sexta-feira, 5 de março de 2010

A militância na era do capitalismo global – parte 2: a redescoberta da paixão política

É tempo de definir a estratégia socialista para além do capital já que, como bem dizia Lukács, não existe tática sem estratégia.



A forma-partido clássico morreu em nosso século XXI. As diversas tentativas de suscitá-lo serão medidas fracassadas já que não acompanham a atualidade do projeto socialista. As estratégias passadas não são mais apenas duvidosas, mas absolutamente irrealizáveis já que a crise estrutural do capital as tornou completamente anacrônicas. Aqui a necessidade de rompimento com as estratégias passadas (defensivas, parciais, setoriais, etc.) conjuntamente com as organizações que a encabeçam e a forma de militância nelas. Como sujeito social emancipador é verdadeiramente abrangente, conjuntamente com a necessidade de reconstrução da forma-partido, temos o desafio de identificar a forma-militante que emerge nesse início de século. Portanto, junto com a forma-partido clássico se vai uma forma-militante personificada por Lênin e os camaradas bolcheviques, trotskistas, estalinos, etc.



Acredito que a crise da antiga forma-militante do século XX é ligada a passagem da lógica do sacrifício para a lógica da coragem neste nosso século XXI. Em todos grandes revolucionários do século XX (Lênin, Rosa, Che, Fidel, Ho Chi Min, etc.) é enfatizado diversas vezes o caráter do sacrifício pessoal para o militante conseguir ser um soldado da causa. Mirando no sacrifício era possível ser um bom militante para levar adiante as tarefas que lhe eram confiadas, capaz de guardar para si as feridas e contradições internas da Organização. Hoje não há mais espaço para cobrar sacrifícios. Este militante profissional baseado no sacrifício individual está a caminho da extinção neste início de século. A rigor, os que sobrevivem são fantasmas que ainda perambulam pelas ruas a acreditar na possibilidade da manutenção daquele modelo. Pensa ainda numa organização leninista ou, no limite extremo, stalinista. Imagina-se numa época que já passou. Saudoso, quer as massas na rua, o partido a guiá-las. E elas, insubmissas, não o obedecem.



Assim a pergunta que fica é: o militante do século XXI terá a coragem (e não o sacrifício) de correr de forma autodisciplinada os riscos necessários para colocar na prática um ideal necessário, possível, viável e urgente? Acredito que essa pergunta seja importante porque o militante do século XXI modificou sua visão do futuro. O militante do século XX tinha certa certeza de um terreno paradisíaco que viríamos a construir. Como vivemos no fim de um conceito de história que não aceita mais determinismos que possibilitavam colocar o Partido como portador da Razão Histórica, o militante do século XXI tem como desafio não apenas a (re)construção das necessárias estruturas organizacionais da solidariedade de classe. Assim temos como desafio o forjamento de uma subjetividade classista que não se reduza apenas a reivindicações que defendam a unidade dos trabalhadores e os efeitos perversos do capitalismo, mas também consolidem positivamente uma sociabilidade que elucide os antagonismos existentes entre capital e trabalho, além do papel das burocracias sindicais e partidárias, caminhando com uma autocrítica permanente implantando pela práxis cotidiana mudanças radicais na divisão social do trabalho em direção à igualdade substantiva.



Nesse sentido, a força emancipadora emergente e multifacetada do século XXI só conseguirá prevalecer se conseguir se organizar sobre princípios muitos diferentes de troca daqueles dominantes na sociedade capitalista em crise. Nesse sentido proponho que um princípio do militante do século XXI, como diria Marx, seja a troca de atividades entre indivíduos e organizações autogeridas com o interesse comum totalmente objetivo de construção de uma sociedade para além do capital e do parlamentarismo.



Isso porque a militância não é apenas um envolvimento mais ou menos limitado em discussões, geralmente reduzido ao ritual extremamente vazio de “consulta”, mas a aquisição progressiva dos poderes alienados de tomada de decisão usurpados pelo capital e pelo Estado que são retomados pelo corpo social de produtores livremente associados. Por isso a militância significa o exercício criativo e autoaperfeiçoador, em benefício de todos, dos poderes de tomada de decisão adquiridos conjuntamente. E sim, é preciso ter olhos para ver esse novo militante que surge. Só com os olhos abertos, com uma visão muito ampla, avessa a dogmatismos, a fórmulas prontas, é que os partidos de esquerda poderão também tê-lo em suas fileiras – algo mais necessário do que nunca para a reconstrução da forma-partido.



Uma vez Che falou que, mesmo correndo o risco de parecer ridículo, o verdadeiro revolucionário é guiado por grandes sentimentos de amor. Seria impossível pensar num militante sem essa qualidade. Entretanto, que amor seria esse? Acredito que essa concepção de amor é muito parecida com a de Jacques Lacan: amor é dar o que não se tem para quem não quer. O militante não se limita a dar, mas recebe, em alguns momentos, muito mais do que aquilo que dá: adquire novas experiências, maturidade política, aprende como vivem nossos camponeses e trabalhadores, novas formas de contato humano, aprende a lidar com o inimigo, etc. Por isso o estímulo do militante não depende do Outro para que regulamente ou ordene sendo um exercício de autodisciplina contínua e sem fim. O fato de que as formalidades da vida militar não adaptarem a militância não exclui a disciplina estrita e informal que nasce da convicção profunda do combate que estamos integrados e que depende de todos. Assim, o intuito do militante é o auto-controle com a consciência de dever com a sociedade que estamos construindo.



A coragem do militante deve ser construída progressivamente e conscientemente em atos cotidianos que sirvam de exemplos-vivos para afinarmos nossos espíritos revolucionários. A coragem é a virtude que se manifesta pela materialização do impossível. A hora do destino chegou. Faremos o militante do século XXI: nós mesmos.

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