segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

A biopolítica da vida cotidiana

Sempre quando vejo câmeras me pergunto: o que são as câmeras senão os olhos do grande Outro que asseguram a normalidade de determinado lugar? A resposta do Império diante do fracassado atentado terrorista também é, como não poderia deixar de ser, biopolítico e tem a mesma funcionalidade das câmeras que infestam nosso espaço social na sociedade capitalista contemporânea.



Todos os passageiros da Nigéria, Iêmen, Paquistão, Afeganistão, Cuba, Irã e outros oito países em vôo para os Estados Unidos serão revistados rigorosamente e terão sua bagagem inspecionada sob novas medidas de segurança que começam nesta segunda-feira nos EUA. Todos os passageiros aéreos com destino aos Estados Unidos vindos desses países além de Sudão, Síria, Iraque, Líbano, Líbia, Somália, Argélia e Arábia Saudita enfrentarão maior rigidez nas revistas aleatórias, sob as novas regras do Departamento de Segurança e Transportes dos EUA, com atenção especial dada a viajantes desses sete países. Um alto funcionário da administração Obama chamou os procedimentos de inspeção de "medidas sustentáveis que são um importante aprimoramento na nossa postura de segurança". Numa época em que o terrorismo se tornou o equivalente de todos os males sociais, a biopolítica da vida cotidiana tende a se intensificar com novas formas de segurança e cerceamento contra o “inimigo”. Entretanto, quem é o inimigo do ponto de vista da política conservadora contemporânea e que, infelizmente, grande parte da esquerda bate palma?



Carl Schmitt, uma das figuras mais brilhantes da teoria política moderna, escreve que a condição contraditória da democracia-liberal (num tom profético diga-se de passagem) se clarifica sob nas formas de tratamento dado ao “estrangeiro”:



"O Estado democrático também (só para citar os Estados Unidos da América) está longe de permitir que estrangeiros participem de seu poderio e de sua riqueza. Até hoje ainda não surgiu nenhum democracia que não conhecesse o conceito de “estrangeiro” e que concretizasse a igualdade de todas as pessoas. Se, no entanto, quiséssemos levar a sério uma democracia de humanidade e realmente igualar as pessoas politicamente, então essa seria uma igualdade com a inclusão de todas as pessoas politicamente, independentemente de origem e faixa etária".



Não é só hoje que a questão do estrangeiro e do imigrante bate as portas da história no cotidiano, principalmente nos países mais desenvolvidos? Ou ainda, que o estrangeiro representa um inquietante risco devido sua radical e insanável imprevisibilidade principalmente nas grandes metrópoles mundiais? E não é exatamente em cima desses “estrangeiros” que as políticas de extrema direita buscam respaldo hoje?



Quando Carl Schmitt escreve que a divisão amigo/inimigo nunca é explícita (na verdade é invisível), isso deixa em aberto a noção de culpabilidade do inimigo que nunca tem uma imagem definida. Tendo uma identidade baseada numa pluralidade plástica do imaginário, o inimigo nunca é o inimigo. Diante disso, fico tentado a propor que, sob as modificações gerais nos mecanismos de exceção que se exercem sob a intrusão progressiva de medidas excessivas no próprio ordenamento democrático, típico de nossa era pós-política, Smith necessita de uma torção crucial: em nossa época pós-política onde se assenta o estado de exceção contemporâneo vivemos sob uma inserção progressiva do direito do inimigo como paradigma jurídico das democracias-liberais tornando-se o foco ideológico de qualquer dissenso no consenso democrata. Hoje esse inimigo é visto na prática política (e de polícia) cotidiana na relação do ordenamento jurídico com os imigrantes, os favelados, moradores dos guetos, refugiados, prisioneiros, terroristas, participantes de movimentos sociais – ou seja, aqueles que perturbam a ordem pública. Essa virada demonstra a morfologia contemporânea do estado de exceção onde o direito do inimigo torna-se a regra sem contraponto nas sociedades democrático-liberais. Sem dúvida, quem atualiza essa teoria para os dias de hoje é o penalista Günter Jakobs. Ele situa o inimigo como uma não-pessoa que deve ser combatido por sua periculosidade potencial. Dessa forma, existe um distanciamento do ato dito criminoso para o autor hipoteticamente criminoso. Assim como a política norte-americana busca a prevenção de novos ataques terroristas futuros, o direito do inimigo atua na prevenção de crimes sob o fardo (para o inimigo) da diminuição das garantias constitucionais e processuais, aumento desproporcional das penas, flexibilização do princípio da legalidade, exagerada antecipação da tutela penal, etc. Assim como a luta contra o terrorismo, o direito do inimigo se volta para o futuro hipotético onde se é punido pelo delito por vir e não pelo delito comedido. Nesse sentido, Zizek escreve da política internacional norte-americana pós-11 de setembro que seus principais pontos são:



