O início do governo Dilma será um novo estado de emergência econômico como o de Lula em 2003?
Dilma apresentou a estratégia dos primeiros dois meses de governo que inclui a discussão sobre a regulamentação da reforma da previdência do setor público de 2003, a proposta de desoneração gradual da folha de pagamento de empresas, reforma tributária, a nova regra de partilha do pré-sal e a proposta que limita o reajuste da folha de salários do funcionalismo público. Um programa de ajuste fiscal está sendo gestado e parece corresponder aos interesses do capital portador de juros e, ao mesmo tempo, da “nova classe” dos conselhos administrativos.
Talvez o marco mais interessante do próximo governo será a continuação da crescente convergência econômica entre Brasil e China. A potência asiática impulsiona o avanço dos setores de menos valor agregado brasileiro tendo como resultado mais imediato a maior dependência das exportações. A China produz uma política econômica que torna direta a relação entre expansão da manufatura e da grande indústria com a elevação das importações de produtos primários. Como resultado o preço desses produtos mantêm-se valorizados condicionando a grande indústria de países como o Brasil.
Enquanto as importações totais do Brasil de produtos dos EUA passaram de 23,21% em 2001 para 14,96% do PIB em 2010, as exportações da China ao Brasil cresceram junto com as exportações brasileiras à China. A China já é responsável por 14,1% do total de importações brasileiras em 2010. Concomitantemente, as exportações para a China cresceram constantemente desde 2000, puxado pela venda principalmente de soja e minério de ferro passando de 1,41% do total de exportações brasileiras para 13,7% dez anos depois. Em 2011 passará de 15% ultrapassando os EUA.
Isso apresentará em médio prazo uma maior vulnerabilidade externa do Brasil pela condição volúvel dos preços das commodities. A diversificação do comércio exterior brasileiro não representou uma menor dependência do setor primário. Agora há exportação de commodities para os EUA (especialmente de óleos brutos que chega a 18% das exportações) e para a China.
2011 promete ainda alavancar o preço das commodities. As cotações de soja e milhos são as mais elevadas desde julho de 2008. A demanda por alimentos continua aquecida pelo mercado chinês. O total de investimentos financeiros nos mercados de commodities em geral soma algo em torno de US$ 360 bilhões. Assim Dilma iniciará o governo com o preço das commodities em alta impulsionando as exportações de bens primários. Segundo cálculos, os preços das commodities superariam até as ações de empresas de grande porte, como JBS, Petrobrás e Vale. A desvalorização internacional do dólar também ajuda neste conjunto de fatores que apontam uma maior vulnerabilidade internacional do Brasil. As principais commodities cotizadas no final de 2010 são o café, o boi gordo, o algodão, açúcar, milho, trigo e soja, além do pico do petróleo.
Estimativas dizer que o ritmo de crescimento três vezes maior dos “emergentes” em relação aos países mais desenvolvidos aponta para países como China, Brasil, Rússia, Índia e África do Sul representem cerca de 80% da expansão global em 2011. Ao manter seu dinamismo seriam pólos de crescimento em meio a um ambiente internacional de recessivo. Enquanto os países mais desenvolvidos crescerão cerca de 2,5% em média, os BRICS registrarão expansão de 7,4%. O Brasil tem a projeção de 4,5% e a China de 10% enquanto a zona do euro e o Japão crescerão algo entre 1,5 e 2%.
Nos EUA a estratégia de aumento das exportações de bens e servicos com maior valor agregado parece não surtir efeito sobre o consumo interno. Na realidade, os EUA vivem uma crise de SUPERCONSUMO. Mesmo com a alta na liquidez da moeda e baixa taxa de juros o excesso de capital-monetário não é investido por bancos e empresas na produção de empregos e renda. Parece que a política econômica dos EUA quer imitar a do Brasil com o consumo buscando alavancar os investimentos e não o contrário. Infelizmente essa também é uma estratégia limitada, ainda mais para os EUA.
Enquanto isso os bancos estrangeiro continuam esperando pela abertura do mercado de capitais na China. Parece que o bolo vai crescendo e com ele os investimentos na África e na América Latina – principalmente com a reciclagem dos dólares que resultam em grandes superávits. O Japão também parece viver uma ironia história já que, depois de década de recessão e crise política, somente a China foi ser um parceiro condizente para a expansão de novos mercados e avanço tecnológico. A China está se tornando o “segundo mercado doméstico” de muitos países e ainda tem um espaço de acumulação considerável, em comparação com a Europa e o Japão.
Para finalizar, o governo Dilam enfrentará o “corte nos gastos” que procuraria dosar a alta dos juros para conter a inflação. Isso também é conveniente para a classe de gestores ex-sindicalistas. Essa “nova classe” tem a função de dirigir os órgãos administrativos do capital portador de juros (em especial fundos de pensão) e intensificar os regimentos internos da reestruturação produtiva nas empresas que fazem parte. Trata-se de um “aburguesamento” dos quadros que subiram na hierarquia estatal passando a fazer parte da classe social que sua renda, status e posição lhe dá acesso. Diferentemente dos banqueiros de FHC, essa camada social – com salários altíssimos – usufrui de carros blindados, roupas, vinhos e hábitos caros passando da vanguarda operária para a vanguarda dos gestores.
Ex-dirigentes sindicais se transformando em sócios menores do capital portador de juros (que costumam enfatizar a independência dos sindicatos frente aos partidos e governos) embolam a hegemonia lulista ao incorporar conselhos e presidências como do Sesi, Senai, Sesc, Ministério do Trabalho, Regionais do Trabalho, Previ, Petros, Eletrobrás, BNDES, etc. No Brasil são mais de 250 cargos nos conselhos de 74 empresas que a Previ participa. Esses fundos de pensão são reservas de aposentadoria separadas das contas do empregador que são valorizadas nos mercados financeiros. Elas devem servir para pagar aposentadorias. Os fundos transferem sua gestão a administradores especializados que exercem fortes pressões para obter elevados retornos do investimento. Esses fundos, então, se alimentam do capital portador de juros e dependem de altas taxas de juros.
Em síntese, a política econômica tecnocrática de Dilma está sendo regulada pelas frações da burguesia nacional e pela “nova classe” que tem interesses profundos na alta taxa de juros e na expansão do crédito. Para isso Dilma não pode abrir mão da autoridade quase materna que tem.
A "esquerda" não queria Dilma? Dilma terão!
Neste blog regurgito minhas posições sobre diferentes aspectos da realidade/fantasia social, política e econômica do mundo atual.
sexta-feira, 31 de dezembro de 2010
sábado, 27 de novembro de 2010
Quem são os inimigos? Fascismo social no Rio
As favelas são o sintoma da globalização capitalista. Elas não fazem parte de um projeto social que deu errado ou um acidente no processo de distribuição de renda e espaço. Pelo contrário, as favelas são o resultado necessário diante do processo de concentração e centralização da riqueza. Mais de 70% da população urbana no Terceiro Mundo é favelada hoje. Não devemos ter medo de propor que a favela é hoje o “campo de concentração” por excelência da globalização capitalista e o Rio de Janeiro um epicentro tanto de favelas como das políticas “públicas” que incentivam o apartheid social generalizado.
A favela, ao mesmo tempo dentro e fora do ordenamento espacial da lei, persiste no cotidiano com um excesso de controle por parte do Estado para assegurar principalmente suas bordas, para que os conflitos sociais que possibilitaram a ascensão das favelas não se dissolvam pelo tecido social fazendo com que, ao mesmo tempo, exista um enclausuramento dos favelados. Essa violência aberta ocasiona diversas mortes aleatórias e irresolvidas. No rio de Janeiro em especial, a política pública de segurança – a ser seguida pelo governo Dilma – tem a execução sumária como categoria política central.
No Rio diferentes formas de criminalização da pobreza e controle sobre as favelas são colocados em prática, como a construção de muros que cerceiam a favela e a utilização de aparatos técnicos de vigilância como aeronave não tripulada da Polícia Federal que podem ser comandados por um piloto em terra, que fica numa base a até mil quilômetros de distância, ou voar em missões pré-programadas. Decolagem e pouso são automáticos. Cada aeronave é dotada de aparelhos que permitem captar imagens em alta resolução mesmo quando está a 10 mil metros de altitude (10 mil metros!).
Entretanto, a forma mais explícita de criminalização da pobreza é a entrada massiva da polícia e do exército nas favelas que, praticamente em todas as operações, beneficia apenas interesses escusos - como das milícias – sendo uma ofensiva tática militar contra civis que acabam morrendo aleatoriamente aos montes. Na atual ação civil-militar no grande Complexo do Alemão, por exemplo, fica claro que o objetivo não é acabar com o tráfico, mas reconfigurar sua disposição geopolítica em favor das milícias. Deixar um espaço vazio para a entrada das milícias e do Terceiro Comando que, como todos sabem, tem acordos com a política de segurança. Esse é objetivo real da operação em curso.
A questão é que o modelo do tráfico que se firmou historicamente no Rio está em declínio. Na realidade, com a expansão das milícias o tráfico territorializado tornou-se obsoleto. É muito pesado e caro manter um pequeno exército do tráfico considerando que nas milícias são os próprios policiais, seu armamento, disciplina e treinamento que estão em jogo. As dinâmicas políticas e econômicas predominantes hoje também tornam difíceis qualquer competição com as milícias que não se reduzem a um nicho exclusivo de mercado, como do comércio de drogas, e se expandem para uma diversidade de atividades.
Já a mídia, na forma com que retrata essa barbárie, mostra ao povo apenas idiotisse generalizada. Tudo se passa como se fosse uma luta do bem contra o mal e que os “bandidos” são os inimigos reais que a democracia deveria lutar. Desconsideram as milícias, a própria polícia, o Estado, a criminalização, etc, etc. É a banalização do fascismo social. O cerco ao Complexo do Alemão não deve nos enganar: como disse João Cláudio Alves, “o que está por trás desses conflitos urbanos é uma reconfiguração da geopolítica do crime na cidade... Nesse rearranjo quem vai se sobressair são, sobretudo, as milícias, o Terceiro Comando – que vem crescendo junto e operando com as milícias – e a política de segurança do Estado calcada nas UPPs – que não alteraram a relação com o tráfico de drogas”. O processo de triagem já começou e, para continuar funcionando, precisa da crescente máquina do Estado. É necessário ir contra os “inimigos internos” que são os elementos excedentes da sociedade em que a lei policial pode utilizar de forma discriminatória o uso e a funcionalidade de suas ações repressoras. Essa ação é um teste para o Estado brasileiro depois do treinamento imperialista de tropas no Haiti. Na realidade, essa ação da política/Exército no grande Complexo do Alemão é um acting out, assim como a entrada dos EUA no Afeganistão: porque o enfrentamento em lugares pobres que são mais fáceis e que não resolvem o seriamente o pepino? Porque não entrar na Baía da Guanabara aonde entram as armas que se destinam, em parte, ao tráfico? Seria um sinal de impotência para lidar de frente com as difíceis questões da violência social ou uma política de segurança fascista contra os pobres para restabelecer o controle sobre áreas estratégicas para a cidade da Copa e das Olimpíadas? Ou ambos?
E agora? Como combinar a necessidade urgente de formas mínimas de auto-organização nas favelas diante desta criminalização generalizada da pobreza que, além dos movimentos político-militares, também aterrorizam os pobres para que não tenham nenhuma possibilidade de reclamar contra sua penúria social?
A favela, ao mesmo tempo dentro e fora do ordenamento espacial da lei, persiste no cotidiano com um excesso de controle por parte do Estado para assegurar principalmente suas bordas, para que os conflitos sociais que possibilitaram a ascensão das favelas não se dissolvam pelo tecido social fazendo com que, ao mesmo tempo, exista um enclausuramento dos favelados. Essa violência aberta ocasiona diversas mortes aleatórias e irresolvidas. No rio de Janeiro em especial, a política pública de segurança – a ser seguida pelo governo Dilma – tem a execução sumária como categoria política central.
No Rio diferentes formas de criminalização da pobreza e controle sobre as favelas são colocados em prática, como a construção de muros que cerceiam a favela e a utilização de aparatos técnicos de vigilância como aeronave não tripulada da Polícia Federal que podem ser comandados por um piloto em terra, que fica numa base a até mil quilômetros de distância, ou voar em missões pré-programadas. Decolagem e pouso são automáticos. Cada aeronave é dotada de aparelhos que permitem captar imagens em alta resolução mesmo quando está a 10 mil metros de altitude (10 mil metros!).
Entretanto, a forma mais explícita de criminalização da pobreza é a entrada massiva da polícia e do exército nas favelas que, praticamente em todas as operações, beneficia apenas interesses escusos - como das milícias – sendo uma ofensiva tática militar contra civis que acabam morrendo aleatoriamente aos montes. Na atual ação civil-militar no grande Complexo do Alemão, por exemplo, fica claro que o objetivo não é acabar com o tráfico, mas reconfigurar sua disposição geopolítica em favor das milícias. Deixar um espaço vazio para a entrada das milícias e do Terceiro Comando que, como todos sabem, tem acordos com a política de segurança. Esse é objetivo real da operação em curso.
A questão é que o modelo do tráfico que se firmou historicamente no Rio está em declínio. Na realidade, com a expansão das milícias o tráfico territorializado tornou-se obsoleto. É muito pesado e caro manter um pequeno exército do tráfico considerando que nas milícias são os próprios policiais, seu armamento, disciplina e treinamento que estão em jogo. As dinâmicas políticas e econômicas predominantes hoje também tornam difíceis qualquer competição com as milícias que não se reduzem a um nicho exclusivo de mercado, como do comércio de drogas, e se expandem para uma diversidade de atividades.
Já a mídia, na forma com que retrata essa barbárie, mostra ao povo apenas idiotisse generalizada. Tudo se passa como se fosse uma luta do bem contra o mal e que os “bandidos” são os inimigos reais que a democracia deveria lutar. Desconsideram as milícias, a própria polícia, o Estado, a criminalização, etc, etc. É a banalização do fascismo social. O cerco ao Complexo do Alemão não deve nos enganar: como disse João Cláudio Alves, “o que está por trás desses conflitos urbanos é uma reconfiguração da geopolítica do crime na cidade... Nesse rearranjo quem vai se sobressair são, sobretudo, as milícias, o Terceiro Comando – que vem crescendo junto e operando com as milícias – e a política de segurança do Estado calcada nas UPPs – que não alteraram a relação com o tráfico de drogas”. O processo de triagem já começou e, para continuar funcionando, precisa da crescente máquina do Estado. É necessário ir contra os “inimigos internos” que são os elementos excedentes da sociedade em que a lei policial pode utilizar de forma discriminatória o uso e a funcionalidade de suas ações repressoras. Essa ação é um teste para o Estado brasileiro depois do treinamento imperialista de tropas no Haiti. Na realidade, essa ação da política/Exército no grande Complexo do Alemão é um acting out, assim como a entrada dos EUA no Afeganistão: porque o enfrentamento em lugares pobres que são mais fáceis e que não resolvem o seriamente o pepino? Porque não entrar na Baía da Guanabara aonde entram as armas que se destinam, em parte, ao tráfico? Seria um sinal de impotência para lidar de frente com as difíceis questões da violência social ou uma política de segurança fascista contra os pobres para restabelecer o controle sobre áreas estratégicas para a cidade da Copa e das Olimpíadas? Ou ambos?
E agora? Como combinar a necessidade urgente de formas mínimas de auto-organização nas favelas diante desta criminalização generalizada da pobreza que, além dos movimentos político-militares, também aterrorizam os pobres para que não tenham nenhuma possibilidade de reclamar contra sua penúria social?
terça-feira, 26 de outubro de 2010
Dilma sem ilusões
Nestas eleições presidenciais de segundo turno no Brasil vale perfeitamente o cutuque de Zizek: “com essa esquerda quem precisa de direita?”.
O governo Lula re-configurou o capitalismo, as relações de classe, a esquerda, a política e a história do Brasil. Como bem disse Lula “como o Brasil era uma economia capitalista se não tinha crédito? Precisou entrar um metalúrgico socialista para transformar esse país num país capitalista”. Houve a instalação da pós-política democrática pluriclassista “fukuyamista” como discurso nacional oficial numa estranha mistura de gestão dos interesses privados (nacionais e internacionais) com o fim da história política sob a figura do PT no poder.
Algumas pessoas me perguntam: “e aí, como vai ser no segundo turno?”. Entre aqueles que estão pendendo para o Serra enfatizo a necessidade do voto nulo. Para aqueles que são Dilma digo que a melhor posição é “Dilma sem ilusões”. Ok, Dilma tende a ser melhor que Serra. Mas, por favor, não vamos nos iludir que Dilma vai descriminalizar o movimento social e a pobreza, que vai modificar a política macroeconômica baseada em especulação e altos juros. Não devemos ter ilusões. Dilma é uma grande incentivadora da autonomia do Banco Central, de altos investimentos no Agronegócio e despejos para a Copa do Mundo. É Dilma, ok, mas sem ilusões que os bancos vão ganhar menos, que a concentração de terra vai diminuir e que a Reforma Agrária vai ser feita, etc, etc. Isso é, para não cairmos no campismo (doença infantil da esquerda) o voto na Dilma é um voto tático diante da barbárie serrista.
