quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

A ideologia da “traição”: um mal-entendido histórico

Na incapacidade de efetuar um severa auto-crítica, ainda hoje grande parte de esquerda costuma falar dos erros históricos de orientação política como “traição”. Essa desculpa personalista costuma acompanhar os sectários Juízes Supremos da Verdade Revolucionária que, em qualquer mudança no percurso inesperada, não deixam de apontar à famosa “traição”. Como sabemos, a questão da “revolução traída” é muito caro a Trotski. Os autores e pessoas que sofrem sua influência (Mandel e Deuscher, por exemplo) têm a tendência de utilizar a categoria “traição” para entender algum aspecto em todas as revoluções como, por exemplo, os “funcionários políticos e burocratas” que sufocaram a “democracia direta” no curso da revolução francesa. No seu ingênuo dogmatismo, aqueles que sufocam o movimento de transformação e traem a revolução são sempre os outros. Aqueles ordinários malditos! Aqui o dogmatismo se reveste de oportunismo cínico. Em lacanês, oportunismo é querer ser o grande Outro que vai nortear todo o movimento e, assim, os desvios são considerados “traições” que, dependendo da fúria fundamentalista, devem ser punidos antes que seja “tarde demais”.



Outro exemplo seria Stálin. Conjuntamente com a terceira via fukuyamista muitos esquerdistas ainda culpa Stálin pelo desastre da União Soviética. Sentem ao mesmo tempo um repúdio a experiência soviética e apontam a traição por parte de Stálin como causa do autoritarismo instalado com o desdobramento do processo revolucionário. Nesse ponto não existe diferença entre eles. Recentemente Domenico Lusurdo fez uma pergunta que não quer calar: como um “traidor” conseguiu dar uma poderosa contribuição ao processo de emancipação dos povos coloniais e, no que toca ao Ocidente, à derrubada do antigo regime e à edificação do Estado social?



Pintando Stálin como um traidor do “ideal socialista”, podemos cair, como Trotsky caiu, num idealismo abstrato profundo. Num texto no final da vida Trotsky escreveu: “a verdadeira família socialista, liberada pela sociedade dos pesados e humilhantes fardos da vida cotidiana, não terá necessidade de nenhuma regulamentação e a mera idéia de leis sobre divórcio e sobre o aborto não lhe parecerá melhor na lembrança do que as casas de tolerância ou os sacrifícios humanos”. Na realidade, é a própria sociedade capitalista contemporânea que busca “não ter nenhuma regulamentação” e não a futura e abstrata sociedade socialista. Outro ato falho desse nível encontra-se no programa de transição onde Trotski propõem que “somente a expropriação dos bancos privados e a concentração de todo o sistema de crédito nas mãos do Estado colocarão à disposição deste os meios reais necessários, quer dizer, materiais e não apenas fictícios e burocráticos, para a planificação econômica”. Parece até que Ben Bernanke, atual presidente do Federal Reserve, tinha lido Trostski ao efetuar o salvamento da bancarrota financeira dos Estados Unidos a partir de 2007.



Portanto, ao invés da categoria “traição” poderia ser usada a categoria da aprendizagem. Nesse sentido, sem dúvida, não aprendemos o suficiente ainda com a URSS e com as experiências históricas do socialismo. A memória histórica do movimento socialista deve ser defendida. Para isso temos o desafio de des-desmonização de Stálin (e também Trotski, Kruschov e outros) além de uma des-canonização de Marx.

Nenhum comentário: