Um dos grandes slogans libertários em maio de 1968 era “Seja realista, exija o impossível”. Atualmente, grande parte das reivindicações sociais diz respeito a não-exclusão da esfera capitalista do emprego, lazer ou consumo. Se em 1968 existia uma luta pela construção de outro tipo de sociedade, atualmente o lugar-comum é mais dentro do terreno da distopia: uma comemoração política do fim dos sonhos sociais. Um tempo que é mais fácil pensar numa destruição total da vida na terra do que uma mudança radical no capitalismo.
Porém, sem cair em algum tipo de nostalgia exorbitante do passado, muitas demandas por mudanças foram “esvaziadas” de seu conteúdo para inserir-se dentro dos imperativos existenciais do capital de acumulação e expansão. Tornaram-se inofensivas como as camisetas do Che Guevarra. Nesse processo é necessário dar ênfase aos símbolos da cultura, da arte e da política que se tornaram mais pedras no caminho da mudança do que agentes ativos no processo de construção de uma ordem qualitativamente superior. Ou, de uma forma mais dialética, a negatividade por si só não é nada sem sua ação e um pólo de positividade nas redes que criam constantemente o ser social.
Temos, porém, um agravante que põem em risco a própria existência humana.
Desde meados de 1970 entramos numa profunda crise. Essa crise é multidimensional e afeta diretamente as possibilidades materiais de reprodução sociometabólica do capital como relação social. O efeito mais claro desse processo é o desemprego estrutural global. Não são menos de 1 bilhão de desempregados ou trabalhadores em empregos precários no mundo, segundo dados da OIT. Quase um terço da força de trabalho humana disponível está à mercê da informalidade ou do não-emprego.
As grandes cidades da América Latina mostram essa realidade de maneira cruel, tanto pelo crescimento desenfreado da violência e do medo quanto seu resultado no encarceramento privado das elites em suas cidades sob medida: os alphavilles, shopping centers, aeroportos e autoestradas para seus incontáveis carros.
O que grande parte da esquerda via como progresso, agora mostra a face do individualismo consumista, do domínio sob a natureza, do fetichismo da mercadoria que permite os seres sociais suportarem uma realidade miserável e, assim, os distancia de uma intervenção real nas condições que reproduzem sua própria alienação.
A pobreza das grandes cidades não mora mais em bairros pobres. Desde 1970 está existindo uma absorção da população urbana para as favelas. Seu crescimento exponencial chega a passar os 30% da população urbana vivendo em favelas. Como exemplos existem países como Brasil (36,6%), China (37,8%), Turquia (42,6), Índia (55,5%), Peru (68,1%), Nigéria (79,2), Tanzânia (92,1%), Etiópia (99,4). Na politização e organização dessa densa camada populacional encontra-se uma das esperanças de contra-poder.
Nesse sentido, a América latina lidera o ranking de maiores favelas do mundo. As cinco maiores se encontram aqui e juntas somam mais de 11.2 milhões de habitantes! Obviamente, não sendo uma condição propriamente apenas latina americana, temos os efeitos da globalização do capital tem todos os cantos do mundo, fato esse que nos lembra Marx e sua visão necessariamente global de capital. O que nos rende essa fortuita concepção é encararmos o desafio do século XXI: restringir o capital num processo de superação radical de seu sistema de intercambio social e com a natureza.
O que as últimas décadas mostraram foi o evidente: para o capital não existem limites. Seja à força de trabalho independente da idade, sexo, nacionalidade, cor; representantes eleitos democraticamente; a natureza que tem limites claros num processo de deterioração em um ritmo exponencial e que pode, no máximo, se tornar mais uma das commodities na feira global como ocorre com o mercado de carbono.
O progresso entra aqui como a ideologia dominante que tenta perpetuar a relação de poder existente e impedindo que exista uma avaliação crítica sobre as transformações necessárias. Nesse ponto, a tecnologia é crucial: ela é apresentada como politicamente neutra e não permeada pela luta de classes. Olhe que fetichismo! Assim como a mercadoria, a tecnologia obscurece as relações de classe deslocando seu conteúdo para a esfera da técnica. Os únicos que perceberam isso foram os ludditas que destruíram as máquinas quando perceberam que a tecnologia tem um papel central na reestruturação das relações sociais na intenção de tornarem-se relação entre coisas. Aqui se exige uma reestruturação profunda no próprio espaço onde essas tecnologias são utilizadas. O carro, por exemplo, desperdiça mais tempo que economiza, cria mais distâncias do que supera. Torna a cidade inabitável, fedorenta, barulhenta e asfixiante. Nessa lógica, criam-se apenas carros mais rápidos para fugir em auto-estradas para lugares cada vez mais distantes. O resultado é que as pessoas ficam longe de tudo e de todos. Nunca estão em lugar nenhum, apenas passam.
Essa desintegração das cidades tem como início a desistegração do ser social que tem seu produto de trabalho alienado; estranho a si mesmo. Uma divisão social do trabalho baseada na exploração do trabalho excedente pelo capital assegurada pelo Estado.
Somos mercadorias visando mercadorias, andando dentro de mercadorias e procurando nos relacionar com mercadorias. Perdemos o controle para o espetáculo que cria a realidade social. Como descrevia Walter Benjamin, estamos num trem que tem como destino o precipício: ou acionamos o freio de emergência ou estamos fadados à extinção. Enquanto a dominação de classe que se baseia na expropriação dos poderes de decisão social continuar existindo, a pauta do socialismo continuará uma necessidade urgente.
Entramos numa época-limite nunca presenciada na história. Ao mesmo tempo em que a alienação mostra-se global e unificada pelos meios de comunicação, não existe mais a capacidade para a resolução dos grandes problemas sociais criados por essa mesma forma de reprodução da sociedade. A revolução como permanente transformação da vida social contra as formas de alienação e perda de controle é a única tentativa contra o capital como relação social dominante. É da consciência dessa necessidade que se encontra a Utopia. Não uma utopia conservadora como o neoliberalismo que trás apenas uma radicalização do presente, mas sim uma utopia crítica impura. Que possibilite trazer consigo a diferença.
Se a realidade rebaixa esse tipo de utopia, não existe opção senão desconstruir a validade da realidade, não apenas esperando uma modesta melhora nas condições materiais, mas inclusive introduzindo desvios para darmos um respiro contra a alienação, a feiúra da cidade, a reificação social, as latas que amontoam e destrói a serenidade das ruas, a vida assalariada que expolia o gozo num presente eterno que exclui o mais importante: a experiência. Enquanto o global é o hegemônico, o local torna-se invisível.
Tornar visível o fascismo social que também é local torna-se, assim, um dos objetivos socialistas atuais. Conseguir mudar os termos do conflito não apenas no pressuposto da legalidade já que, como sabemos a liberdade não é escolher entre determinadas escolhas e sim poder determinar as escolhas.
Por essa razão, temos que reinventar a slogan de “seja realista, exija o impossível”. Não existe uma entidade que assegure qualquer tipo de exigência. Muito pelo contrário, o que existe é uma incontrolabilidade do capital para expandir-se tornando o que for necessário (a saúde física e mental humana, a cultura, a natureza, as condições materiais, a política dos altos escalões, a espoliação deliberada) um mecanismo de acumulação. Poucas pessoas não sabem disso vivendo o cotidiano. Até se podia exigir alguma coisa quando se acreditava que alguém iria representar adequadamente alguma classe, grupo, porém sob os tristes pseudo-jogos da não-participação, atualmente isso é inconcebível: “seja realista, arrisque o impossível”.
Somos culpados, mas ainda podemos expropriar os juízes. Se os conselhos autonomistas e interdependentes não conseguirem fazê-lo, ninguém o pode fazer. Por uma auto-gestão social generalizada nada melhor do que uma renovada manifestação total, sete dias por semana, sessenta segundos por minutos.
Um comentário:
Tudo o que vc falou é verdade, a alienação das pessoas, a invisibilidade do mundo local e a criação de cada vez mais mercadorias. As pessoas só estão preocupadas com a satisfação momentânea, por isso não se importam com o futuro e, muito menos, se chegaremos à esse futuro.
Incrível. Adorei o que escreveu e nos pontos que deu mais ênfase.
Amo vc!
Beijos
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