Muito do que o petismo está falando agora é pura retórica e deve ser descartado: “oh, você não está vendo como a Dilma está sendo atacada pela mídia?”. Pena! Foram OITO anos sem a criação de nenhuma mídia alternativa de longo alcance. Além disso, o petismo realmente acreditou que ao ser democrático a direita raivosa iria agora “respeitar” os princípios de governabilidade? Quanta ingenuidade! O pensamento conservador agora está se repolitizando pelo espaço aberto da despolitização que o petismo instaurou.
Outra balela petista que escuto sempre é que com num eventual governo Dilma os movimentos terão mais espaço para lutar. Bem, não necessariamente. Peguemos um exemplo claro que é sua relação com o MST.
Dilma é anti-MST na essência. Sabemos que a o método da luta pela terra no Brasil tem como centralidade as ocupações de terra. Sem elas não existe reforma agrária. Paremos de brincadeira. Dilma disse o seguinte numa recente entrevista: “E não condeno (as invasões) de hoje não. Condeno desde o início do governo Lula. Ele condenou também explicitamente. Nós não concordamos com invasão de prédio, invasão de terra. Não achamos que esse é o método correto”. E daí que “nós não achamos que esse é o método correto”? O que Dilma sabe sobre a práxis da luta de classes no campo? Ela não sabe nem a diferença de uma invasão e de uma ocupação e quer pautar o movimento sem-terra a partir de uma “ligações políticas históricas” entre PT e MST? Dilma que não é uma liderança popular quer impor ao movimento os métodos que podem e devem ser usados? A partir de qual parâmetro? Dilma recentemente abriu o jogo: “fizemos uma política que tirou as principais bandeiras deles. Não foi porque a gente reprimiu. Tem coisa mais eficaz que atender o movimento?”. Em outras palavras, quando o Estado compra o movimento estaria existindo um avanço para a esquerda, ou seja lá o que ela quer dizer com “esquerda”. É a Terceira Internacional correndo nas veias de Dilma. Contra o reacionarismo de Dilma que disse que “Nós não somos o MST”, o real desafio é o lema do MST ser levado a cabo pelo MST e pelo que resta da esquerda: “Todos somos sem-terra”. Como escreveu meu amigo Rodrigo Choinski
"Neste contexto, posição vergonhosa assume a maioria dos movimentos sociais. Mostrando que o medo é um mau conselheiro, a maioria assume a posição equivocadíssima de apoio total e irrestrito (até apaixonado) a Dilma e por consequência apoio (sem concessões) à continuação da atual ordem sócio-econômica e, portanto de tudo aquilo que pretendem combater – já que os problemas que enfrentam têm justamente causa no sistema do capital [...]. É justamente a falsidade do projeto petista – colocado hipocritamente como dos trabalhadores – que mantém ativa a possibilidade da direita mais ordinária voltar ao poder, o que cedo ou tarde vai acontecer, (resultado das instabilidades econômicas do capitalismo que afetam o quadro político, como a possível nova onda da crise mundial pronta para arrebentar no Brasil no biênio 2011-2012)".
O “fim da história” se estabilizou com Lula que, como ninguém em toda a história, geriu uma pós-política em conjunto com as classes industriais, financeiras e latifundiárias. Do ponto de vista do capital, Lula é “o cara”. Agora vem a coroa (DILMA) demonstrando, cada vez mais, que a “linha de menor resistência” faz parte do problema da esquerda, e não da solução. Viva a ambigüidade centrista de DILMA. É DILMA sem ilusões porque não há alternativa – situação criada pelo próprio PT.
Como dizia Marx, a vergonha já é uma revolução. Nada mais necessário hoje do que sentir vergonha do que o PT se tornou para reavaliar as alternativas que estão sendo construídas e não seguir eternamente o caminho mais fácil, mas cheio de oportunismo em nome da “governabilidade”. É o “fim da história” na ascensão do bipartidarismo – PT e PSDB – que esconde sua falsa oposição já que nenhum dos dois postula uma real alternativa que coloque em jogo o marasmo político existente: tudo em nome da gestão pós-política do Estado capitalista do século XXI.
O governo Lula re-configurou o capitalismo, as relações de classe, a esquerda, a política e a história do Brasil. Como bem disse Lula “como o Brasil era uma economia capitalista se não tinha crédito? Precisou entrar um metalúrgico socialista para transformar esse país num país capitalista”. Houve a instalação da pós-política democrática pluriclassista “fukuyamista” como discurso nacional oficial numa estranha mistura de gestão dos interesses privados (nacionais e internacionais) com o fim da história política sob a figura do PT no poder.
Algumas pessoas me perguntam: “e aí, como vai ser no segundo turno?”. Entre aqueles que estão pendendo para o Serra enfatizo a necessidade do voto nulo. Para aqueles que são Dilma digo que a melhor posição é “Dilma sem ilusões”. Ok, Dilma tende a ser melhor que Serra. Mas, por favor, não vamos nos iludir que Dilma vai descriminalizar o movimento social e a pobreza, que vai modificar a política macroeconômica baseada em especulação e altos juros. Não devemos ter ilusões. Dilma é uma grande incentivadora da autonomia do Banco Central, de altos investimentos no Agronegócio e despejos para a Copa do Mundo. É Dilma, ok, mas sem ilusões que os bancos vão ganhar menos, que a concentração de terra vai diminuir e que a Reforma Agrária vai ser feita, etc, etc. Isso é, para não cairmos no campismo (doença infantil da esquerda) o voto na Dilma é um voto tático diante da barbárie serrista.
Muito do que o petismo está falando agora é pura retórica e deve ser descartado: “oh, você não está vendo como a Dilma está sendo atacada pela mídia?”. Pena! Foram OITO anos sem a criação de nenhuma mídia alternativa de longo alcance. Além disso, o petismo realmente acreditou que ao ser democrático a direita raivosa iria agora “respeitar” os princípios de governabilidade? Quanta ingenuidade! O pensamento conservador agora está se repolitizando pelo espaço aberto da despolitização que o petismo instaurou.
Outra balela petista que escuto sempre é que com num eventual governo Dilma os movimentos terão mais espaço para lutar. Bem, não necessariamente. Peguemos um exemplo claro que é sua relação com o MST.
Dilma é anti-MST na essência. Sabemos que a o método da luta pela terra no Brasil tem como centralidade as ocupações de terra. Sem elas não existe reforma agrária. Paremos de brincadeira. Dilma disse o seguinte numa recente entrevista: “E não condeno (as invasões) de hoje não. Condeno desde o início do governo Lula. Ele condenou também explicitamente. Nós não concordamos com invasão de prédio, invasão de terra. Não achamos que esse é o método correto”. E daí que “nós não achamos que esse é o método correto”? O que Dilma sabe sobre a práxis da luta de classes no campo? Ela não sabe nem a diferença de uma invasão e de uma ocupação e quer pautar o movimento sem-terra a partir de uma “ligações políticas históricas” entre PT e MST? Dilma que não é uma liderança popular quer impor ao movimento os métodos que podem e devem ser usados? A partir de qual parâmetro? Dilma recentemente abriu o jogo: “fizemos uma política que tirou as principais bandeiras deles. Não foi porque a gente reprimiu. Tem coisa mais eficaz que atender o movimento?”. Em outras palavras, quando o Estado compra o movimento estaria existindo um avanço para a esquerda, ou seja lá o que ela quer dizer com “esquerda”. É a Terceira Internacional correndo nas veias de Dilma. Contra o reacionarismo de Dilma que disse que “Nós não somos o MST”, o real desafio é o lema do MST ser levado a cabo pelo MST e pelo que resta da esquerda: “Todos somos sem-terra”. Como escreveu meu amigo Rodrigo Choinski
"Neste contexto, posição vergonhosa assume a maioria dos movimentos sociais. Mostrando que o medo é um mau conselheiro, a maioria assume a posição equivocadíssima de apoio total e irrestrito (até apaixonado) a Dilma e por consequência apoio (sem concessões) à continuação da atual ordem sócio-econômica e, portanto de tudo aquilo que pretendem combater – já que os problemas que enfrentam têm justamente causa no sistema do capital [...]. É justamente a falsidade do projeto petista – colocado hipocritamente como dos trabalhadores – que mantém ativa a possibilidade da direita mais ordinária voltar ao poder, o que cedo ou tarde vai acontecer, (resultado das instabilidades econômicas do capitalismo que afetam o quadro político, como a possível nova onda da crise mundial pronta para arrebentar no Brasil no biênio 2011-2012)".
O “fim da história” se estabilizou com Lula que, como ninguém em toda a história, geriu uma pós-política em conjunto com as classes industriais, financeiras e latifundiárias. Do ponto de vista do capital, Lula é “o cara”. Agora vem a coroa (DILMA) demonstrando, cada vez mais, que a “linha de menor resistência” faz parte do problema da esquerda, e não da solução. Viva a ambigüidade centrista de DILMA. É DILMA sem ilusões porque não há alternativa – situação criada pelo próprio PT.
Como dizia Marx, a vergonha já é uma revolução. Nada mais necessário hoje do que sentir vergonha do que o PT se tornou para reavaliar as alternativas que estão sendo construídas e não seguir eternamente o caminho mais fácil, mas cheio de oportunismo em nome da “governabilidade”. É o “fim da história” na ascensão do bipartidarismo – PT e PSDB – que esconde sua falsa oposição já que nenhum dos dois postula uma real alternativa que coloque em jogo o marasmo político existente: tudo em nome da gestão pós-política do Estado capitalista do século XXI.
segunda-feira, 11 de outubro de 2010
A Atualidade do Comunismo
O desconserto das “saídas da crise” que os estadistas, capitalistas financeiros e industriais estão propondo, vangloriando e prometendo não respondem uma das questões essenciais que nos deparamos nesse século XXI: vamos construir uma alternativa viável, abrangente e sustentável de sociedade a partir de novas organizações coletivas que sejam as “mediações” rumo uma “nova forma histórica” ou vamos sucumbir com o aprofundamento apocalíptico da crise estrutural do capital e suas tendências de aumento da concentração de renda, desemprego crônico, ampla militarização, esgotamento dos recursos naturais, penalização da pobreza e dos movimentos anticapitalistas, precarização e fragmentação do trabalho, etc? Contra aqueles etapistas-evolucionistas-positivistas de esquerda que estavam torcendo pela crise já que estaríamos, assim, caminhando para o socialismo, a pergunta que precisa ser respondida é: o capitalismo poderá sobreviver a essa crise? Indubitavelmente sempre respondo: sem dúvida alguma! A questão é: a que custo? Também sem dúvidas com o custo de uma maior expropriação dos direitos do trabalho numa intensificação da atual precarização generalizada, expansão do crédito (e dívidas), fundos de pensão, maior degradação ambiental, atomizção social, aumento das desigualdades de classe e, para o sucesso disso tudo, um aumento expressivo na repressão policial e política.
1
Os impactos da crise financeira de 2008 sacudiram muitas certezas dominantes que, devida a desestruturação histórica da esquerda pelo esgotamento e esterilidade da forma de luta defensiva, abriu o caminho para uma reorganização da direita – extrema e liberal – com o ímpeto de reafirmar o poder de classe e restabelecer as bases de extração da mais-valia.
A narrativa dominante sobre a atual crise (e que grande parte da esquerda aceita como fato) diz que ela teve como causa a atuação excessiva de alguns capitalistas financeiros internacionais ambiciosos e que, assim, a solução se encontra num novo pacto regulatório entre a “economia real” e a “economia financeira” só de forma mais humana, tolerante, ecológica e harmônica. Essa saída ideológica além de isentar o próprio sistema capitalista de culpa, tem graves conseqüências políticas. Esse discurso “fukuyamista” que a esquerda aprova só faz sentido quando a democracia-liberal contemporânea torna-se o horizonte ontológico da humanidade. Apenas mudanças paliativas e assistencialistas seriam possíveis e, assim, só podemos lutar dentro do jogo democrático – por mais que seja essa mesma democracia o principal obstáculo a transformação social radical hoje.
Assim alguns desafios – negativos e positivos - emergem para a esquerda. Com a entrada histórica da crise estrutural do capital, desde meados de 1970, uma estratégia ofensiva de transformação radical corresponde, em primeiro lugar, ao desconfortável fato negativo de que algumas formas de ação anteriores (“as políticas de consenso”, “pleno emprego, “a expansão do Estado de bem-estar-social”, “keynesianismo para todos” etc.) estão objetivamente bloqueadas, impondo reajustes profundos na sociedade como um todo – e não apenas em alguma parte específica. Estar partindo dessa “negatividade brutal” inicial não significa que os reajustamentos serão positivos, mobilizando as forças de transformação num esforço consciente para se apresentarem como portadoras de uma ordem social alternativa capaz de superar a sociedade capitalista em crise. Como essas mudanças exigidas são muito drásticas, em vez de prontamente aceitarmos o “salto para o desconhecido”, é mais provável que se prefira seguir a “linha de menor resistência” ainda por um tempo considerável, mesmo que isso signifique derrotas significativas para as forças socialistas. Por isso, como salientou István Mészáros, “somente quando as opções da ordem predominante se esgotarem se poderá esperar por uma virada espontânea para uma solução radicalmente diferente” (2006, p. 788). Esse “salto para o desconhecido” é correlato ao “salto de fé” de Kierkagaard que, não tendo a aprovação do Outro, é o momento em que o que era aparentemente impossível se materializa. Portanto, a lição de Rosa Luxemburgo continua mais válida do que nunca: não existem condições objetivas perfeitas para essa transformação radical já que elas são retroativamente criadas pelo próprio movimento. Assim como o amor, quem espera por tal transformação de forma “natural” espera para sempre. Entrementes, essa práxis ofensiva necessita de uma bússola, uma visão que anime o que deve ser feito e por que. É uma lacuna que emerge entre o “movimento real” e a articulação com uma alternativa viável. Assim, o momento de crise profunda como a que vivemos é uma oportunidade histórica para se repensar profundamente a transição social na construção de uma alternativa radical em novas bases organizacionais, de consciência e ação. Que alternativa seria essa?
A lição que talvez sejamos forçados a aprender de nossas condições econômicas e políticas atuais é que um capitalismo humano, social, ecológico e verdadeiramente democrático e igualitário é mais irreal, ilusório e utópico do que o Comunismo. Assim, é tempo de voltar ao Comunismo? Entretanto, qual Comunismo? Ou então, um outro Comunismo é possível?
Vale frisar que stalinismo e o fracasso do socialismo real não invalidam o horizonte de emancipação radical que é o Comunismo. Por isso, é preciso reabilitar e ressignificar urgentemente o Comunismo. Stálin tornou uma ala do partido uma espécie de representação do Espírito Absoluto, perdendo qualquer capacidade de aprendizagem, um princípio socialista fundamental. Stálin introduziu duas novas características ao partido, que não estavam postuladas por Lênin, que intensificaram o seu monolitismo totalitário. Foram às sementes do stalinismo e que precisamos urgentemente simbolizar e apreender criticamente para retomar o projeto Comunista hoje. Elas consistem em: 1) tornar as frações e minorias um “inimigo interno” incompatibilizando sua própria existência e 2) depuração dos elementos oportunistas. A primeira medida (adotada no X Congresso) procura tornar uma medida temporalmente específica em princípio permanente e, assim, extinguindo as diferentes tendências e minorias no interior do partido. A segunda medida busca assegurar uma composição do partido sempre favorável ao núcleo dirigente central. Essas duas características stalinistas par excellence necessitam ser verificadas constantemente em qualquer movimento anticapitalista e não apenas nos partidos políticos.
2
O Comunismo não espera a aprovação do grande Outro – o Partido Comunista, as mídias, o Estado, as empresas, etc. - já que depende da articulação ativa dos sujeitos sociais que constroem na sua práxis uma dinâmica associativa em que, como dizia Marx, o livre desenvolvimento de um é a condição para o livre desenvolvimento de todos. O estímulo do militante comunista não depende do Outro para que regulamente ou ordene. Depende do dever de auto-mediação para com a sociedade que estamos construindo. Esse é um trabalho cotidiano “no sentido interno de aperfeiçoamento, de aumento de conhecimentos, do aumento da compreensão do mundo que nos rodeia. Inquirir, averiguar e conhecer bem o porquê das coisas, equacionar sempre os grandes problemas da humanidade como problemas próprios” (Che, 2009, p. 42). Assim, temos que ter a clareza que o Comunismo não depende de um sujeito particular. Na realidade, depende de uma explosiva combinação de diversos agentes sociais e suas mediações institucionais.