"o poder militar americano deve permanecer “fora de qualquer contestação” no futuro previsível; dado que hoje o principal inimigo é um fundamentalista “irracional” que, ao contrário dos comunistas, carece até mesmo do sentido elementar de sobrevivência e do respeito ao próprio povo, a América tem o direito a ataques preventivos, ou seja, a atacar países que ainda não representam uma ameaça clara contra os Estados Unidos, mas que poderiam sê-lo no futuro; apesar de deverem procurar formar coalizões internacionais ad hoc para tais ataques, os EUA devem se reservar o direito de agir independentemente caso não consigam reunir apoio internacional suficiente".



Assim como o terrorista, o inimigo de Jacobs não tem identidade específica. Esse vazio de identidade possibilita com que qualquer um que não esteja de acordo com as prerrogativas políticas dominantes possa ser identificado como um inimigo e tratado como tal. Para engrossar a lista dos hipotéticos inimigos, como regra na história, também temos os excessos sociais como favelados, desempregados, imigrantes, pobres, etc. Essa plasticidade infinita do imaginário acerca do inimigo se transforma, além de paranóia social, num método altamente desenvolvido para se exercer, dentro da normatividade, uma atividade de exclusão dos excrementos que precisam ser colocados fora de circulação para assegurar o bom andamento do sistema democrático. A categoria de homo sacer, desenvolvida por Agamben, nos ajuda aqui: o homo sacer é aquele que, no antigo direito romano, poderia ser morto impunemente e cuja morte não tinha nenhum valor de sacrifício. Hoje, o que vemos é o direito do inimigo funcionando como uma institucionalização da penalização dos Homo Sacer contemporâneos – o favelado, o imigrante, o terrorista, o precarizado, o desempregado, os habitantes dos guetos nos EUA, o informalizado, o refugiado, os integrantes do MST, etc.



Esse fortalecimento do Estado penal não demonstra que o caráter punitivo do “direito” é seu ponto principal diante da crise econômica e social que vivemos? Em termos lacanianos, esses excessos na estrutura jurídica são marcados por sintomas que ele produz – os sintomas do nazismo foram, sem dúvida, os campos de concentração e, exatamente por isso, seu estatuto indizível. Hoje, entretanto, diante da falsa oposição entre estado de exceção e democracia liberal sobre o capitalismo global, os sintomas são outros tendo uma dinâmica e uma funcionalidade diferente.



A ascensão do campo de concentração é diretamente ligada à busca por normalizar a extinção sistemática dos elementos excedentes. Garantir a ordem, principalmente em tempos de crise, significa trazer o excesso que falta a própria estrutura democrática: o estado de exceção e seus campos. Segundo Agamben, a essência do campo consiste na materialização do estado de exceção e na conseqüente criação de um espaço em que a vida nua e a norma entram em um limiar de indistinção. Dessa forma, é necessário que nos encontremos virtualmente na presença de um campo toda vez que é criada tal estrutura, independentemente da natureza dos crimes que aí são cometidos e qualquer que seja a sua denominação ou topografia específica. Nesse sentido, o campo surge como um evento que marca de modo decisivo o próprio espaço político na modernidade sendo o nómos biopolítico do planeta. O campo é o espaço da exceção, a matriz oculta da política em que vivemos e que devemos aprender a reconhecer através de suas metamorfoses – seja diante de determinados aeroportos que retém estrangeiros aos campos de refugiados, dos guetos as favelas, das prisões aos bairros imigrantes etc.



