quinta-feira, 24 de julho de 2008

CRENÇA NA UTOPIA É AINDA A MELHOR FORMA DE QUESTIONAR A EXCLUSÃO SOCIAL

Por Slavoj Zizek


Um dos grafites mais conhecidos dos muros de Paris em 1968 era: “As estruturas não andam pelas ruas!”. Isto é, não se podem explicar as grandes manifestações de estudantes e trabalhadores do Maio de 68 como determinadas pelas mudanças estruturais na sociedade.Mas, segundo [o psicanalista] Jacques Lacan, foi exatamente isso o que aconteceu em 1968: as estruturas saíram às ruas. Os eventos explosivos visíveis foram, em última instância, o resultado de um desequilíbrio estrutural -a passagem de uma forma de dominação para outra; nos termos de Lacan, do discurso do mestre para o discurso da universidade.Os protestos anticapitalistas dos anos 60 suplementaram a crítica padrão da exploração socioeconômica pelos temas da crítica social: a alienação da vida cotidiana, a “mercadorização” do consumo, a inautenticidade de uma sociedade de massa em que “usamos máscaras” e sofremos opressão sexual e outras etc.

Prazer extremo
Mas o novo espírito do capitalismo recuperou triunfalmente a retórica anti-hierárquica de 1968, apresentando-se como bem-sucedida revolta libertária contra as organizações sociais opressivas do capitalismo corporativo e do socialismo “realmente existente”.O que sobreviveu da libertação sexual dos anos 1960 foi o hedonismo tolerante, facilmente incorporado a nossa ideologia hegemônica: hoje o prazer sexual não apenas é permitido, é ordenado -os indivíduos se sentem culpados quando não podem desfrutá-lo.A tendência às formas radicais de prazer (por meio de experiências sexuais e drogas ou outros meios de indução ao transe) surge em um momento político preciso: quando o “espírito de 68″ esgota seus potenciais políticos. Nesse ponto crítico (meados dos anos 70), a única opção restante foi um direto e brutal empurrão para o real, que assumiu três formas principais: a busca por formas extremas de prazer sexual, a opção pelo real de uma experiência interior (misticismo oriental) e, finalmente, o terrorismo político de esquerda (Fração do Exército Vermelho na Alemanha, Brigadas Vermelhas na Itália etc.). O que todas essas opções compartilham é um recuo do engajamento sociopolítico concreto para um contato direto com o real. Lembremos aqui o desafio de Lacan aos estudantes que protestavam: “Como revolucionários, vocês são histéricos que exigem um novo mestre. Vocês vão ganhar um”. E o ganhamos, sob o disfarce do mestre “permissivo” pós-moderno cuja dominação é mais forte por ser menos visível. Sem dúvida, muitas mudanças positivas acompanharam essa passagem -basta citar as novas liberdades das mulheres e seu acesso a cargos de poder. Entretanto essa passagem para um outro “espírito do capitalismo” foi realmente tudo o que aconteceu nos eventos do Maio de 68, de modo que todo o entusiasmo ébrio de liberdade foi apenas um meio de substituir uma forma de dominação por outra?Muitos sinais indicam que as coisas não são tão simples. Se examinarmos nossa situação com os olhos de 1968, devemos lembrar o verdadeiro legado desse ano: seu núcleo foi uma rejeição ao sistema liberal-capitalista.É fácil zombar da idéia do “fim da história” de Francis Fukuyama, mas hoje a maioria é fukuyamista: o capitalismo liberal-democrático é aceito como a fórmula finalmente encontrada da melhor sociedade possível, e tudo o que se pode fazer é torná-la mais justa, tolerante etc.

Ecologia e apartheid
Hoje a única verdadeira questão é: nós endossamos essa naturalização do capitalismo ou o capitalismo global de hoje contém antagonismos fortes o suficiente para impedir sua infinita reprodução? Há (pelo menos) quatro desses antagonismos: a sombria ameaça da catástrofe ecológica, a inadequação da propriedade privada para a chamada “propriedade intelectual”, as implicações socioéticas dos novos avanços tecnocientíficos (especialmente em biogenética) e as novas formas de apartheid, os novos muros e favelas. Os primeiros três antagonismos se referem aos domínios do que Michael Hardt e Toni Negri chamam de “comuns”.Há os “comuns de natureza externa” ameaçados pela poluição e a exploração (do petróleo a florestas e o próprio habitat natural), os “comuns de natureza interna” (o legado biogenético da humanidade) e os “comuns de cultura”, as formas imediatamente socializadas de capital “cognitivo”, basicamente a língua, nosso meio de educação e comunicação.A referência a “comuns” justifica a ressurreição da idéia de comunismo: nos permite ver o envolvimento progressivo dos comuns como um processo de proletarização daqueles que são assim excluídos de sua própria substância.No entanto é apenas o antagonismo entre os “incluídos” e os “excluídos” que realmente justifica o termo comunismo. Em diferentes formas de favelas ao redor do mundo, presenciamos o rápido crescimento da população sem o controle do Estado, vivendo em condições meio fora-da-lei, em terrível carência de formas mínimas de auto-organização.Se a principal tarefa da política emancipatória do século 19 foi romper o monopólio dos liberais burgueses por meio da politização da classe trabalhadora, e se a tarefa do século 20 foi despertar politicamente a imensa população rural da Ásia e da África, a principal tarefa do século 21 é politizar -organizar e disciplinar- as “massas desestruturadas” dos que vivem nas favelas.Se ignorarmos esse problema dos excluídos, todos os outros antagonismos perdem seu viés subversivo. A ecologia se transforma em um problema de desenvolvimento sustentável, a propriedade intelectual em um complexo desafio jurídico, a biogenética em uma questão ética.

“Sejamos realistas”
Sem o antagonismo entre incluídos e excluídos, poderemos nos encontrar em um mundo em que Bill Gates é o principal humanista, lutando contra a pobreza e as doenças, e Rupert Murdoch o maior ambientalista, mobilizando milhões de pessoas por meio de seu império da mídia.O verdadeiro legado de 1968 é melhor resumido na fórmula “soyons realistes, demandons l’impossible!” [sejamos realistas, exijamos o impossível!].A verdadeira utopia é a crença em que o sistema global existente pode se reproduzir indefinidamente. A única maneira de ser verdadeiramente realista é imaginar o que, dentro das coordenadas desse sistema, só pode parecer impossível.

SLAVOJ ZIZEK é filósofo esloveno e autor de “Um Mapa da Ideologia” (Contraponto), Bem vindo ao deserto do Real (Boitempo), Arriscar o impossível (Martins fontes), As portas da revolução (Boitempo), entre inúmeros outros. Ele escreve na seção “Autores”, do Mais!.Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

domingo, 13 de julho de 2008

Crise ou Utopia? Réquiem de Situacionismo!


Um dos grandes slogans libertários em maio de 1968 era “Seja realista, exija o impossível”. Atualmente, grande parte das reivindicações sociais diz respeito a não-exclusão da esfera capitalista do emprego, lazer ou consumo. Se em 1968 existia uma luta pela construção de outro tipo de sociedade, atualmente o lugar-comum é mais dentro do terreno da distopia: uma comemoração política do fim dos sonhos sociais. Um tempo que é mais fácil pensar numa destruição total da vida na terra do que uma mudança radical no capitalismo.
Porém, sem cair em algum tipo de nostalgia exorbitante do passado, muitas demandas por mudanças foram “esvaziadas” de seu conteúdo para inserir-se dentro dos imperativos existenciais do capital de acumulação e expansão. Tornaram-se inofensivas como as camisetas do Che Guevarra. Nesse processo é necessário dar ênfase aos símbolos da cultura, da arte e da política que se tornaram mais pedras no caminho da mudança do que agentes ativos no processo de construção de uma ordem qualitativamente superior. Ou, de uma forma mais dialética, a negatividade por si só não é nada sem sua ação e um pólo de positividade nas redes que criam constantemente o ser social.
Temos, porém, um agravante que põem em risco a própria existência humana.
Desde meados de 1970 entramos numa profunda crise. Essa crise é multidimensional e afeta diretamente as possibilidades materiais de reprodução sociometabólica do capital como relação social. O efeito mais claro desse processo é o desemprego estrutural global. Não são menos de 1 bilhão de desempregados ou trabalhadores em empregos precários no mundo, segundo dados da OIT. Quase um terço da força de trabalho humana disponível está à mercê da informalidade ou do não-emprego.
As grandes cidades da América Latina mostram essa realidade de maneira cruel, tanto pelo crescimento desenfreado da violência e do medo quanto seu resultado no encarceramento privado das elites em suas cidades sob medida: os alphavilles, shopping centers, aeroportos e autoestradas para seus incontáveis carros.
O que grande parte da esquerda via como progresso, agora mostra a face do individualismo consumista, do domínio sob a natureza, do fetichismo da mercadoria que permite os seres sociais suportarem uma realidade miserável e, assim, os distancia de uma intervenção real nas condições que reproduzem sua própria alienação.
A pobreza das grandes cidades não mora mais em bairros pobres. Desde 1970 está existindo uma absorção da população urbana para as favelas. Seu crescimento exponencial chega a passar os 30% da população urbana vivendo em favelas. Como exemplos existem países como Brasil (36,6%), China (37,8%), Turquia (42,6), Índia (55,5%), Peru (68,1%), Nigéria (79,2), Tanzânia (92,1%), Etiópia (99,4). Na politização e organização dessa densa camada populacional encontra-se uma das esperanças de contra-poder.
Nesse sentido, a América latina lidera o ranking de maiores favelas do mundo. As cinco maiores se encontram aqui e juntas somam mais de 11.2 milhões de habitantes! Obviamente, não sendo uma condição propriamente apenas latina americana, temos os efeitos da globalização do capital tem todos os cantos do mundo, fato esse que nos lembra Marx e sua visão necessariamente global de capital. O que nos rende essa fortuita concepção é encararmos o desafio do século XXI: restringir o capital num processo de superação radical de seu sistema de intercambio social e com a natureza.