O Comunismo se apresenta como uma tarefa radical e imediata na escala que se pode: trabalho, município, bairro, centro de estudo, etc. Não podemos esperar por uma grande revolução para começar um processo de autoeducação sobre nossas capacidades de autogestão e organização coletivas. Como disse recentemente Alain Badiou, “no momento, o que interessa é a prática da organização política direta no seio das massas populares e de experimentar novas formas de organização” orientadas pela “idéia de uma sociedade cujo motor não seja a propriedade priva¬da, o egoísmo e a avidez”. Entretanto, como o capitalismo está fermentando uma luta planetária para enfrentar sua crise, qualquer força social e política progressista não pode ficar estagnada ao local e parcial sendo, assim, necessário se conectar concretamente com uma coordenação de todas as resistências em todos os continentes. Sem dúvida um grande desafio pela frente: unidade organizativa na diversidade heterogênea anticapitalista global.
Voltando a Marx, o Comunismo não é um Ideal que vamos todos chegar felizes ou sem rupturas drásticas e sim o “movimento Real” de superação dos antagonismos existentes no atual tempo histórico. Esse “movimento real” é essencialmente traumático já que quebra o ordenamento acelerado da vida no capitalismo atual que, paradoxalmente, reduz a história ao imediato. Em A Ideologia Alemã Marx julga que esse processo passa por uma consciência comunista numa escala de massas:
Tanto para a criação em massa dessa consciência comunista quanto para o êxito da própria causa faz-se necessária uma transformação massiva dos homens, o que só se pode realizar por um movimento prático, por uma revolução; que a revolução, portanto, é necessária não apenas porque a classe dominante não pode ser derrubada de nenhuma outra forma, mas também porque somente com uma revolução a classe que derruba detém o poder de desembaraçar-se de toda a antiga imundice e de se tornar capaz de uma nova fundação da sociedade (p. 42)
Por essa definição, os Comunistas se definem como todos aqueles que trabalham incessantemente para produzir um futuro positivamente diferente daquele que o capitalismo pode proporcionar ou prometer num revolucionamento constante causado por sua atividade de construção dos fundamentos da revolução.
Naturalmente, não existe Comunismo sem Comunistas. Quem é o Comunista? Ele está engajado nas “mediações” que ligam as tarefas presentes com o futuro. No sentido comunista, essas “mediações - instituições e organizações coletivas - demandam três características básicas: verificação constante da livre circulação de idéias e projetos (sempre no intento de expandir as práticas existentes), uma postura ofensiva socialista (diametralmente oposta da historicamente defensiva) que busca impor a construção de uma alternativa hegemônica diante da urgência histórica do aprofundamento dos antagonismos do sistema do capital e, não menos crucial, uma auto-crítica permanente que permeie pela aprendizagem todos os poros dessa instituição com o sentido de aperfeiçoar as relações entre consciência, organização e ação.
Numa recente carta endereçada por Alain Badiou a Slavoj Zizek encontramos uma bela definição não apenas do que é ser Comunista, como ainda do momento atual do Comunismo perante o seu próprio “fator” como invariante histórica de emancipação - sendo que outra invariante a humanidade não dispõe:
“Nós encontramo-nos no limiar de um ponto de método essencial e no qual, creio-o bem, não há entre nós nenhum desacordo de princípio. Tratando-se de figuras históricas como Robespierre, Saint-Just, Babeuf, Blanqui, Bakounine, Marx, Engels, Lenine, Trotski, Rosa Luxemburgo, Estaline, Mao Tse-Tung, Chou Enlai, Enver Hoxha, Guevara, Castro e alguns outros (e penso nomeadamente em Jean Bertrand Aristide [Haiti]), é ponto capital, sobre todos eles, nada ceder perante as tentativas de criminalização reacionárias ou perante as anedotas eriçadas com que o capital os pretende fechar e anular. Nós podemos e devemos discutir entre nós (um ‘nós’ que sinaliza aqueles para quem o capitalismo e as suas formas políticas são um horror, um ‘nós’ que nós somos para quem a emancipação igualitária é a única máxima de valor universal) o uso que fazemos, ou não fazemos, dessas figuras históricas. Essa discussão pode ser eventualmente viva e fortemente antagônica, mas ela dá-se ‘entre Nós’, e a nossa regra opõe-se absolutamente a toda a conspiração de latidos do adversário”.
Lembro com Che/Ueshiba que militante comunista procura se acostumar a “pensar como massa” – enxerga onde está à falta e a preenche com o vazio. Não existe militante ideal. Todo militante é não-Todo. Sempre ser-faltante que no movimento produz novos significantes para a rearticulação da luta emancipatória. Isso quer dizer que um princípio fundamental do Comunista é a não-resistência que necessita de verificação permanente no movimento de forma cada vez mais disciplinada e sincera no sentido de um aperfeiçoamento coletivo.
3
A legitimidade histórica do Comunismo depende da instituição de uma ordem reprodutiva viável a longo prazo que seja baseada em seus próprios termos positivos. Como sintetiza Mészáros, “a tarefa radical por princípio buscada de modo consciente para superar os antagonismos da ordem existente é inseparavelmente negativa e positiva ao mesmo tempo. E esse é o único significado apropriado que podemos dar ao termo radical, que não se pode permitir continuar atado a uma – definitivamente insustentável – postura puramente negativa” (2009, p. 302). Nesse sentido, a única mediação historicamente sustentável e viável para o Comunismo é a mediação de si própria por parte de um sujeito social ativo que seja capaz de intervir autonomamente e conscientemente no processo de transformação exigida em nosso “destino histórico” sob uma tomada de decisão substantiva pelo corpo social em sua totalidade. Assim, ao sistema orgânico e abrangente do capital devem ser contrapostas, por parte dos indivíduos orientados para a elaboração estratégica das mediações não antagônicas exigidas pela nova forma histórica, um conjunto de princípios e determinações operativos conscientes, críticos e também autocríticos não menos substantivos e abrangentes. Em outras palavras, uma automediação. Segundo Mészáros,
Nas relações interpessoais dos indivíduos sociais, mediação não antagônica significa seu envolvimento cooperativo genuíno na atividade com o propósito conscientemente escolhido de resolver alguns problemas, ou de fato resolver algumas disputas que possam surgir de suas relações. O que torna o contraste desse tipo de intercâmbio conscientemente regulado muito claro, em comparação com a modalidade de mediações antagônicas agora dominantes, é que a solução projetada para os próprios problemas devem ser encarados no interior da estrutura de um sistema de mediações não antagônicas não pode se solidificar e perpetuar na forma de interesses parciais estruturalmente consolidados. No curso histórico em andamento, de constituição na nova modalidade de mediações não antagônicas, os interesses parciais herdados devem ser radicalmente suplantados por meio da ação cooperativa sustentada, assegurando ao mesmo tempo as condições objetivas e subjetivas para impedir sua reconstituição (idem, 302).
Continuando com o húngaro,
Somente a instituição e manutenção bem-sucedidas do sistema de mediações não antagônicas como a alternativa hegemônica da nova forma histórica à ordem do capital agora dominante pode mostrar uma saída desses perigosos antagonismos. Pois estes não podem ser superados sem a inter-relação plenamente eqüitativa de solidariedade substantiva entre os indivíduos sociais livremente associados, assim como de seus países, na forma de sua solidariedade internacional genuína capaz de confrontar positivamente as falhas do passado. Essa é a única perspectiva historicamente sustentável para o futuro (2009, p. 308, 309).
Outros dois axiomas universais do Comunista são a igualdade substantiva – sempre faltante – e a universalidade solidária. Sem o horizonte do comunismo, sem essa Idéia no sentido de Badiou, nada no devir político, histórico e social tem qualquer interesse ao militante. Sustentar-se nessa Idéia, a existência dessa hipótese, não significa que essa sua primeira forma de manifestação necessite ficar inalterada. Por isso a tarefa, e até mesmo obrigação, badiouiana de “ajudar no surgimento de uma nova modalidade de existência da hipótese comunista”. (Cabe aqui um parênteses: mas quem seria o tal proletariado agente de transformação? Hoje, em contraste com a imagem clássica dos proletários que não têm “nada a perder além dos seus grilhões”, o que nos une é, como diz Zizek, o perigo de perdermos tudo: nossa propriedade genética, nosso meio ambiente, etc, etc). Talvez estejamos realmente sob o paradigma beckttiano de Lênin: Tende de novo. Fracasso de novo. Fracasso melhor. Em síntese, em nosso tempo devemos descer todo o caminho de volta até o ponto de partido: devemos começar do começo e não de um ponto alcançado na tentativa anterior. Reinventar o Comunismo.
Concluindo, não basta permanecer fiel a hipótese comunista: é necessário localizar a realidade histórica as contradições que transformem o comunismo numa urgência prática. O papel dos comunistas continua o de ser o pedagogo das classes trabalhadoras livre aos ensinamentos de uma linha de massas onde os fracassos doem e que, ao mesmo tempo, lhe possa acrescentar um projeto de futura igualdade social.
1
Os impactos da crise financeira de 2008 sacudiram muitas certezas dominantes que, devida a desestruturação histórica da esquerda pelo esgotamento e esterilidade da forma de luta defensiva, abriu o caminho para uma reorganização da direita – extrema e liberal – com o ímpeto de reafirmar o poder de classe e restabelecer as bases de extração da mais-valia.
A narrativa dominante sobre a atual crise (e que grande parte da esquerda aceita como fato) diz que ela teve como causa a atuação excessiva de alguns capitalistas financeiros internacionais ambiciosos e que, assim, a solução se encontra num novo pacto regulatório entre a “economia real” e a “economia financeira” só de forma mais humana, tolerante, ecológica e harmônica. Essa saída ideológica além de isentar o próprio sistema capitalista de culpa, tem graves conseqüências políticas. Esse discurso “fukuyamista” que a esquerda aprova só faz sentido quando a democracia-liberal contemporânea torna-se o horizonte ontológico da humanidade. Apenas mudanças paliativas e assistencialistas seriam possíveis e, assim, só podemos lutar dentro do jogo democrático – por mais que seja essa mesma democracia o principal obstáculo a transformação social radical hoje.
Assim alguns desafios – negativos e positivos - emergem para a esquerda. Com a entrada histórica da crise estrutural do capital, desde meados de 1970, uma estratégia ofensiva de transformação radical corresponde, em primeiro lugar, ao desconfortável fato negativo de que algumas formas de ação anteriores (“as políticas de consenso”, “pleno emprego, “a expansão do Estado de bem-estar-social”, “keynesianismo para todos” etc.) estão objetivamente bloqueadas, impondo reajustes profundos na sociedade como um todo – e não apenas em alguma parte específica. Estar partindo dessa “negatividade brutal” inicial não significa que os reajustamentos serão positivos, mobilizando as forças de transformação num esforço consciente para se apresentarem como portadoras de uma ordem social alternativa capaz de superar a sociedade capitalista em crise. Como essas mudanças exigidas são muito drásticas, em vez de prontamente aceitarmos o “salto para o desconhecido”, é mais provável que se prefira seguir a “linha de menor resistência” ainda por um tempo considerável, mesmo que isso signifique derrotas significativas para as forças socialistas. Por isso, como salientou István Mészáros, “somente quando as opções da ordem predominante se esgotarem se poderá esperar por uma virada espontânea para uma solução radicalmente diferente” (2006, p. 788). Esse “salto para o desconhecido” é correlato ao “salto de fé” de Kierkagaard que, não tendo a aprovação do Outro, é o momento em que o que era aparentemente impossível se materializa. Portanto, a lição de Rosa Luxemburgo continua mais válida do que nunca: não existem condições objetivas perfeitas para essa transformação radical já que elas são retroativamente criadas pelo próprio movimento. Assim como o amor, quem espera por tal transformação de forma “natural” espera para sempre. Entrementes, essa práxis ofensiva necessita de uma bússola, uma visão que anime o que deve ser feito e por que. É uma lacuna que emerge entre o “movimento real” e a articulação com uma alternativa viável. Assim, o momento de crise profunda como a que vivemos é uma oportunidade histórica para se repensar profundamente a transição social na construção de uma alternativa radical em novas bases organizacionais, de consciência e ação. Que alternativa seria essa?
A lição que talvez sejamos forçados a aprender de nossas condições econômicas e políticas atuais é que um capitalismo humano, social, ecológico e verdadeiramente democrático e igualitário é mais irreal, ilusório e utópico do que o Comunismo. Assim, é tempo de voltar ao Comunismo? Entretanto, qual Comunismo? Ou então, um outro Comunismo é possível?
Vale frisar que stalinismo e o fracasso do socialismo real não invalidam o horizonte de emancipação radical que é o Comunismo. Por isso, é preciso reabilitar e ressignificar urgentemente o Comunismo. Stálin tornou uma ala do partido uma espécie de representação do Espírito Absoluto, perdendo qualquer capacidade de aprendizagem, um princípio socialista fundamental. Stálin introduziu duas novas características ao partido, que não estavam postuladas por Lênin, que intensificaram o seu monolitismo totalitário. Foram às sementes do stalinismo e que precisamos urgentemente simbolizar e apreender criticamente para retomar o projeto Comunista hoje. Elas consistem em: 1) tornar as frações e minorias um “inimigo interno” incompatibilizando sua própria existência e 2) depuração dos elementos oportunistas. A primeira medida (adotada no X Congresso) procura tornar uma medida temporalmente específica em princípio permanente e, assim, extinguindo as diferentes tendências e minorias no interior do partido. A segunda medida busca assegurar uma composição do partido sempre favorável ao núcleo dirigente central. Essas duas características stalinistas par excellence necessitam ser verificadas constantemente em qualquer movimento anticapitalista e não apenas nos partidos políticos.
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O Comunismo não espera a aprovação do grande Outro – o Partido Comunista, as mídias, o Estado, as empresas, etc. - já que depende da articulação ativa dos sujeitos sociais que constroem na sua práxis uma dinâmica associativa em que, como dizia Marx, o livre desenvolvimento de um é a condição para o livre desenvolvimento de todos. O estímulo do militante comunista não depende do Outro para que regulamente ou ordene. Depende do dever de auto-mediação para com a sociedade que estamos construindo. Esse é um trabalho cotidiano “no sentido interno de aperfeiçoamento, de aumento de conhecimentos, do aumento da compreensão do mundo que nos rodeia. Inquirir, averiguar e conhecer bem o porquê das coisas, equacionar sempre os grandes problemas da humanidade como problemas próprios” (Che, 2009, p. 42). Assim, temos que ter a clareza que o Comunismo não depende de um sujeito particular. Na realidade, depende de uma explosiva combinação de diversos agentes sociais e suas mediações institucionais.
O Comunismo se apresenta como uma tarefa radical e imediata na escala que se pode: trabalho, município, bairro, centro de estudo, etc. Não podemos esperar por uma grande revolução para começar um processo de autoeducação sobre nossas capacidades de autogestão e organização coletivas. Como disse recentemente Alain Badiou, “no momento, o que interessa é a prática da organização política direta no seio das massas populares e de experimentar novas formas de organização” orientadas pela “idéia de uma sociedade cujo motor não seja a propriedade priva¬da, o egoísmo e a avidez”. Entretanto, como o capitalismo está fermentando uma luta planetária para enfrentar sua crise, qualquer força social e política progressista não pode ficar estagnada ao local e parcial sendo, assim, necessário se conectar concretamente com uma coordenação de todas as resistências em todos os continentes. Sem dúvida um grande desafio pela frente: unidade organizativa na diversidade heterogênea anticapitalista global.
Voltando a Marx, o Comunismo não é um Ideal que vamos todos chegar felizes ou sem rupturas drásticas e sim o “movimento Real” de superação dos antagonismos existentes no atual tempo histórico. Esse “movimento real” é essencialmente traumático já que quebra o ordenamento acelerado da vida no capitalismo atual que, paradoxalmente, reduz a história ao imediato. Em A Ideologia Alemã Marx julga que esse processo passa por uma consciência comunista numa escala de massas:
Tanto para a criação em massa dessa consciência comunista quanto para o êxito da própria causa faz-se necessária uma transformação massiva dos homens, o que só se pode realizar por um movimento prático, por uma revolução; que a revolução, portanto, é necessária não apenas porque a classe dominante não pode ser derrubada de nenhuma outra forma, mas também porque somente com uma revolução a classe que derruba detém o poder de desembaraçar-se de toda a antiga imundice e de se tornar capaz de uma nova fundação da sociedade (p. 42)
Por essa definição, os Comunistas se definem como todos aqueles que trabalham incessantemente para produzir um futuro positivamente diferente daquele que o capitalismo pode proporcionar ou prometer num revolucionamento constante causado por sua atividade de construção dos fundamentos da revolução.
Naturalmente, não existe Comunismo sem Comunistas. Quem é o Comunista? Ele está engajado nas “mediações” que ligam as tarefas presentes com o futuro. No sentido comunista, essas “mediações - instituições e organizações coletivas - demandam três características básicas: verificação constante da livre circulação de idéias e projetos (sempre no intento de expandir as práticas existentes), uma postura ofensiva socialista (diametralmente oposta da historicamente defensiva) que busca impor a construção de uma alternativa hegemônica diante da urgência histórica do aprofundamento dos antagonismos do sistema do capital e, não menos crucial, uma auto-crítica permanente que permeie pela aprendizagem todos os poros dessa instituição com o sentido de aperfeiçoar as relações entre consciência, organização e ação.