A novidade é que, agora, este instituto é desligado do estado de exceção no qual se baseava e deixado em vigor na situação normal. O campo é o campo que se abre quando o estado de exceção começa a tornar-se a regra. Nele, o estado de exceção, que era essencialmente uma suspensão temporal do ordenamento com base numa situação factícia de perigo, ora adquire uma disposição espacial permanente que, como tal, permanece, porém, estavelmente fora do ordenamento normal.



Se essa relação paradoxal com a Lei é norma no campo, esse diagnóstico possibilita propormos que a favela é hoje o campo de concentração permanente da globalização capitalista. Desde meados de 1970, o crescimento das favelas é maior no hemisfério sul do que a urbanização propriamente dita. Em São Paulo, por exemplo, em 1973 as favelas detinham 1,2% da população enquanto em 1993 detinha cerca de 20%, crescendo na década de 1990 num ritmo de 16,4% ao ano. Na Amazônia, 80% de seu crescimento tem-se dado nas favelas, em sua maior parte privadas de serviços públicos e transporte municipal mostrando a transformação de “urbanização” e “favelização” em sinônimos. Na Ásia essas tendências são semelhantes. Desde o final da década de 1970, após a entrada da China no mundo capitalista, estima-se que lá mais 200 milhões mudaram-se das áreas rurais para as cidades (e espera-se que mais 250 ou 300 milhões sigam-nos nas próximas décadas) fazendo com que, em 2005, já existam 166 cidades chinesas, em comparação com as 9 nos EUA, que tem a população maior que 1 milhão de habitantes (idem, p. 22). O número de cidade também explodiu: oficialmente, desde 1978, passaram de 193 para 640 cidades. A Zona Econômica de Xangai, criada em 1983, maior entidade de planejamento subnacional do mundo, engloba a metrópole e cinco províncias vizinhas com uma população agregada tão grande quanto a dos Estados Unidos. Esse processo de intensificação urbana é acompanhado por uma favelização generalizada. É a humanidade em excesso em seu processo de triagem capitalista que, para funcionar, precisa da máquina do Estado. Nesse sentido, a produção crônica de favelas também diz respeito ao enxugamento da produção capitalista que não precisa de grande parte da população trabalhadora jogando-os, normalmente sem volta, a uma completa exclusão social. O crescimento da informalidade do trabalho (um desemprego “ativo”), com cerca de 1 milhão de pessoas pelo mundo, mostra como atividades como a prostituição infantil e o mercado negro de órgãos são respostas não acidentais diante das transformações no capitalismo global, mas sim necessário para sua lógica de reprodução interna. Sob a crise estrutural do capital que vivenciamos desde 1970, além de novos ganhos defensivos a favor do trabalho estarem fora de questão, a tendência corrente é que muitas das concessões do passado serem gradualmente extorquidas pelo capital. Dessa forma, a estrutura democrática busca uma acomodação do trabalho aos imperativos do capital de reaver as concessões a favor do trabalho envolvendo uma piora progressiva das condições socioeconômicas e o brusco aumento do desemprego.