O que as últimas décadas mostraram foi o evidente: para o capital não existem limites. Seja à força de trabalho independente da idade, sexo, nacionalidade, cor; representantes eleitos democraticamente; a natureza que tem limites claros num processo de deterioração em um ritmo exponencial e que pode, no máximo, se tornar mais uma das commodities na feira global como ocorre com o mercado de carbono.
O progresso entra aqui como a ideologia dominante que tenta perpetuar a relação de poder existente e impedindo que exista uma avaliação crítica sobre as transformações necessárias. Nesse ponto, a tecnologia é crucial: ela é apresentada como politicamente neutra e não permeada pela luta de classes. Olhe que fetichismo! Assim como a mercadoria, a tecnologia obscurece as relações de classe deslocando seu conteúdo para a esfera da técnica. Os únicos que perceberam isso foram os ludditas que destruíram as máquinas quando perceberam que a tecnologia tem um papel central na reestruturação das relações sociais na intenção de tornarem-se relação entre coisas. Aqui se exige uma reestruturação profunda no próprio espaço onde essas tecnologias são utilizadas. O carro, por exemplo, desperdiça mais tempo que economiza, cria mais distâncias do que supera. Torna a cidade inabitável, fedorenta, barulhenta e asfixiante. Nessa lógica, criam-se apenas carros mais rápidos para fugir em auto-estradas para lugares cada vez mais distantes. O resultado é que as pessoas ficam longe de tudo e de todos. Nunca estão em lugar nenhum, apenas passam.
Essa desintegração das cidades tem como início a desistegração do ser social que tem seu produto de trabalho alienado; estranho a si mesmo. Uma divisão social do trabalho baseada na exploração do trabalho excedente pelo capital assegurada pelo Estado.
Somos mercadorias visando mercadorias, andando dentro de mercadorias e procurando nos relacionar com mercadorias. Perdemos o controle para o espetáculo que cria a realidade social. Como descrevia Walter Benjamin, estamos num trem que tem como destino o precipício: ou acionamos o freio de emergência ou estamos fadados à extinção. Enquanto a dominação de classe que se baseia na expropriação dos poderes de decisão social continuar existindo, a pauta do socialismo continuará uma necessidade urgente.
Entramos numa época-limite nunca presenciada na história. Ao mesmo tempo em que a alienação mostra-se global e unificada pelos meios de comunicação, não existe mais a capacidade para a resolução dos grandes problemas sociais criados por essa mesma forma de reprodução da sociedade. A revolução como permanente transformação da vida social contra as formas de alienação e perda de controle é a única tentativa contra o capital como relação social dominante. É da consciência dessa necessidade que se encontra a Utopia. Não uma utopia conservadora como o neoliberalismo que trás apenas uma radicalização do presente, mas sim uma utopia crítica impura. Que possibilite trazer consigo a diferença.
Se a realidade rebaixa esse tipo de utopia, não existe opção senão desconstruir a validade da realidade, não apenas esperando uma modesta melhora nas condições materiais, mas inclusive introduzindo desvios para darmos um respiro contra a alienação, a feiúra da cidade, a reificação social, as latas que amontoam e destrói a serenidade das ruas, a vida assalariada que expolia o gozo num presente eterno que exclui o mais importante: a experiência. Enquanto o global é o hegemônico, o local torna-se invisível.
Tornar visível o fascismo social que também é local torna-se, assim, um dos objetivos socialistas atuais. Conseguir mudar os termos do conflito não apenas no pressuposto da legalidade já que, como sabemos a liberdade não é escolher entre determinadas escolhas e sim poder determinar as escolhas.
Por essa razão, temos que reinventar a slogan de “seja realista, exija o impossível”. Não existe uma entidade que assegure qualquer tipo de exigência. Muito pelo contrário, o que existe é uma incontrolabilidade do capital para expandir-se tornando o que for necessário (a saúde física e mental humana, a cultura, a natureza, as condições materiais, a política dos altos escalões, a espoliação deliberada) um mecanismo de acumulação. Poucas pessoas não sabem disso vivendo o cotidiano. Até se podia exigir alguma coisa quando se acreditava que alguém iria representar adequadamente alguma classe, grupo, porém sob os tristes pseudo-jogos da não-participação, atualmente isso é inconcebível: “seja realista, arrisque o impossível”.
Somos culpados, mas ainda podemos expropriar os juízes. Se os conselhos autonomistas e interdependentes não conseguirem fazê-lo, ninguém o pode fazer. Por uma auto-gestão social generalizada nada melhor do que uma renovada manifestação total, sete dias por semana, sessenta segundos por minutos.