Numa recente carta endereçada por Alain Badiou a Slavoj Zizek encontramos uma bela definição não apenas do que é ser Comunista, como ainda do momento atual do Comunismo perante o seu próprio “fator” como invariante histórica de emancipação - sendo que outra invariante a humanidade não dispõe:
“Nós encontramo-nos no limiar de um ponto de método essencial e no qual, creio-o bem, não há entre nós nenhum desacordo de princípio. Tratando-se de figuras históricas como Robespierre, Saint-Just, Babeuf, Blanqui, Bakounine, Marx, Engels, Lenine, Trotski, Rosa Luxemburgo, Estaline, Mao Tse-Tung, Chou Enlai, Enver Hoxha, Guevara, Castro e alguns outros (e penso nomeadamente em Jean Bertrand Aristide [Haiti]), é ponto capital, sobre todos eles, nada ceder perante as tentativas de criminalização reacionárias ou perante as anedotas eriçadas com que o capital os pretende fechar e anular. Nós podemos e devemos discutir entre nós (um ‘nós’ que sinaliza aqueles para quem o capitalismo e as suas formas políticas são um horror, um ‘nós’ que nós somos para quem a emancipação igualitária é a única máxima de valor universal) o uso que fazemos, ou não fazemos, dessas figuras históricas. Essa discussão pode ser eventualmente viva e fortemente antagônica, mas ela dá-se ‘entre Nós’, e a nossa regra opõe-se absolutamente a toda a conspiração de latidos do adversário”.
Lembro com Che/Ueshiba que militante comunista procura se acostumar a “pensar como massa” – enxerga onde está à falta e a preenche com o vazio. Não existe militante ideal. Todo militante é não-Todo. Sempre ser-faltante que no movimento produz novos significantes para a rearticulação da luta emancipatória. Isso quer dizer que um princípio fundamental do Comunista é a não-resistência que necessita de verificação permanente no movimento de forma cada vez mais disciplinada e sincera no sentido de um aperfeiçoamento coletivo.
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A legitimidade histórica do Comunismo depende da instituição de uma ordem reprodutiva viável a longo prazo que seja baseada em seus próprios termos positivos. Como sintetiza Mészáros, “a tarefa radical por princípio buscada de modo consciente para superar os antagonismos da ordem existente é inseparavelmente negativa e positiva ao mesmo tempo. E esse é o único significado apropriado que podemos dar ao termo radical, que não se pode permitir continuar atado a uma – definitivamente insustentável – postura puramente negativa” (2009, p. 302). Nesse sentido, a única mediação historicamente sustentável e viável para o Comunismo é a mediação de si própria por parte de um sujeito social ativo que seja capaz de intervir autonomamente e conscientemente no processo de transformação exigida em nosso “destino histórico” sob uma tomada de decisão substantiva pelo corpo social em sua totalidade. Assim, ao sistema orgânico e abrangente do capital devem ser contrapostas, por parte dos indivíduos orientados para a elaboração estratégica das mediações não antagônicas exigidas pela nova forma histórica, um conjunto de princípios e determinações operativos conscientes, críticos e também autocríticos não menos substantivos e abrangentes. Em outras palavras, uma automediação. Segundo Mészáros,
Nas relações interpessoais dos indivíduos sociais, mediação não antagônica significa seu envolvimento cooperativo genuíno na atividade com o propósito conscientemente escolhido de resolver alguns problemas, ou de fato resolver algumas disputas que possam surgir de suas relações. O que torna o contraste desse tipo de intercâmbio conscientemente regulado muito claro, em comparação com a modalidade de mediações antagônicas agora dominantes, é que a solução projetada para os próprios problemas devem ser encarados no interior da estrutura de um sistema de mediações não antagônicas não pode se solidificar e perpetuar na forma de interesses parciais estruturalmente consolidados. No curso histórico em andamento, de constituição na nova modalidade de mediações não antagônicas, os interesses parciais herdados devem ser radicalmente suplantados por meio da ação cooperativa sustentada, assegurando ao mesmo tempo as condições objetivas e subjetivas para impedir sua reconstituição (idem, 302).
Continuando com o húngaro,
Somente a instituição e manutenção bem-sucedidas do sistema de mediações não antagônicas como a alternativa hegemônica da nova forma histórica à ordem do capital agora dominante pode mostrar uma saída desses perigosos antagonismos. Pois estes não podem ser superados sem a inter-relação plenamente eqüitativa de solidariedade substantiva entre os indivíduos sociais livremente associados, assim como de seus países, na forma de sua solidariedade internacional genuína capaz de confrontar positivamente as falhas do passado. Essa é a única perspectiva historicamente sustentável para o futuro (2009, p. 308, 309).
Outros dois axiomas universais do Comunista são a igualdade substantiva – sempre faltante – e a universalidade solidária. Sem o horizonte do comunismo, sem essa Idéia no sentido de Badiou, nada no devir político, histórico e social tem qualquer interesse ao militante. Sustentar-se nessa Idéia, a existência dessa hipótese, não significa que essa sua primeira forma de manifestação necessite ficar inalterada. Por isso a tarefa, e até mesmo obrigação, badiouiana de “ajudar no surgimento de uma nova modalidade de existência da hipótese comunista”. (Cabe aqui um parênteses: mas quem seria o tal proletariado agente de transformação? Hoje, em contraste com a imagem clássica dos proletários que não têm “nada a perder além dos seus grilhões”, o que nos une é, como diz Zizek, o perigo de perdermos tudo: nossa propriedade genética, nosso meio ambiente, etc, etc). Talvez estejamos realmente sob o paradigma beckttiano de Lênin: Tende de novo. Fracasso de novo. Fracasso melhor. Em síntese, em nosso tempo devemos descer todo o caminho de volta até o ponto de partido: devemos começar do começo e não de um ponto alcançado na tentativa anterior. Reinventar o Comunismo.
Concluindo, não basta permanecer fiel a hipótese comunista: é necessário localizar a realidade histórica as contradições que transformem o comunismo numa urgência prática. O papel dos comunistas continua o de ser o pedagogo das classes trabalhadoras livre aos ensinamentos de uma linha de massas onde os fracassos doem e que, ao mesmo tempo, lhe possa acrescentar um projeto de futura igualdade social.
quinta-feira, 9 de setembro de 2010
Nota sobre o Apocalipse Nuclear
Poucos acreditam hoje na possibilidade de uma catástrofe nuclear – só eu e Fidel.
Isso quer dizer que nós estaríamos presenciando no mundo contemporâneo o início de uma Guerra Nuclear sem precedentes em toda a história humana? Depois de 11 de setembro de 2001 e 15 de setembro de 2008, neste setembro de 2010, deveríamos estar mais atentos sobre a tragédia anunciada do holocausto nuclear. Não anuncio aqui as perspectivas estratégicas e militares em andamento para o desdobramento de um conflito nuclear, como fiz no texto chamado “Guerra do Irã: urgente!”, mas trago algumas notas mais amplas no sentido de criar referências sobre o sombrio horizonte da Catástrofe Nuclear. Estamos, portanto, numa situação inédita na história.
A Catástrofe é a auto-extinção da humanidade. A Catástrofe não é externa ao desenvolvimento do capital em toda sua destrutividade, mas é própria de sua lógica interna de desenvolvimento. Tal capacidade já foi alcançada e se desenvolve a pleno vapor. A forma sísmica da inevitável Catástrofe, entretanto, já é a Catástrofe, a emergência permanente. A gestação da Catástrofe já é a Catástrofe. Resta-nos perceber a Catástrofe que nos espera como inevitável. Apenas diante de sua inevitabilidade é possível evitá-la. Para evitar a Catástrofe é preciso acreditar na sua possibilidade. Só assim é possível com que não seja tarde demais para lidar com seus profundos impactos ou impedir sua chegada potencialmente terminal para a humanidade. A Catástrofe está na ordem do dia. A hora do destino chegou.
Isso quer dizer que nós estaríamos presenciando no mundo contemporâneo o início de uma Guerra Nuclear sem precedentes em toda a história humana? Depois de 11 de setembro de 2001 e 15 de setembro de 2008, neste setembro de 2010, deveríamos estar mais atentos sobre a tragédia anunciada do holocausto nuclear. Não anuncio aqui as perspectivas estratégicas e militares em andamento para o desdobramento de um conflito nuclear, como fiz no texto chamado “Guerra do Irã: urgente!”, mas trago algumas notas mais amplas no sentido de criar referências sobre o sombrio horizonte da Catástrofe Nuclear. Estamos, portanto, numa situação inédita na história.
A Catástrofe é a auto-extinção da humanidade. A Catástrofe não é externa ao desenvolvimento do capital em toda sua destrutividade, mas é própria de sua lógica interna de desenvolvimento. Tal capacidade já foi alcançada e se desenvolve a pleno vapor. A forma sísmica da inevitável Catástrofe, entretanto, já é a Catástrofe, a emergência permanente. A gestação da Catástrofe já é a Catástrofe. Resta-nos perceber a Catástrofe que nos espera como inevitável. Apenas diante de sua inevitabilidade é possível evitá-la. Para evitar a Catástrofe é preciso acreditar na sua possibilidade. Só assim é possível com que não seja tarde demais para lidar com seus profundos impactos ou impedir sua chegada potencialmente terminal para a humanidade. A Catástrofe está na ordem do dia. A hora do destino chegou.
Perguntas
Para todos aqueles que clamam praticar a militância política nós perguntamos: Qual é sua crítica do mundo existente? O que pode nos oferecer de novo? Do que você é o criador?
segunda-feira, 30 de agosto de 2010
A morte da narração ou a não-narração da morte? Reflexões benjaminianas sobre o declínio da experiência narrativa no capitalismo histórico.
A morte sem narração perde-se no tempo. Mas como narrar algo hoje quando a experiência narrativa vem perdendo espaço? Walter Benjamin já notou esse processo da seguinte forma:
“Torna-se cada vez mais raro o encontro com pessoas que sabem narrar alguma coisa direito. É cada vez mais freqüente espalhar-se em volta o embaraço quando se anuncia o desejo de ouvir uma história. É como se uma faculdade, que nos parecia inalienável, a mais garantida entre as coisas seguras, nos fosse retirada. Ou seja: a de trocar experiências. Uma causa deste fenômeno é evidente: a experiência caiu na cotação. E a impressão é a de que prosseguirá na queda interminável”.
A quem ouve o narrador mergulha no que escuta em sua própria experiência e, mais tarde, pode transmiti-la de bom grado. Benjamin nota que esta capacidade de audição também estaria sendo destruída, porque ela depende de um relaxamento psíquico propiciado por atividades naturais, como o fiar e o tecer, que estariam desaparecendo. Com a perda destas atividades, desaparece a “comunidade dos que escutam”, e a narrativa sofre golpe de morte. Segundo as palavras de Walter Benjamin,
“Narrar histórias é sempre a arte de as continuar contando e esta se perde quando as histórias já não são mais retidas. Perde-se porque já não se tece e fia enquanto elas são escutadas. Quanto mais esquecido de si mesmo está quem escuta, tanto mais fundo se grava nele a coisa escutada. No momento em que o ritmo do trabalho o capturou, ele escuta as histórias de tal maneira que o dom de narrar lhe advém espontaneamente. Assim, portanto, está constituída a rede em que se assenta o dom de narrar. Hoje em dia ela se desfaz em todas as extremidades, depois de ter sido atada há milênios no âmbito das mais antigas formas de trabalho artesanal”.
Ocorre segundo Benjamin, “uma espécie de concorrência histórica entre as várias formas de comunicação”. Nesta concorrência, a narrativa leva a pior, perdendo para o romance e a informação. E se a existência da narrativa está relacionada com o aconselhamento, dependendo de sua conservação na memória do ouvinte, sua substituição pelo romance e pela informação coincide com o desaparecimento dessas faculdades.
Por narração Benjamin entende uma arte e também uma faculdade, ambas em vias de desaparecimento. Isso quer dizer, em outras palavras, que desaparece no mundo atual a “faculdade de intercambiar experiências”. Tanto é que, na figura de Nicolai Leskov, Benjamin vê o último representante de uma arte em particular, a narração. Benjamin considera Leskov um extemporâneo, alguém que se encontra distante de seu tempo. Ao apresentá-lo como narrador, caracteriza-o como produto de um outro tempo que não o seu. Sua narração comporta elementos que não se apresentam ao seu cotidiano. A experiência que adensa a narração já não se encontra por isso mesmo disponível na época moderna. Isso explica porque o filósofo afirma que o narrador “não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva”.
A matéria prima da narração é a própria vida humana, a experiência (Erfahrung), aquela que anteriormente foi associada à sabedoria, como sendo “inimiga da pressa e do imediatismo” próprios de uma vivência. A lentidão é, naturalmente, matéria da experiência, cujo ritmo apressado da modernidade subtraiu o indivíduo do universo da tradição. Se narrar é a faculdade de intercambiar experiências, é também a faculdade de que dispõem aqueles que sabem trabalhar com o tempo; aqui, uma outra faceta da narração, que obedece, por sua vez, ao modo de produção artesanal, qualitativamente distinto do modo de produção capitalista, ou seja, industrial. Na prática narrativa interagem, segundo Benjamin, a voz, a mão e a alma. É a partir da convergência destes termos que a narrativa acabou se desenvolvendo em torno das mais “antigas formas de trabalho manual”.
“A narrativa floresceu num meio de artesão, (...) é ela própria uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso”.
Para Benjamin, “na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito”. O saber de que dispõe o narrador não é meramente técnico e nem tampouco um saber de si auto-referencial. Sua sabedoria implica no conhecimento histórico de formação de si em meio a um coletivo, do conhecimento das práticas, dos ritos e valores compartilhados e transmitidos pela tradição aos indivíduos. Para Jeanne Marie Gagnebin, é justamente nesse contexto que a experiência, a Erfahrung, pode surgir, pois essa é a experiência que não reenvia o indivíduo à sua vida como um só, singular, solitário, mas como ser em meio a outros. “A história do si vai, [assim], pouco a pouco, preencher o papel deixado vago pela história comum...”. É exatamente sobre este sentido de comunitário que se sustentam, inclusive, a noção de trabalho, entre outras práticas sociais.
Outro ponto crucial é a capacidade do narrador de dar conselhos. “o narrador é [sempre] um homem que sabe dar conselhos” escreve Benjamin. Em termos quase lacanianos, “aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada”. Ao narrador cabe deixar a história em aberto, intentando com isso de multiplicar as possibilidades de reconstrução do que se encontra perdido, esquecido ou destruído. Nesta perspectiva, o desejo comum projeta o futuro no presente obrigando a remontar o passado:
“Na vida, quanto mais cedo se formula um desejo, tanto maiores são as suas perspectivas de realização. Quanto mais um desejo remonta no tempo, tanto mais se pode esperar a sua concretização. Mas aquilo que reporta ao tempo passado é a experiência, é o que o preenche e articula. Por isso, o desejo realizado é a coroa destinada à experiência”
Quem formula e concretiza um desejo vive um “tempo que realiza”, antítese do “tempo infernal” experimentado por aqueles que, como o jogador e o trabalhador assalariado, se dobram sob um eterno presente, pois têm que “recomeçar sempre de novo”, não lhes sendo dado “realizar nada daquilo que começaram”. A marca do narrador firma-se no modo como este traduz a sua experiência, a tradição e os seus conselhos em sua narrativa, de forma única e peculiar.
“O narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poder deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida”.
Em Benjamin, tempo e linguagem se co-pertencem. A narração, ao restaurar o passado, atualiza o presente, presentifica a ausência do tempo. Sem narração a morte perde-se no tempo. Quando a linguagem sobre a morte também morre, a própria “condição de possibilidade” da experiência se mortifica. A experiência da morte se iguala assim a “vivência” da vida no capitalismo contemporâneo, sem paixão a uma causa que a cada morte ressuscita para dar sentido à vida comum que pode ser narrada. Nesta era de “banalidade da morte” a própria vida encontra um caminho limite de ruptura no campo do Ser. O encontro com esse limite ainda é um tema a desdobrar em outro texto cotidiano.
“Torna-se cada vez mais raro o encontro com pessoas que sabem narrar alguma coisa direito. É cada vez mais freqüente espalhar-se em volta o embaraço quando se anuncia o desejo de ouvir uma história. É como se uma faculdade, que nos parecia inalienável, a mais garantida entre as coisas seguras, nos fosse retirada. Ou seja: a de trocar experiências. Uma causa deste fenômeno é evidente: a experiência caiu na cotação. E a impressão é a de que prosseguirá na queda interminável”.