Como corolário, todos os países capitalistas avançados são confrontados por numerosos exemplos de legislação autoritária, apesar das preensões à “democracia”. Essas medidas autoritárias se tornam necessárias pelas crescentes dificuldades de administração das condições cada vez mais deterioradas da vida socioeconômica no sentido de apoiar, com a ameaça da lei, as posturas mais agressivas do capital com relação a sua força de trabalho. É o crescimento dos “inativos disponíveis”, como dizem os apologistas do capital. A pergunta é: disponíveis para quem? Ou, para que? Segundo previsões da OIT, um tanto quanto bastante conservadoras, a quantidade de desempregados no mundo poderá dar um salto em 2009, com um aumento de 39 milhões a 59 milhões, para atingir a cifra de 239 milhões. Na zona do euro, em abril, o nível de desemprego atingiu 9,2% com mais de 396 mil demitidos. Na Espanha, cerca de 18,1% da população esta desempregada. Nos EUA, só em abril de 2009 foram despedidos cerca de 539 mil trabalhadores e em maio 532 mil. Estima-se que o nível de desemprego já atinja em junho 9,3% da população e que em 2010 cheguem a cerca de 10% no país “mais desenvolvido do mundo”. Esse processo é acompanhado pela precarização das condições de vida desses excessos que são ejetados da produção capitalista. Nesse sentido é que as favelas são um dos principais sintomas da globalização do capital, principalmente no Terceiro Mundo. Não por um resultado acidental de falta de visão política ou políticas públicas específicas – seu crescimento exponencial em nível global nos últimos quarenta anos é uma necessidade estrutural diante da incapacidade do Estado e do capital se reproduzirem ampliadamente (sua lógica interna). São próprios do fim da ascendência histórica do capital desde o fim da década de 1960. As favelas são hoje os excessos perturbadores que estão sob um crescimento exponencial nas megalópoles do Terceiro Mundo. No mundo os maiores percentuais habitacionais de favelados estão na Etiópia (impressionantes 99,4%), Tchade (também 99,4%), Afeganistão (98,5%) e Nepal (92%). Com 10 a 12 milhões de invasores de terrenos e moradores de favelas, Mumbai é a capital global dos favelados, seguida da Cidade do México e Daca (9 a 10 milhões cada) e depois Lagos, Cairo, Karashi, Kinshasa, Brazzaville, São Paulo, Xangai e Délhi (6 a 8 milhões cada). Enquanto nos países mais desenvolvidos os favelados são apenas 6% da população urbana, nos países menos desenvolvidos os favelados constituem 78,2% dos habitantes urbanos correspondendo a pelo menos um terço da população urbana mundial. Existem mais de 200 mil favelas cuja população varia de centenas a mais de um milhão cada. As cinco grandes metrópoles da Ásia (Karashi, Mumbai, Délhi, Kolkata e Daca), por exemplo, tem cerca de 15 mil comunidades faveladas com uma população que excede os 20 milhões de habitantes. A Cidade do México, outro exemplo, tinha em 1992 cerca de 6,6 milhões de pessoas vivendo amontoadas em 348 quilômetros quadrados de moradias informais. Uma das formas mais impressionante de moradia informal é, entretanto, a dos chamados “homens engaiolados” de Honk Kong, onde mais de 250 mil pessoas moram ilegalmente em telhados e poços de ventilação fechados nos centros dos prédios. Eles ganharam esse nome por construir coberturas de arame sobre as camas para impedir o roubo de seus pertences sob um número médio de 38,3 moradores num espaço vital per capita de 1,8 metro quadrado. Na Cidade dos Mortos, no Cairo, cerca de 1 milhão de habitantes pobres usam sepulturas mamelucas como módulos habitacionais pré-fabricados.



A favela, ao mesmo tempo dentro e fora do ordenamento espacial da lei, persiste no cotidiano com um excesso de controle por parte do Estado para assegurar principalmente suas bordas, para que os conflitos sociais que possibilitaram a ascensão das favelas não se dissolvam pelo tecido social fazendo com que, ao mesmo tempo, exista um enclausuramento dos favelados. Essa violência aberta ocasiona diversas mortes aleatórias e irresolvidas. Um exemplo desse processo está sendo feito no Rio de Janeiro (em 2009). Para conter a expansão das favelas está sendo colocado em prática um projeto para cercear inicialmente 10 favelas. Aqui vem a questão: para acabar com a expansão das favelas o remédio dado pelas políticas públicas é a criação de muros que separem radicalmente os favelados. A desculpa dada pelo governo do Rio foi que é necessário cercar os moradores das favelas diante da destruição ecológica que proporciona sua expansão contínua (desculpa que fez alguns movimentos ecológicos festejarem). Na favela da Rocinha, o projeto prevê que o muro terá cerca de 2.800 metros de extensão num total de mais de 11 mil metros de muro que serão erguidos. Não podemos temer, portanto, propor que o capitalismo, ao introduzir a sua lógica de reprodução seus excessos, teve que o fazer transformando sua forma: o paradigma do campo de concentração hoje são as sistemáticas novas formas de apartheid que tem como resultado lógico a ascensão das favelas, das prisões privadas, guetos, bairros imigrantes etc juntamente com um feroz repressão policial e política.



O desafio de transformação positiva da realidade social hoje é enorme, mas sem um "mapeamento cognitivo" sobre o atual estado de coisas essa luta é já fracassada. Portanto, atentemo-nos!

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