles ganharam esse nome por construir coberturas de arame sobre as camas para impedir o roubo de seus pertences sob um número médio de 38,3 moradores num espaço vital per capita de 1,8 metro quadrado. Na Cidade dos Mortos, no Cairo, cerca de 1 milhão de habitantes pobres usam sepulturas mamelucas como módulos habitacionais pré-fabricados.



A favela, ao mesmo tempo dentro e fora do ordenamento espacial da lei, persiste no cotidiano com um excesso de controle por parte do Estado para assegurar principalmente suas bordas, para que os conflitos sociais que possibilitaram a ascensão das favelas não se dissolvam pelo tecido social fazendo com que, ao mesmo tempo, exista um enclausuramento dos favelados. Essa violência aberta ocasiona diversas mortes aleatórias e irresolvidas. Um exemplo desse processo está sendo feito no Rio de Janeiro (em 2009). Para conter a expansão das favelas está sendo colocado em prática um projeto para cercear inicialmente 10 favelas. Aqui vem a questão: para acabar com a expansão das favelas o remédio dado pelas políticas públicas é a criação de muros que separem radicalmente os favelados. A desculpa dada pelo governo do Rio foi que é necessário cercar os moradores das favelas diante da destruição ecológica que proporciona sua expansão contínua (desculpa que fez alguns movimentos ecológicos festejarem). Na favela da Rocinha, o projeto prevê que o muro terá cerca de 2.800 metros de extensão num total de mais de 11 mil metros de muro que serão erguidos. Não podemos temer, portanto, propor que o capitalismo, ao introduzir a sua lógica de reprodução seus excessos, teve que o fazer transformando sua forma: o paradigma do campo de concentração hoje são as sistemáticas novas formas de apartheid que tem como resultado lógico a ascensão das favelas, das prisões privadas, guetos, bairros imigrantes etc juntamente com um feroz repressão policial e política.



O desafio de transformação positiva da realidade social hoje é enorme, mas sem um "mapeamento cognitivo" sobre o atual estado de coisas essa luta é já fracassada. Portanto, atentemo-nos!