A quem ouve o narrador mergulha no que escuta em sua própria experiência e, mais tarde, pode transmiti-la de bom grado. Benjamin nota que esta capacidade de audição também estaria sendo destruída, porque ela depende de um relaxamento psíquico propiciado por atividades naturais, como o fiar e o tecer, que estariam desaparecendo. Com a perda destas atividades, desaparece a “comunidade dos que escutam”, e a narrativa sofre golpe de morte. Segundo as palavras de Walter Benjamin,
“Narrar histórias é sempre a arte de as continuar contando e esta se perde quando as histórias já não são mais retidas. Perde-se porque já não se tece e fia enquanto elas são escutadas. Quanto mais esquecido de si mesmo está quem escuta, tanto mais fundo se grava nele a coisa escutada. No momento em que o ritmo do trabalho o capturou, ele escuta as histórias de tal maneira que o dom de narrar lhe advém espontaneamente. Assim, portanto, está constituída a rede em que se assenta o dom de narrar. Hoje em dia ela se desfaz em todas as extremidades, depois de ter sido atada há milênios no âmbito das mais antigas formas de trabalho artesanal”.
Ocorre segundo Benjamin, “uma espécie de concorrência histórica entre as várias formas de comunicação”. Nesta concorrência, a narrativa leva a pior, perdendo para o romance e a informação. E se a existência da narrativa está relacionada com o aconselhamento, dependendo de sua conservação na memória do ouvinte, sua substituição pelo romance e pela informação coincide com o desaparecimento dessas faculdades.
Por narração Benjamin entende uma arte e também uma faculdade, ambas em vias de desaparecimento. Isso quer dizer, em outras palavras, que desaparece no mundo atual a “faculdade de intercambiar experiências”. Tanto é que, na figura de Nicolai Leskov, Benjamin vê o último representante de uma arte em particular, a narração. Benjamin considera Leskov um extemporâneo, alguém que se encontra distante de seu tempo. Ao apresentá-lo como narrador, caracteriza-o como produto de um outro tempo que não o seu. Sua narração comporta elementos que não se apresentam ao seu cotidiano. A experiência que adensa a narração já não se encontra por isso mesmo disponível na época moderna. Isso explica porque o filósofo afirma que o narrador “não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva”.
A matéria prima da narração é a própria vida humana, a experiência (Erfahrung), aquela que anteriormente foi associada à sabedoria, como sendo “inimiga da pressa e do imediatismo” próprios de uma vivência. A lentidão é, naturalmente, matéria da experiência, cujo ritmo apressado da modernidade subtraiu o indivíduo do universo da tradição. Se narrar é a faculdade de intercambiar experiências, é também a faculdade de que dispõem aqueles que sabem trabalhar com o tempo; aqui, uma outra faceta da narração, que obedece, por sua vez, ao modo de produção artesanal, qualitativamente distinto do modo de produção capitalista, ou seja, industrial. Na prática narrativa interagem, segundo Benjamin, a voz, a mão e a alma. É a partir da convergência destes termos que a narrativa acabou se desenvolvendo em torno das mais “antigas formas de trabalho manual”.
“A narrativa floresceu num meio de artesão, (...) é ela própria uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso”.
Para Benjamin, “na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito”. O saber de que dispõe o narrador não é meramente técnico e nem tampouco um saber de si auto-referencial. Sua sabedoria implica no conhecimento histórico de formação de si em meio a um coletivo, do conhecimento das práticas, dos ritos e valores compartilhados e transmitidos pela tradição aos indivíduos. Para Jeanne Marie Gagnebin, é justamente nesse contexto que a experiência, a Erfahrung, pode surgir, pois essa é a experiência que não reenvia o indivíduo à sua vida como um só, singular, solitário, mas como ser em meio a outros. “A história do si vai, [assim], pouco a pouco, preencher o papel deixado vago pela história comum...”. É exatamente sobre este sentido de comunitário que se sustentam, inclusive, a noção de trabalho, entre outras práticas sociais.
Outro ponto crucial é a capacidade do narrador de dar conselhos. “o narrador é [sempre] um homem que sabe dar conselhos” escreve Benjamin. Em termos quase lacanianos, “aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada”. Ao narrador cabe deixar a história em aberto, intentando com isso de multiplicar as possibilidades de reconstrução do que se encontra perdido, esquecido ou destruído. Nesta perspectiva, o desejo comum projeta o futuro no presente obrigando a remontar o passado:
“Na vida, quanto mais cedo se formula um desejo, tanto maiores são as suas perspectivas de realização. Quanto mais um desejo remonta no tempo, tanto mais se pode esperar a sua concretização. Mas aquilo que reporta ao tempo passado é a experiência, é o que o preenche e articula. Por isso, o desejo realizado é a coroa destinada à experiência”
Quem formula e concretiza um desejo vive um “tempo que realiza”, antítese do “tempo infernal” experimentado por aqueles que, como o jogador e o trabalhador assalariado, se dobram sob um eterno presente, pois têm que “recomeçar sempre de novo”, não lhes sendo dado “realizar nada daquilo que começaram”. A marca do narrador firma-se no modo como este traduz a sua experiência, a tradição e os seus conselhos em sua narrativa, de forma única e peculiar.
“O narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poder deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida”.
Em Benjamin, tempo e linguagem se co-pertencem. A narração, ao restaurar o passado, atualiza o presente, presentifica a ausência do tempo. Sem narração a morte perde-se no tempo. Quando a linguagem sobre a morte também morre, a própria “condição de possibilidade” da experiência se mortifica. A experiência da morte se iguala assim a “vivência” da vida no capitalismo contemporâneo, sem paixão a uma causa que a cada morte ressuscita para dar sentido à vida comum que pode ser narrada. Nesta era de “banalidade da morte” a própria vida encontra um caminho limite de ruptura no campo do Ser. O encontro com esse limite ainda é um tema a desdobrar em outro texto cotidiano.
domingo, 29 de agosto de 2010
Fracasso: a chave do amor
Continuemos nossa recuperação filosófica do amor. Numa era marcada pelo medo como afeto central de nossas sociedades contemporâneas em conjunto com as demandas por segurança como motor da ação política, em que pé estão as relações intersubjetivas amorosas? O que será do amor nesta época de transformação da relação entre sexos?
Para Alain Badiou o amor é a invenção da verdade acerca da diferença, da diferença absoluta entre a posição masculina e feminina. Como disse certas vezes Lacan, a relação sexual não existe. Existe uma ilusão acerca da pura liberdade sexual: a ilusão de que podemos encontrar por ali uma experiência de conexão com o outro. Aí se compromete com a repetição e não com a criação. Entretanto, o que é verdade acerca da diferença? É a experiência da diferença mediante a construção de um novo ponto de vista sobre o mundo. É uma nova experiência do mundo do ponto de vista do Dois. O começo de qualquer experiência coletiva é a experiência do Dois. A amizade também detém a experiência do Dois, mas é uma experiência muito mais débil que o amor. Na bela síntese de Badiou, “a amizade é um amor calmo; o amor uma amizade excessiva”. Entrementes a amizade também é uma dimensão do amor. Sua distinção encontra-se não na intensidade ou nos afetos e sim no projeto. De qualquer forma são mais tensões que diferenças qualitativas que se encontram entre amor e amizade.
Em suma o amor é corajosa aventura, mas que precisa ser obstinada. Como escreve Badiou “abandonar a empreitada ao primeiro obstáculo, à primeira divergência séria ou aos primeiros problemas é desfiguração do amor. Amor verdadeiro é o que triunfa duravelmente, às vezes duramente, dos obstáculos que o espaço, o mundo e o tempo lhe propõem”. Badiou lembra como a sociabilidade contemporânea parece fascinada pelo "amor seguro contra todos os riscos". Busca se medir a relação a partir de custos e benefícios, algo como "um arranjo prévio que evita todo acaso, todo encontro e finalmente toda poesia existencial, isto em nome da ausência de risco". É o amor descafeínado típico de nossa era pós-política.
O amor é uma construção de verdade. O sentido do amor é uma experimentação radical da diferença e sua construção singular. No amor se trata de saber “o que é ser dois?”, enfrentar a questão sobre como se vê o mundo sendo dois. Tudo começa com um encontro. Depois vem o compromisso, a construção de algo novo que se poderá descobrir algo de verdade, algo sobre a própria construção. Para isso é necessário tempo. Diante dessa empreitada, renunciar é mais fácil. O imperativo é continuar sem renunciar, manter a confiança diante dos obstáculos, fracassos e impossibilidades. A fidelidade vem depois da confiança.
Para Alain Badiou o amor é a invenção da verdade acerca da diferença, da diferença absoluta entre a posição masculina e feminina. Como disse certas vezes Lacan, a relação sexual não existe. Existe uma ilusão acerca da pura liberdade sexual: a ilusão de que podemos encontrar por ali uma experiência de conexão com o outro. Aí se compromete com a repetição e não com a criação. Entretanto, o que é verdade acerca da diferença? É a experiência da diferença mediante a construção de um novo ponto de vista sobre o mundo. É uma nova experiência do mundo do ponto de vista do Dois. O começo de qualquer experiência coletiva é a experiência do Dois. A amizade também detém a experiência do Dois, mas é uma experiência muito mais débil que o amor. Na bela síntese de Badiou, “a amizade é um amor calmo; o amor uma amizade excessiva”. Entrementes a amizade também é uma dimensão do amor. Sua distinção encontra-se não na intensidade ou nos afetos e sim no projeto. De qualquer forma são mais tensões que diferenças qualitativas que se encontram entre amor e amizade.
Em suma o amor é corajosa aventura, mas que precisa ser obstinada. Como escreve Badiou “abandonar a empreitada ao primeiro obstáculo, à primeira divergência séria ou aos primeiros problemas é desfiguração do amor. Amor verdadeiro é o que triunfa duravelmente, às vezes duramente, dos obstáculos que o espaço, o mundo e o tempo lhe propõem”. Badiou lembra como a sociabilidade contemporânea parece fascinada pelo "amor seguro contra todos os riscos". Busca se medir a relação a partir de custos e benefícios, algo como "um arranjo prévio que evita todo acaso, todo encontro e finalmente toda poesia existencial, isto em nome da ausência de risco". É o amor descafeínado típico de nossa era pós-política.
O amor é uma construção de verdade. O sentido do amor é uma experimentação radical da diferença e sua construção singular. No amor se trata de saber “o que é ser dois?”, enfrentar a questão sobre como se vê o mundo sendo dois. Tudo começa com um encontro. Depois vem o compromisso, a construção de algo novo que se poderá descobrir algo de verdade, algo sobre a própria construção. Para isso é necessário tempo. Diante dessa empreitada, renunciar é mais fácil. O imperativo é continuar sem renunciar, manter a confiança diante dos obstáculos, fracassos e impossibilidades. A fidelidade vem depois da confiança.
quinta-feira, 19 de agosto de 2010
Ideologia e comida verde
Ideologia é certa experiência única do universo e o lugar que cada sujeito se encontra nele, servindo como produção das relações de poder existentes e tudo mais... O mínimo necessário para se estruturar a ideologia é a distancia de si mesmo perante outra ideologia, de denunciá-la como ideologia. Toda ideologia faz isso. Por isso que, em nossa era “pós-ideológica”, se clama que não existem mais projetos ideológicos e sim apenas pragmatismo, negociações, interesses plurais e por aí vai. É a ideologia que nega a si mesma como se houvesse algo mais ideológico do que postula vivermos numa era "pós-ideológica". Assim ideologia pode ser definida por como as coordenadas do sentido da experiência do mundo, como seu lugar na sociedade, estão relacionado com as tensões e antagonismos básicos da ordem social.
Como ideologia não é apenas um campo de idéias, mas regula também a prática social material numa espécie de suplemento necessário a própria realidade, vemos no capitalismo uma capacidade plástica infinita historicamente única de apropriação ideológica da ideologia. O capitalismo tem uma marca inigualável: consegue transformar o que era originalmente subversivo ou crítico em itens apropriados pelo mercado e vende-los para consumo. Comida ecológica, orgânica, produtos verdes e tudo mais – esse é um dos nichos de mercado centrais hoje. A capacidade do capitalismo de se apropriar de forma totalizante em torno das pessoas e das coisas envolve o esvaziamento do que poderia colocar em jogo algum eixo fundamental do sistema. Vamos pegar uma típica pessoa que come comida orgânica: ele não a compra porque quer realmente ser saudável. Ele a compra por algum tipo de solidariedade em relação a natureza. Ele compra certa instância ideológica, certa imagem de identificação social. Então não se está comprando um produto, mas certo status social, ideologia e por ai vai. O mesmo acontece com o budismo no ocidente... que escreverei num eventual próximo post.
Como ideologia não é apenas um campo de idéias, mas regula também a prática social material numa espécie de suplemento necessário a própria realidade, vemos no capitalismo uma capacidade plástica infinita historicamente única de apropriação ideológica da ideologia. O capitalismo tem uma marca inigualável: consegue transformar o que era originalmente subversivo ou crítico em itens apropriados pelo mercado e vende-los para consumo. Comida ecológica, orgânica, produtos verdes e tudo mais – esse é um dos nichos de mercado centrais hoje. A capacidade do capitalismo de se apropriar de forma totalizante em torno das pessoas e das coisas envolve o esvaziamento do que poderia colocar em jogo algum eixo fundamental do sistema. Vamos pegar uma típica pessoa que come comida orgânica: ele não a compra porque quer realmente ser saudável. Ele a compra por algum tipo de solidariedade em relação a natureza. Ele compra certa instância ideológica, certa imagem de identificação social. Então não se está comprando um produto, mas certo status social, ideologia e por ai vai. O mesmo acontece com o budismo no ocidente... que escreverei num eventual próximo post.
sexta-feira, 13 de agosto de 2010
A paixão da voz (como um objeto que é motor do pensamento)
Ao escutar uma bela voz na tarde desta sexta-feira sentei rapidamente e resolvi escrever sobre a voz em geral. São sínteses. Melhor, é um mini-texto-carta lacaniano resultado da famosa mutilação operada pelo "objeto a voz".
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Lacan escolhe o nó borrromeano como a configuração que articula os três registros da experiência humana no psiquismo: o real, o simbólico e o imaginário. Desse modo, na superposição da junção borromeana, o real fica sobre o simbólico, que fica sobre o imaginário, que tem, ele próprio, ascendência sobre o real. Os três registros se articulam de forma que há um espaço, um vazio no centro, um lugar de interseção, onde Lacan coloca o objeto a. Logo, como objeto a, a voz está entre as três dimensões do nó que surgem entrelaçadas, mas que podem ser pensadas, teoricamente, em separado.
A voz que chega aos ouvidos, fundida ao enunciado vocal sonoro, é apenas uma dimensão resultante de toda uma complexa trama imaginária (submetida ao simbólico) na qual o som veste a voz como objeto a, dando-lhe alguma consistência. Embora o real escape ao simbólico, o imaginário tem ascendência sobre ele, por isso, jamais o real se apresenta ao sujeito despido de alguma figuração. Como todo objeto a, a voz porta um excedente humano de força, de vigor, a rebeldia da energia vital: a libido, por onde se expressa essa exigência de um a “mais de gozar”. A voz é um sopro de vida que impulsiona, puxa as nossas enunciações, pois, como objeto a, nos provoca pela libido a tecer vigorosamente sobre o furo do real. Por isso, no seu cunho de objeto a, a voz está para além do tempo, onde habita um não simbolizável e um não imaginável e tende a mostrar-se como objeto ambíguo, fonte da angústia e causa do desejo. Tanto a voz como o olhar, ambos, não são visíveis ao sujeito em seu campo perceptivo.
Jacques-Alain Miller comenta, em seu ensaio intitulado “Jacques Lacan e a voz”, que o ato de cantar é uma forma de fazer calar o que tem o valor de voz enquanto objeto pequeno a. A tese de Lacan é de que a voz não pertence ao registro sonoro, nesse sentido, ela é afônica, por isso, ela poderá encarnar o furo, ela então, ordenar-se-á ao sujeito do significante, ou melhor, ao sujeito do inconsciente a partir do lugar vazio da castração da qual a voz exercerá sua função de objeto não-substancial.
Não é a toa que o grito, para Lacan, é a ponte para entender o universal de toda linguagem. É o que, do discurso, desemboca no ponto para além da significação.
Mas a voz também tem uma implicação no nível do desejo. Lacan, em seu seminário 13, O objeto da psicanálise nos diz que “Se o desejo do sujeito se funda no desejo do Outro, este desejo como tal se manifesta a nível da voz. A voz não é somente o objeto causal, mas o instrumento de onde se manifesta o desejo do Outro”. A voz é a borda entre a angústia e o desejo. Não é fácil lidar com a voz. A voz se revela não apenas pelo fato de desaparecer no ar, sem deixar pistas. Como escreve o esloveno Mladen Dolar, é precisamente a voz que mantém corpos e línguas unidos. Entretanto, a voz não pertence a nenhum dos dois. Essa é a propriedade que divide com todos os objetos de pulsão: encontra-se situados num âmbito que excede o corpo, prolongam o corpo como uma excrescência. A voz é localizada como intervalo entre corpo e linguagem, entre sujeito e Outro, entre som e palavra, escapando a qualquer atribuição de papel unívoca. A risada é diferente de outros fenômenos porque parece exceder a linguagem tanto na direção pré-simbólica quanto mais além do simbólico. Já a música é uma tentativa de domesticar este objeto, transformá-lo em prazer estético, de erguer uma barreira contra o que dele é insuportável.
Assim a voz é um instrumento vivo capaz de mobilizar os sorrisos da escuta. A dificuldade continua a mesma: ouvir outra coisa além do simples significado das palavras que estão sendo pronunciadas.
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Lacan escolhe o nó borrromeano como a configuração que articula os três registros da experiência humana no psiquismo: o real, o simbólico e o imaginário. Desse modo, na superposição da junção borromeana, o real fica sobre o simbólico, que fica sobre o imaginário, que tem, ele próprio, ascendência sobre o real. Os três registros se articulam de forma que há um espaço, um vazio no centro, um lugar de interseção, onde Lacan coloca o objeto a. Logo, como objeto a, a voz está entre as três dimensões do nó que surgem entrelaçadas, mas que podem ser pensadas, teoricamente, em separado.
A voz que chega aos ouvidos, fundida ao enunciado vocal sonoro, é apenas uma dimensão resultante de toda uma complexa trama imaginária (submetida ao simbólico) na qual o som veste a voz como objeto a, dando-lhe alguma consistência. Embora o real escape ao simbólico, o imaginário tem ascendência sobre ele, por isso, jamais o real se apresenta ao sujeito despido de alguma figuração. Como todo objeto a, a voz porta um excedente humano de força, de vigor, a rebeldia da energia vital: a libido, por onde se expressa essa exigência de um a “mais de gozar”. A voz é um sopro de vida que impulsiona, puxa as nossas enunciações, pois, como objeto a, nos provoca pela libido a tecer vigorosamente sobre o furo do real. Por isso, no seu cunho de objeto a, a voz está para além do tempo, onde habita um não simbolizável e um não imaginável e tende a mostrar-se como objeto ambíguo, fonte da angústia e causa do desejo. Tanto a voz como o olhar, ambos, não são visíveis ao sujeito em seu campo perceptivo.
Jacques-Alain Miller comenta, em seu ensaio intitulado “Jacques Lacan e a voz”, que o ato de cantar é uma forma de fazer calar o que tem o valor de voz enquanto objeto pequeno a. A tese de Lacan é de que a voz não pertence ao registro sonoro, nesse sentido, ela é afônica, por isso, ela poderá encarnar o furo, ela então, ordenar-se-á ao sujeito do significante, ou melhor, ao sujeito do inconsciente a partir do lugar vazio da castração da qual a voz exercerá sua função de objeto não-substancial.
Não é a toa que o grito, para Lacan, é a ponte para entender o universal de toda linguagem. É o que, do discurso, desemboca no ponto para além da significação.
Mas a voz também tem uma implicação no nível do desejo. Lacan, em seu seminário 13, O objeto da psicanálise nos diz que “Se o desejo do sujeito se funda no desejo do Outro, este desejo como tal se manifesta a nível da voz. A voz não é somente o objeto causal, mas o instrumento de onde se manifesta o desejo do Outro”. A voz é a borda entre a angústia e o desejo. Não é fácil lidar com a voz. A voz se revela não apenas pelo fato de desaparecer no ar, sem deixar pistas. Como escreve o esloveno Mladen Dolar, é precisamente a voz que mantém corpos e línguas unidos. Entretanto, a voz não pertence a nenhum dos dois. Essa é a propriedade que divide com todos os objetos de pulsão: encontra-se situados num âmbito que excede o corpo, prolongam o corpo como uma excrescência. A voz é localizada como intervalo entre corpo e linguagem, entre sujeito e Outro, entre som e palavra, escapando a qualquer atribuição de papel unívoca. A risada é diferente de outros fenômenos porque parece exceder a linguagem tanto na direção pré-simbólica quanto mais além do simbólico. Já a música é uma tentativa de domesticar este objeto, transformá-lo em prazer estético, de erguer uma barreira contra o que dele é insuportável.
Assim a voz é um instrumento vivo capaz de mobilizar os sorrisos da escuta. A dificuldade continua a mesma: ouvir outra coisa além do simples significado das palavras que estão sendo pronunciadas.
História, revolução e amor
Essas notas fazem parte de devaneios que estão saltitando mas também complementam algumas reflexões anteriores, principalmente sobre história, revolução e amor.
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A cerca de duas décadas atrás Francis Fukuyama lançou a tese do “fim da história”. De certo modo ele está correto: o capitalismo global é o fim da história. Na medida em que o oposto da história é a natureza, o “fim da história” significa que o próprio processo social é cada vez mais “naturalizado”, vivenciado como uma forma de destino, uma força cega e sem controle. O capitalismo vem se universalizando de tal forma que sua aceitação está o tornando invencível e indestrutível, Sem dúvida o que está em jogo aqui é o fim da uma concepção de história, agora baseada num tempo desorientado.
Zizek está certo com a pergunta: não estamos hoje todos divididos entre a lembrança do passado histórico e o presente pós-histórico que não somos capazes de inserir na mesma narrativa com o passado, de modo que o presente é vivenciando como uma confusa sucessão de fragmentos que se evaporam rapidamente em nossa memória? Em suma, o problema de nossa era não é que não conseguimos nos lembrar do passado, de nossa própria história, mas sim que não conseguimos nos recordar do próprio presente – não conseguimos historitizá-lo – narrá-lo apropriadamente, ou seja, adquirir um mapeamento cognitivo adequado com relação a ele. Não é a toda que, do ponto de vista da esquerda, estamos experimentando não é apenas um déficit de ação ou a ausência de meios e da organização necessário à luta. Não sabemos como agir contra o capitalismo e estamos penando para redescobrir como pensar contra ele.
Em parte isso se dá porque nossa vida cotidiana no capitalismo tardio envolve uma rejeição sem precedentes da experiência do outro com o qual se aprende sobre os sintomas da história. Numa memorável interpretação das teses “Sobre o conceito de história” de Walter Benjamin, Eric Santner desenvolve a noção benjaminiana de que uma intervenção revolucionária presente repete/redime as tentativas fracassadas no passado. Os “sintomas” – traços do passado que são “redimidos” pela intervenção revolucionária – “não são exatamente feitos esquecidos, mas inações, tentativas fracassadas de suspender a força do tecido social que inibe gestos de solidariedade em relações aos ‘outros’ de uma dada sociedade”.
“Sintomas marcam não só tentativas revolucionárias fracassadas, mas, mais modestamente, respostas não-dadas a chamados para a acao ou mesmo por empatia em relacao àqueles cujo sofrimento de certo modo faz parte de nossa forma de vida. Eles guardam o lugar de algo que está lá, que insiste em nossa vida, mesmo que não tenha atingido consistência ontológica completa. Sintomas são, portanto, em certo sentido, os arquivos virtuais de vazios – ou, melhor dizendo, defesas contra vazis – que persistem na experiência histórica”.
É nesta “defesa contra vazis” que encontramos a singularidade universal do sujeito. A universalidade emerge onde a ordem “normal” que liga a cadeia de particulares é rompida. Por isso que não há, por exemplo, revolução “normal”. Toda explosão revolucionária é fundada numa exceção, num curto-circuito de “tarde demais” e “cedo demais”. Existe, simultaneamente, falta e excesso. A revolução, assim como o amor, nunca tem condições objetivas perfeitas para acontecer.
Aqui devemos entender as ligações entre o capitalismo contemporâneo e as possibilidades de amar. Hoje a busca patológica pela normalidade não é contrária ao culto pela diferença colorida da tolerância multicultural pós-moderna. Ambas recusam a possibilidade do Ato amoroso que reconfigura as coordenadas simbólicas. É uma postura que busca amor e segurança ao mesmo tempo ou, nos termos de Badiou, um “amor securitário”. Ambas são as posições ideológicas par excellence da pós-modernidade ideologicamente “pós-ideológica”. Ambas têm medo de serem pegas sob uma identificação com o Outro.
O desejo de amar não é sustentado por pressões superegóicas. Por isso que entre sexo e amor não existe metalinguagem (enquanto o sexo é baseado em pressões do supereu obviamente não existe amor!). O amor é o desejo de ser Um – e claro que o amor ignora a impossibilidade dessa empreitada.
Fico me perguntando: não é evidente que há alvo horrivelmente violento ao mostrarmos nossa paixão por outro ser humano – seja ele homem ou mulher? A paixão fere seu objeto, mutila-o. Até mesmo se seu objeto alegremente concorda em ocupar esse lugar, ele ou ela nunca podem fazê-lo sem um momento de espanto ou surpresa. A essa “imperfeição” constitutiva da paixão Lacan deu o nome de objet petit a: o tique “patológico” que torna alguém singular - o "objeto perdido da história de cada sujeito". No amor autêntico, eu amo o outro não apenas por estar vivo, mas por causa do excesso perturbador de vida nele ou nela.
Comumente existem algumas opções diante de um convite amoroso: 1) há os que recusam convites porque, “de qualquer forma”, já sabem que não vai ser o grande amor; 2) Há os que não querem perder tempo com conhecidos, só “com grandes amigos mesmo”; 3) Há os que recusam convites porque, se for o grande amor, vai ser o fim de seus hábitos solitários consolidados (não está disposto a aprender a amar); 4) há os que recusam convites porque, se o grande amor acontecer, vão ter que parar de se preparar para o grande amor futuro. Essas quatro posturas têm algo em comum: excluem a materialização de um amor impossível. Esse Ato Impossível não é irracional. Longe disso, ele cria sua própria (e nova) racionalidade. Temos que correr o risco, um passo no vazio, sem um grande Outro para aprovar. Esse Ato impossível é o que acontece em qualquer processo revolucionário e amoroso autêntico.
Há uma vergonha em todo amor, uma "desadaptação", uma quebra na harmonia do conjunto. As relações entre os que se amam seguem regras próprias que atemorizam os que estão à volta. Não é a toa que o medo de amar é o medo de construir uma história conjunta no que se há de traumático (e não harmonioso a priori) entre os amantes. O amor, tanto quanto o desejo, começa da falta. Mas como sentir amor hoje quando nos manifestamos como pessoas sem faltas?
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A cerca de duas décadas atrás Francis Fukuyama lançou a tese do “fim da história”. De certo modo ele está correto: o capitalismo global é o fim da história. Na medida em que o oposto da história é a natureza, o “fim da história” significa que o próprio processo social é cada vez mais “naturalizado”, vivenciado como uma forma de destino, uma força cega e sem controle. O capitalismo vem se universalizando de tal forma que sua aceitação está o tornando invencível e indestrutível, Sem dúvida o que está em jogo aqui é o fim da uma concepção de história, agora baseada num tempo desorientado.
Zizek está certo com a pergunta: não estamos hoje todos divididos entre a lembrança do passado histórico e o presente pós-histórico que não somos capazes de inserir na mesma narrativa com o passado, de modo que o presente é vivenciando como uma confusa sucessão de fragmentos que se evaporam rapidamente em nossa memória? Em suma, o problema de nossa era não é que não conseguimos nos lembrar do passado, de nossa própria história, mas sim que não conseguimos nos recordar do próprio presente – não conseguimos historitizá-lo – narrá-lo apropriadamente, ou seja, adquirir um mapeamento cognitivo adequado com relação a ele. Não é a toda que, do ponto de vista da esquerda, estamos experimentando não é apenas um déficit de ação ou a ausência de meios e da organização necessário à luta. Não sabemos como agir contra o capitalismo e estamos penando para redescobrir como pensar contra ele.
Em parte isso se dá porque nossa vida cotidiana no capitalismo tardio envolve uma rejeição sem precedentes da experiência do outro com o qual se aprende sobre os sintomas da história. Numa memorável interpretação das teses “Sobre o conceito de história” de Walter Benjamin, Eric Santner desenvolve a noção benjaminiana de que uma intervenção revolucionária presente repete/redime as tentativas fracassadas no passado. Os “sintomas” – traços do passado que são “redimidos” pela intervenção revolucionária – “não são exatamente feitos esquecidos, mas inações, tentativas fracassadas de suspender a força do tecido social que inibe gestos de solidariedade em relações aos ‘outros’ de uma dada sociedade”.
“Sintomas marcam não só tentativas revolucionárias fracassadas, mas, mais modestamente, respostas não-dadas a chamados para a acao ou mesmo por empatia em relacao àqueles cujo sofrimento de certo modo faz parte de nossa forma de vida. Eles guardam o lugar de algo que está lá, que insiste em nossa vida, mesmo que não tenha atingido consistência ontológica completa. Sintomas são, portanto, em certo sentido, os arquivos virtuais de vazios – ou, melhor dizendo, defesas contra vazis – que persistem na experiência histórica”.
É nesta “defesa contra vazis” que encontramos a singularidade universal do sujeito. A universalidade emerge onde a ordem “normal” que liga a cadeia de particulares é rompida. Por isso que não há, por exemplo, revolução “normal”. Toda explosão revolucionária é fundada numa exceção, num curto-circuito de “tarde demais” e “cedo demais”. Existe, simultaneamente, falta e excesso. A revolução, assim como o amor, nunca tem condições objetivas perfeitas para acontecer.
Aqui devemos entender as ligações entre o capitalismo contemporâneo e as possibilidades de amar. Hoje a busca patológica pela normalidade não é contrária ao culto pela diferença colorida da tolerância multicultural pós-moderna. Ambas recusam a possibilidade do Ato amoroso que reconfigura as coordenadas simbólicas. É uma postura que busca amor e segurança ao mesmo tempo ou, nos termos de Badiou, um “amor securitário”. Ambas são as posições ideológicas par excellence da pós-modernidade ideologicamente “pós-ideológica”. Ambas têm medo de serem pegas sob uma identificação com o Outro.
O desejo de amar não é sustentado por pressões superegóicas. Por isso que entre sexo e amor não existe metalinguagem (enquanto o sexo é baseado em pressões do supereu obviamente não existe amor!). O amor é o desejo de ser Um – e claro que o amor ignora a impossibilidade dessa empreitada.
Fico me perguntando: não é evidente que há alvo horrivelmente violento ao mostrarmos nossa paixão por outro ser humano – seja ele homem ou mulher? A paixão fere seu objeto, mutila-o. Até mesmo se seu objeto alegremente concorda em ocupar esse lugar, ele ou ela nunca podem fazê-lo sem um momento de espanto ou surpresa. A essa “imperfeição” constitutiva da paixão Lacan deu o nome de objet petit a: o tique “patológico” que torna alguém singular - o "objeto perdido da história de cada sujeito". No amor autêntico, eu amo o outro não apenas por estar vivo, mas por causa do excesso perturbador de vida nele ou nela.
Comumente existem algumas opções diante de um convite amoroso: 1) há os que recusam convites porque, “de qualquer forma”, já sabem que não vai ser o grande amor; 2) Há os que não querem perder tempo com conhecidos, só “com grandes amigos mesmo”; 3) Há os que recusam convites porque, se for o grande amor, vai ser o fim de seus hábitos solitários consolidados (não está disposto a aprender a amar); 4) há os que recusam convites porque, se o grande amor acontecer, vão ter que parar de se preparar para o grande amor futuro. Essas quatro posturas têm algo em comum: excluem a materialização de um amor impossível. Esse Ato Impossível não é irracional. Longe disso, ele cria sua própria (e nova) racionalidade. Temos que correr o risco, um passo no vazio, sem um grande Outro para aprovar. Esse Ato impossível é o que acontece em qualquer processo revolucionário e amoroso autêntico.
Há uma vergonha em todo amor, uma "desadaptação", uma quebra na harmonia do conjunto. As relações entre os que se amam seguem regras próprias que atemorizam os que estão à volta. Não é a toa que o medo de amar é o medo de construir uma história conjunta no que se há de traumático (e não harmonioso a priori) entre os amantes. O amor, tanto quanto o desejo, começa da falta. Mas como sentir amor hoje quando nos manifestamos como pessoas sem faltas?
segunda-feira, 9 de agosto de 2010
Amor a quem?
Por Bertold Brecht
Dizia-se da atriz Z. que ela tinha se suicidado devido a um amor infeliz. O Sr. Keuner disse: “Ela se suicidou por amor a si mesma. De todo modo, ela não pode ter amado X. Senao ela não lhe teria feito isso. Amor é o desejo de dar algo, não de receber. Amor é a arte de produzir algo com as capacidades do outro. Para isso precisa-se de atenção e dedicação do outro. Isto sempre se pode arranjar. O desejo exagerado de ser amado tem pouco a ver com amor genuíno. O amor a si tem sempre algo de suicida”.
Dizia-se da atriz Z. que ela tinha se suicidado devido a um amor infeliz. O Sr. Keuner disse: “Ela se suicidou por amor a si mesma. De todo modo, ela não pode ter amado X. Senao ela não lhe teria feito isso. Amor é o desejo de dar algo, não de receber. Amor é a arte de produzir algo com as capacidades do outro. Para isso precisa-se de atenção e dedicação do outro. Isto sempre se pode arranjar. O desejo exagerado de ser amado tem pouco a ver com amor genuíno. O amor a si tem sempre algo de suicida”.
sábado, 7 de agosto de 2010
Dilma - “Nós não somos o MST”
“Quem somos nós?” pergunta a filosofia. Como pode “certas alas” do PT vangloriar a centralização política sem precedentes que está ocorrendo hoje, principalmente numa campanha eleitoral que está cogitando uma “anti-socialista de esquerda” para a presidência na Nação? Sabemos que Dilma não é Lula e nunca vai ser. Sua mediação política não é carismática e sim pragmática tanto em forma e como em conteúdo. O melhor exemplo é sua relação com o MST. Dilma é anti-MST na essência. Sabemos que a o método da luta pela terra no Brasil tem como centralidade as ocupações de terra. Sem elas não existe reforma agrária. Paremos de brincadeira. Dilma disse o seguinte numa recente entrevista: “E não condeno (as invasões) de hoje não. Condeno desde o início do governo Lula. Ele condenou também explicitamente. Nós não concordamos com invasão de prédio, invasão de terra. Não achamos que esse é o método correto”. E daí que “nós não achamos que esse é o método correto”? O que Dilma sabe sobre a práxis da luta de classes no campo? Ela não sabe nem a diferença de uma invasão e de uma ocupação e quer pautar o movimento sem-terra a partir de uma “ligações políticas históricas” entre PT e MST? Dilma que não é uma liderança popular quer impor ao movimento os métodos que podem e devem ser usados? A partir de qual parâmetro? Naturalmente daqueles que enfraquecem a luta social, que expande a pós-política petista existente numa institucionalização estéril ao próprio movimento. Dilma recentemente abriu o jogo: “fizemos uma política que tirou as principais bandeiras deles. Não foi porque a gente reprimiu. Tem coisa mais eficaz que atender o movimento?”. Em outras palavras, quando o Estado compra o movimento estaria existindo um avanço para a esquerda, ou seja lá o que ela quer dizer com “esquerda”. É a Terceira Internacional correndo nas veias de Dilma. Contra o reacionarismo de Dilma que disse que “Nós não somos o MST”, o real desafio é o lema do MST ser levado a cabo pelo MST e pelo que resta da esquerda: “Todos somos sem-terra”. Nesta contradição a dialética perdura os pensamentos mais insistentes contra a pós-política petista.
quarta-feira, 4 de agosto de 2010
Nota sobre a pós-política petista - parte 6
Como diz Paulo Arantes, “brilha no céu o inspirador ponto final lulista”. O governo Lula re-configurou o capitalismo, as relações de classe, a esquerda, a política e a história do Brasil. Suspendeu-se a ordem política democrática com um metalúrgico na presidência que acabou por avançar um “capitalismo de crédito para pobres”. É um fenômeno de proporções internacionais! Essa superação contraditória da via prussiana se deu tanto por condições externas propícias como um interdito proibitório contra a esquerda numa declarada vitória do pragmatismo centrista como "condição de governabilidade". Como bem disse Arantes, “foi o grande negócio – seja ele qual for, a lógica financeira é a mesma – que aderiu ao lulismo e não o contrário. Simplesmente entregou a uma camada de gestores e operadores políticos, na qual a grande massa dos pobres enfim se reconheceu, o governo de uma sociedade em que a pobreza assistida ganhou uma identidade moral própria e superior. Encontrou-se afinal, para um país periférico finalmente alojado no capitalismo energético, uma forma de dominação inédita, exercida não só em nome, mas pelos próprios dominados. É uma espécie de auto-gestão da miséria, mas que como tais devem no entanto permanecer para ter voz, forrada agora pelo estofo da auto-estima reencontrada – capital político sem preço”. É a instalação da pós-política democrática pluriclassista “fukuyamista” como discurso nacional oficial numa estranha mistura de gestão dos interesses privados (nacionais e internacionais) com o fim da história política sob a figura do PT no poder. Como resultado a esquerda está hibernando. Talvez quando acordar (se acordar) seja tarde demais.
segunda-feira, 2 de agosto de 2010
Nota sobre a pós-política petista - parte 5
Para Alain Badiou, a palavra “democracia” é hoje em dia a organizadora principal do consenso. É uma “opinião autoritária” sendo assim proibido não ser democrata. Como diz o filósofo, “É evidente que a humanidade aspira à democracia, e toda a subjetividade suposta não ser democrata é tida por patológica”. A democracia é hoje considerada espontaneamente como natural. Existe uma idéia reguladora que postula a democracia como horizonte último de qualquer transformação possível na realidade social. Nestas penosas condições é que se encontra a esquerda, postulando um novo neoliberalismo baseado num capitalismo sem excessos, mais ecológico, tolerante e democrático - cujo melhor exemplo é o governo Lula no Brasil. As massas continuam fora da política porque um líder operário está gerindo o Estado. O governo Lula transformou a esquerda mundial. É a maior e mais complexa estabilização do capitalismo histórico numa periferia. Um líder operário na presidência: tem algum feito maior que esse na democracia-liberal? Provavelmente não. Como bem disse Lula “como o Brasil era uma economia capitalista se não tinha crédito? Precisou entrar um metalúrgico socialista para transformar esse país num país capitalista”. Enquanto isso nestas eleições fica claro como isso ocorreu: num esvaziamento simbólico do PT sem precedentes. A legenda está literalmente podre. Os filiados são mais numerosos do que nunca, somando 1,4 milhão de pessoas. Neste “Grande Partido” até Osmar Dias é quadro integrante, é base aliada. O resultado é claro: a política pragmática do PT perdeu parte do eleitorado que tradicionalmente votada na legenda que ainda se encontra desnorteado.
quarta-feira, 21 de julho de 2010
Nota sobre a pós-política petista – parte 4
Para Slavoj Zizek, temos o desafio de reinventar o “terror emancipatório”. Defender esse objetivo não é defender o terror Stalinista e tudo mais. Ao contrário, é não se render a saída muito fácil da alternativa da democracia-liberal que se espalha pela esquerda. Para um liberal o campo político é definido pela oposição entre democracia e totalitarismo (fascismo, terror revolucionário, fundamentalismo religioso, etc). Urgentemente é necessário abrir essa questão confinada a idéia que “não há alternativa” para o livre mercado e a concepção liberal do governo parlamentar. A Esquerda está confinada a esse limite num processo de “internalização do fim da história” – PT, por exemplo – onde o capitalismo e a representação parlamentar é o único jogo que temos. Vale o cutuque de Zizek: “com essa esquerda quem precisa de direita?”. No Brasil a história vale para revelar os estragos feitos pelo lulismo na ação e no pensamento da esquerda, quase extinto com o revisionismo petista que dança conforme a música, seja com Henrique Meirelles, Osmar Dias, bancada do DEM, etc. Naturalmente isso não é um desvio. Cada vez mais em cada petista tem uma Kátia Abreu recalcada. Como dizia Marx, a vergonha já é uma revolução. Nada mais necessário hoje do que sentir vergonha do que o PT se tornou para reavaliar as alternativas que estão sendo construídas e não seguir eternamente o caminho mais fácil, mas cheio de oportunismo em nome da “governabilidade”. Realmente o Brasil é exemplo para o mundo. É o primeiro lugar onde o conflito de classes foi institucionalizado e extremamente atenuado já que, com o PT no poder sob a figura de um ex-sindicalista politicamente brilhante, quem mais precisa lutar? O “fim da história” se estabilizou com Lula que, como ninguém em toda a história, geriu uma pós-política em conjunto com as classes industriais, financeiras e latifundiárias. Do ponto de vista do capital, Lula é “o cara”. Agora vem a coroa (DILMA) demonstrando, cada vez mais, que a “linha de menor resistência” faz parte do problema da esquerda, e não da solução. Viva a ambigüidade centrista de DILMA. Não é isso que o lulismo quer? Não é por isso que a esquerda se humilha ao deixar de lado o pensamento? É DILMA porque não há alternativa – situação criada pelo próprio PT.
sábado, 17 de julho de 2010
Longas notas sobre imperialismo e relações internacionais no mundo contemporâneo
Nota sobre a expansão militarista da política externa dos EUA
Estamos presenciando nos últimos tempos uma militarização da política externa dos EUA – inclusive na América Latina. Após a guerra fria, com a centralização do poder nas mãos dos EUA, não houve a prometida estabilidade ao sistema internacional. O fim da guerra fria combinou com o início da primeira guerra do golfo, com a crescente instabilidade financeira causando crises de repercussão internacional como a do Brasil, México e do Sudeste Asiático, o terrorismo também entra no cenário internacional como um fator importante, as economias de grande parcela do mundo estão estagnadas, etc. As contradições existentes na dinâmica do poder internacional não se estabilizaram e nem se tornaram mais factíveis de cooperação e estabilização com a concentração do poder aos Estados Unidos. Como escreve Hobsbawn, esse período “produziu uma enorme zona de incerteza política, instabilidade, caos e guerra civil. Pior que isso, também destruiu o sistema que havia estabilizado as relações internacionais por cerca de 40 anos e revelou a precariedade dos sistemas políticos nacionais que se haviam apoiado essencialmente nessa estabilidade”. Entre 1946 e 1970, os Estados Unidos tinham uma hegemonia propriamente dita, pois detinham recursos que dava suporte material para qualquer direcionamento de suas intenções e interesses. Em 1946, o PIB e a reserva de ouro dos Estados Unidos eram maiores que 50% em relação ao resto do mundo. As grandes potências européias estavam em ruínas e o Japão destruído e arrasado. Os Estados Unidos ocupavam os países do eixo. Foi uma época em que o mundo experimentou “uma gestão global baseada em regimes e instituições supranacionais, mesmo quando tuteladas pelos Estados Unidos”. Aqui se pode usar o termo hegemonia desenvolvido por Arrighi e Gramsci aonde que se entende por uma liderança associada à capacidade de um Estado apresentar-se como portador de um interesse geral e ser assim reconhecido pelos outros. Ela conduz o sistema internacional em uma direção desejada por ela, mas, ao fazê-lo, consegue ser percebida como se buscasse o interesse geral. Para tanto, é necessário que a nação hegemônica crie condições de governabilidade mundial.
Com a crise dos anos 70, a derrota na guerra do Vietnam, uma crescente ligação com a China, o desmantelamento da ordem monetária de Bretton Woods baseado no dólar fixo e a desregulamentação dos mercados mundiais trouxe aos Estados Unidos uma nova estratégia geopolítica e geoeconômica que tinham como intenção uma ordem mundial unipolar que foi finalmente alcançada com o declínio da União Soviética em 1991. Na esfera da economia mundial, a globalização, a desregulamentação e flexibilização dos mercados e moedas proporcionadas pelos Estados Unidos foram às armas estratégicas para expandir seu poder. Giovanni Arrighi também aponta que a liquidez da economia mundial iniciada pelos Estados Unidos acabou criando uma condição paradoxal em que “a maior potência militar do mundo é também a maior nação devedora mundial. Ao mesmo tempo, os Estados que passaram a controlar a maior parte da liquidez mundial (excetuando-se o Japão) nem sequer são Estados nacionais”. Essa situação paradoxal de transnacionalização do capital não está minando seu poder e sim possibilitando maiores manobras de entrada em diversas esferas da vida social em diferentes países. Vemos a ligação da China e o maior supermercado do mundo, Wal-Mart. Além de ser uma das maiores empresas do mundo, é o segundo maior empregador dos Estados Unidos depois do Pentágono. O Wal-Mart tem um faturamento anual de US$ 256 bilhões e se fosse uma nação independente seria o oitavo maior parceiro comercial da China. Segundo Stephen Gill, isso possibilitou com que o governo dos Estados Unidos tivessem
garantias para o investimento estrangeiro e acesso às fontes globais para seus produtores com o intuito de alimentar o apetite sem fim dos EUA por mercadorias de consumo baratas – portanto, as gôndolas das lojas do Wal-Mart permanecerão lotadas de mercadorias produzidas por trabalho barato da China. Isto em parte explica por que os EUA foram generosos ao facilitar a entrada da China na OMC e garantir acordos com os chineses de completa repatriação dos lucros e, por fim, permitir que a China possuísse propriedade estrangeira total de empresas privadas, garantindo investimentos e fontes de trabalho e matérias-primas na China para corporações estadunidenses (Gill, 2006, p.45).
Para os países mais desenvolvidos, o capital transnacional e as reformas neoliberais se tornam uma forma de poder efetiva, pois fragmenta suas possibilidades de inserção global, mesmo que aumentando a segregação social interna. Para os menos desenvolvidos se torna uma pedra, pois se tornam reféns indiretos de práticas econômicas ditadas e reguladas para e pelo grande pólo de poder econômico mais bem exemplificado pela Tríade e as instituições financeiras internacionais como o Banco Mundial e o FMI. O enfraquecimento do Estado nos países menos desenvolvidos não faz parte da crise do Estado e sim da “função de promover intercambio não-mercantis entre os cidadãos” (Santos, 1999, p. 64). Como sabemos, o processo de desregulamentação neoliberal é direcionado a interesses específicos, mostrando assim seu caráter classista. Segundo Panitch, “houve não menos que 151 mudanças nas regulamentações que governam os investimentos estrangeiros diretos em 76 países, e 89% delas foram favoráveis ao capital estrangeiro” (Panitch, 2000, p. 16). Esse projeto neoliberal que passou a ser o programa de reformas, primeiramente nos países de centro e depois na periferia, onde teve como receituário um enxugamento do Estado, privatizações, reestruturação produtiva, desregulamentação e flexibilização dos direitos sociais, austeridade fiscal e monetária de acordo com instituições financeiras com FMI e BIRD e uma relação mais amena entre o capital transnacional e o Estado nacional. Como escreve Gill, “nos últimos 25 anos as forças políticas e instituições de direita foram consideravelmente fortalecidas, abrindo caminho para um neoliberalismo diciplinar e punitivo cada vez maior, especialmente depois do colapso da URSS – na medida em que, obviamente, representa-o como a única opção viável para o desenvolvimento da humanidade” (Gill, 2006, p. 39)
Com a globalização, os Estados Unidos tem a capacidade de penetração nos estados, economias e ordens sociais dos outros países capitalistas a partir de seus capitais e corporações (Panitch & Leys, 2006, p. 7). A maior liberdade do capital significa uma abertura de possibilidades de intervenção que não eram possíveis sob o sistema de Bretton Woods. Por isso, “a globalização das finanças inclui a americanização das finanças, e o aprofundamento e extensão dos mercados financeiros se tornou mais do que nunca fundamental para a reprodução e universalização do poder estadunidense” (Panitch & Gindin, 2006, p. 67). Lembremos que o sistema econômico internacional também é hierárquico e existe inserido em relações de dominação que, com a globalização financeira, se modificaram. Ao contrário do período de ouro da hegemonia dos Estados Unidos, com o projeto neoliberal criou-se uma nova forma de dominação, onde a instabilidade financeira e a insegurança econômica substituíam o compromisso e o consenso. Rude resume que
O capital global, sob domínio contínuo dos Estados Unidos, pode manter a subordinação das classes e nações dominadas usando o que resta da violência econômica e financeira, garantindo por uma ação policial militarizada quando a intimidação econômica não funciona. A manipulação de símbolos culturais pela mídia de massa global pode preencher a necessidade residual de legitimidade (Rude, 2006, p. 112)
No plano do capital financeiro, os Estados Unidos conseguiram ampliar sua posição privilegiada no sistema internacional. Seu peso é maior do que no plano industrial que, a partir de 1970, se tornou muito mais competitivo após a retomada da Europa Ocidental e do Japão. Assim, “ameaçados no campo da produção, os Estados Unidos reagiram afirmando sua hegemonia por meio das finanças” (Harvey, 2005, p. 58). Dessa forma, o sistema financeiro global tem a responsabilidade de reproduzir as hierarquias existentes, gerenciar os riscos dos distúrbios que ocorrem na forma de crises e recessões e alocar melhor o capital para manter estáveis seus investimentos, onde quer que seja. Segundo Braga e Cintra,
a marca distintiva do atual movimento de internacionalização capitalista é a forma em que se deu a globalização das finanças, viabilizada pelas políticas de desregulamentação dos mercados, iniciada pelos Estados Unidos e alavancada pelo sistema de taxas de câmbio flutuante. As finanças começaram a operar em um “espaço global”, hierarquizado a partir do sistema financeiro americano e viabilizado pela política monetária do Estado hegemônico, imitadas, de imediato, pelos demais países industrializados (Braga & Cintra, 2004, p. 267).
O que vemos, então, é uma funcionalidade da globalização financeira para reprodução das relações sociais capitalistas e de poder dos Estados Unidos, principalmente por que elas sempre foram “acompanhadas de perto por uma regulação contínua do sistema financeiro global em resposta à suas crises financeiras recorrentes” (Rude, 2006, p. 107). Por mais que a atividade predominantemente financeira seja um constante risco por sua volatilidade e instabilidade inerente, diferentemente das outras hegemonias, os Estados Unidos estão conseguindo lidar bem com esse fato, pois existe uma diversidade de instituições reguladoras que podem intervir contra qualquer abalo severo, ainda mais de forma conjunta com outros Estados que precisam dessa estabilidade.
Nessa condição de supremacia economia da globalização, com posição privilegiada dentro do sistema financeiro, os Estados Unidos conseguem criar mecanismos de conter as crises inerentes à predominância do capital fictício na economia mundial e, ainda por cima, abrir ainda mais o leque de opções de intervenção econômica, com efetividade maior do que no período de 1945 a 1970, já que a tendência a liberalização das finanças ocorre mundialmente fazendo com que todos os Estados fiquem ligados nessa rede. Segundo Gowan, foi por meio da organização da volatilidade da economia é que os Estados Unidos conseguiram reproduzir seu poder (Gowan, 2003) mesmo que, com o aprofundamento do sistema financeiro e o fortalecimento das instituições reguladoras de seus efeitos, a volatilidade que essa forma de acumulação de capital engendra uma dinâmica no capitalismo que trás inexoravelmente mais crises, porém apóia a durabilidade do sistema (Patitch & Gindin, 2004, p. 90).
Um fato ligado a isso é que o processo de globalização acabou trazendo uma radicalização do imperialismo que, por si só, já é um sinal de falta de liderança. É claro que o imperialismo se transformou desde as teorizações de Lênin, Rosa Luxemburgo, Hobson, Bukharin e Hilferding, porém continua sendo imperialismo com uma nova forma, além da já discorrida forma de dominação sobre a cultura e sobre o aspecto das finanças globais liberalizadas e suas instituições internacionais como o FMI, OMC e Banco Mundial com o mecanismo de dependência a partir da dívida externa e os ajustes estruturais que penalizam as populações da América Latina, África, Ásia e Leste Europeu.
A novidade do imperialismo é que ele é, assim como a globalização, encabeçado pelos Estados Unidos como potência organizadora. Não é aquele com uma variedade de potências lutando entre si e nem mesmo uma coalizão bem estabelecida. A capacidade estadunidense de intervenção é única na história e pode usar o recurso da imprevisibilidade do envio rápido de tropas por estar entendido pelos quatro cantos do mundo com suas bases militares. Seu poder territorial é como qualquer império precedente. Segundo Gill
Os Estados Unidos possuem algo entre 700 e 1000 bases militares em todo o mundo (dependendo de como elas são catogorizadas e contatas); possui mais de 6000 dentro dos Estados Unidos e em seus próprios territórios. Um pessoal uniformizado de cerca de 250.000 funcionários civis, mais cerca de 45.000 funcionários contratados localmente (o que não exclui os novos envios ao Iraque, cerca de 140.000, nem o pequeno exército de contratantes privados que trabalham a seu lado como parte do modelo dos Estados Unidos de operações de guerra quase privatizadas). Ao menos 4, ou talvez 6 novas bases estão sendo construídas hoje no Iraque. Desde 11 de setembro de 2001, as forças dos Estados Unidos construíram, modernizaram ou expandiram as dependências militares em Bahrain, Qatar, Kuwait, Arábia Saudita, Omã, Turquia, Bulgária, Paquistão, Uzbequistão e Quirguistão (Gill, 2006, p. 51)
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As bases militares estadunidenses estão em cerca de 130 países e possuem um sistema de guerra único para garantir a defesa de seus interesses e práticas em constante expansão que, mesmo com o fim da Guerra Fria, não se conteve. O projeto Future Image Architecture, ou FIA, mostra isso. Ele é uma expansão massiva de seu sistema de satélites espiões e custeará US$ 25 bilhões em vinte anos. Em comparação, o projeto Manhattan que teve o propósito de construir a bomba atômica na Segunda Guerra Mundial custou US$ 20 bilhões de dólares atuais. Esse projeto se encaixa perfeitamente sobre a expansão constante de tecnologia militar a fim de dominar, além de tudo, o espaço e a cibernética (Gill, 2006, p. 52).
Mesmo a Rússia, segunda maior potência bélica do mundo, está em uma posição de diferença gritante em relação aos gastos na esfera militar. Depois do fim da União Soviética, a Rússia gasta cerca de 10% de seu PIB de 330 milhões com gastos militares. Os Estados Unidos podem gastar anualmente 3% de seu PIB de 11 trilhões para gastos militares, algo em torno de todo o PIB russo (Dupas, 2005, p. 128). Esse comportamento não é aleatório ou pode ser reduzido a determinado governo já que constitui uma política de Estado. Como escreve Mearsheimer, “as grandes potências têm um comportamento agressivo não porque elas queiram, mas porque elas têm que buscar acumular mais poder se quiserem maximizar suas probabilidades de sobrevivência, porque o sistema internacional cria incentivos poderosos para que os estados estejam sempre procurando oportunidades de ganhar mais poder às custas dos seus rivais” .
A atual invasão ao Iraque demonstra mais claramente isso já que “quem controlar o Oriente Médio controlará a torneira global do petróleo, e quem controlar a torneira global do petróleo poderá controlar a economia global, pelo menos no futuro próximo” assim, “o acesso ao petróleo do Oriente Médio é portanto uma questão de segurança crucial para os Estados Unidos, bem como para a economia global como um todo” (Harvey, 2005). Essa situação possibilita uma desagregação entre os principais interessados nesse controle. Para tanto, “o assim chamado ‘efeito demonstração’ é sempre – e cada vez mais – um ponto a considerar: a exibição ao mundo de que a força militar estadunidense pode ir a qualquer lugar e a qualquer momento” (Wood, 2002).
O que vemos, por outro lado, é que o potencial bélico dos Estados Unidos também faz parte de uma lógica de poder onde, paradoxalmente, ela arma seus “futuros e eventuais adversários, pelo menos até o momento em que eles adquiram autonomia tecnológico-militar. Mesmo depois do fim da Guerra Fria, os Estados Unidos (com 56,7% do mercado) e a Rússia (com 16,8 de todas as vendas de 2003) continuam dominando o mercado internacional de armamentos, e os países asiáticos, a China em particular, seguem sendo os seus maiores compradores” (Fiori, 2004). Exemplo dessa tendência megalomaníaca é que apenas no governo Clinton “os Estados Unidos se envolveram em 48 intervenções militares, muito mais do que em toda a Guerra Fria, período em que ocorreram 16 intervenções” (Bacevith, 2002). Sabemos que poder é mais que apenas armas, intervenções e ameaças. O poder está inserido em uma dialética de coerção e consenso e, qualquer uma das duas independentes é autodestrutiva. Assim como na vida, o uso extensivo da violência só é praticado quando existem lutas em potencial ou quando sabemos que estamos perdendo o controle.
Chegamos a um momento em que as contradições fundamentais do sistema são colocadas à prova. É necessário tomar decisões mais aventureiras, agressivas e, possivelmente, mais desastrosas diante da crise e da instabilidade. Como escreve István Mészáros,
hoje os perigos catastróficos que acompanhariam uma conflagração global, como as que ocorreram no passado, são evidentes até para os defensores menos críticos do sistema. Ao mesmo tempo, ninguém em sã consciência pode excluir a possibilidade de erupção de um conflito mortal, e com ele a destruição da humanidade. Ainda assim, nada se faz para resolver as maciças contradições ocultas que apontam para esta assustadora direção. Pelo contrário, o crescimento contínuo da hegemonia economia e militar da única superpotência remanescente – os Estados Unidos da América – lança uma sombra cada vez mais escura sobre o futuro
Talvez um controle real sobre as estruturas responsáveis pela reprodução da vida social seja uma possibilidade contra a atual situação do processo histórico. Se nessa transformação do mundo uma mudança decorrente seja a mudança em nós mesmos, talvez seja a hora de arriscar.
Estamos presenciando nos últimos tempos uma militarização da política externa dos EUA – inclusive na América Latina. Após a guerra fria, com a centralização do poder nas mãos dos EUA, não houve a prometida estabilidade ao sistema internacional. O fim da guerra fria combinou com o início da primeira guerra do golfo, com a crescente instabilidade financeira causando crises de repercussão internacional como a do Brasil, México e do Sudeste Asiático, o terrorismo também entra no cenário internacional como um fator importante, as economias de grande parcela do mundo estão estagnadas, etc. As contradições existentes na dinâmica do poder internacional não se estabilizaram e nem se tornaram mais factíveis de cooperação e estabilização com a concentração do poder aos Estados Unidos. Como escreve Hobsbawn, esse período “produziu uma enorme zona de incerteza política, instabilidade, caos e guerra civil. Pior que isso, também destruiu o sistema que havia estabilizado as relações internacionais por cerca de 40 anos e revelou a precariedade dos sistemas políticos nacionais que se haviam apoiado essencialmente nessa estabilidade”. Entre 1946 e 1970, os Estados Unidos tinham uma hegemonia propriamente dita, pois detinham recursos que dava suporte material para qualquer direcionamento de suas intenções e interesses. Em 1946, o PIB e a reserva de ouro dos Estados Unidos eram maiores que 50% em relação ao resto do mundo. As grandes potências européias estavam em ruínas e o Japão destruído e arrasado. Os Estados Unidos ocupavam os países do eixo. Foi uma época em que o mundo experimentou “uma gestão global baseada em regimes e instituições supranacionais, mesmo quando tuteladas pelos Estados Unidos”. Aqui se pode usar o termo hegemonia desenvolvido por Arrighi e Gramsci aonde que se entende por uma liderança associada à capacidade de um Estado apresentar-se como portador de um interesse geral e ser assim reconhecido pelos outros. Ela conduz o sistema internacional em uma direção desejada por ela, mas, ao fazê-lo, consegue ser percebida como se buscasse o interesse geral. Para tanto, é necessário que a nação hegemônica crie condições de governabilidade mundial.
Com a crise dos anos 70, a derrota na guerra do Vietnam, uma crescente ligação com a China, o desmantelamento da ordem monetária de Bretton Woods baseado no dólar fixo e a desregulamentação dos mercados mundiais trouxe aos Estados Unidos uma nova estratégia geopolítica e geoeconômica que tinham como intenção uma ordem mundial unipolar que foi finalmente alcançada com o declínio da União Soviética em 1991. Na esfera da economia mundial, a globalização, a desregulamentação e flexibilização dos mercados e moedas proporcionadas pelos Estados Unidos foram às armas estratégicas para expandir seu poder. Giovanni Arrighi também aponta que a liquidez da economia mundial iniciada pelos Estados Unidos acabou criando uma condição paradoxal em que “a maior potência militar do mundo é também a maior nação devedora mundial. Ao mesmo tempo, os Estados que passaram a controlar a maior parte da liquidez mundial (excetuando-se o Japão) nem sequer são Estados nacionais”. Essa situação paradoxal de transnacionalização do capital não está minando seu poder e sim possibilitando maiores manobras de entrada em diversas esferas da vida social em diferentes países. Vemos a ligação da China e o maior supermercado do mundo, Wal-Mart. Além de ser uma das maiores empresas do mundo, é o segundo maior empregador dos Estados Unidos depois do Pentágono. O Wal-Mart tem um faturamento anual de US$ 256 bilhões e se fosse uma nação independente seria o oitavo maior parceiro comercial da China. Segundo Stephen Gill, isso possibilitou com que o governo dos Estados Unidos tivessem
garantias para o investimento estrangeiro e acesso às fontes globais para seus produtores com o intuito de alimentar o apetite sem fim dos EUA por mercadorias de consumo baratas – portanto, as gôndolas das lojas do Wal-Mart permanecerão lotadas de mercadorias produzidas por trabalho barato da China. Isto em parte explica por que os EUA foram generosos ao facilitar a entrada da China na OMC e garantir acordos com os chineses de completa repatriação dos lucros e, por fim, permitir que a China possuísse propriedade estrangeira total de empresas privadas, garantindo investimentos e fontes de trabalho e matérias-primas na China para corporações estadunidenses (Gill, 2006, p.45).
Para os países mais desenvolvidos, o capital transnacional e as reformas neoliberais se tornam uma forma de poder efetiva, pois fragmenta suas possibilidades de inserção global, mesmo que aumentando a segregação social interna. Para os menos desenvolvidos se torna uma pedra, pois se tornam reféns indiretos de práticas econômicas ditadas e reguladas para e pelo grande pólo de poder econômico mais bem exemplificado pela Tríade e as instituições financeiras internacionais como o Banco Mundial e o FMI. O enfraquecimento do Estado nos países menos desenvolvidos não faz parte da crise do Estado e sim da “função de promover intercambio não-mercantis entre os cidadãos” (Santos, 1999, p. 64). Como sabemos, o processo de desregulamentação neoliberal é direcionado a interesses específicos, mostrando assim seu caráter classista. Segundo Panitch, “houve não menos que 151 mudanças nas regulamentações que governam os investimentos estrangeiros diretos em 76 países, e 89% delas foram favoráveis ao capital estrangeiro” (Panitch, 2000, p. 16). Esse projeto neoliberal que passou a ser o programa de reformas, primeiramente nos países de centro e depois na periferia, onde teve como receituário um enxugamento do Estado, privatizações, reestruturação produtiva, desregulamentação e flexibilização dos direitos sociais, austeridade fiscal e monetária de acordo com instituições financeiras com FMI e BIRD e uma relação mais amena entre o capital transnacional e o Estado nacional. Como escreve Gill, “nos últimos 25 anos as forças políticas e instituições de direita foram consideravelmente fortalecidas, abrindo caminho para um neoliberalismo diciplinar e punitivo cada vez maior, especialmente depois do colapso da URSS – na medida em que, obviamente, representa-o como a única opção viável para o desenvolvimento da humanidade” (Gill, 2006, p. 39)
Com a globalização, os Estados Unidos tem a capacidade de penetração nos estados, economias e ordens sociais dos outros países capitalistas a partir de seus capitais e corporações (Panitch & Leys, 2006, p. 7). A maior liberdade do capital significa uma abertura de possibilidades de intervenção que não eram possíveis sob o sistema de Bretton Woods. Por isso, “a globalização das finanças inclui a americanização das finanças, e o aprofundamento e extensão dos mercados financeiros se tornou mais do que nunca fundamental para a reprodução e universalização do poder estadunidense” (Panitch & Gindin, 2006, p. 67). Lembremos que o sistema econômico internacional também é hierárquico e existe inserido em relações de dominação que, com a globalização financeira, se modificaram. Ao contrário do período de ouro da hegemonia dos Estados Unidos, com o projeto neoliberal criou-se uma nova forma de dominação, onde a instabilidade financeira e a insegurança econômica substituíam o compromisso e o consenso. Rude resume que
O capital global, sob domínio contínuo dos Estados Unidos, pode manter a subordinação das classes e nações dominadas usando o que resta da violência econômica e financeira, garantindo por uma ação policial militarizada quando a intimidação econômica não funciona. A manipulação de símbolos culturais pela mídia de massa global pode preencher a necessidade residual de legitimidade (Rude, 2006, p. 112)
No plano do capital financeiro, os Estados Unidos conseguiram ampliar sua posição privilegiada no sistema internacional. Seu peso é maior do que no plano industrial que, a partir de 1970, se tornou muito mais competitivo após a retomada da Europa Ocidental e do Japão. Assim, “ameaçados no campo da produção, os Estados Unidos reagiram afirmando sua hegemonia por meio das finanças” (Harvey, 2005, p. 58). Dessa forma, o sistema financeiro global tem a responsabilidade de reproduzir as hierarquias existentes, gerenciar os riscos dos distúrbios que ocorrem na forma de crises e recessões e alocar melhor o capital para manter estáveis seus investimentos, onde quer que seja. Segundo Braga e Cintra,
a marca distintiva do atual movimento de internacionalização capitalista é a forma em que se deu a globalização das finanças, viabilizada pelas políticas de desregulamentação dos mercados, iniciada pelos Estados Unidos e alavancada pelo sistema de taxas de câmbio flutuante. As finanças começaram a operar em um “espaço global”, hierarquizado a partir do sistema financeiro americano e viabilizado pela política monetária do Estado hegemônico, imitadas, de imediato, pelos demais países industrializados (Braga & Cintra, 2004, p. 267).
O que vemos, então, é uma funcionalidade da globalização financeira para reprodução das relações sociais capitalistas e de poder dos Estados Unidos, principalmente por que elas sempre foram “acompanhadas de perto por uma regulação contínua do sistema financeiro global em resposta à suas crises financeiras recorrentes” (Rude, 2006, p. 107). Por mais que a atividade predominantemente financeira seja um constante risco por sua volatilidade e instabilidade inerente, diferentemente das outras hegemonias, os Estados Unidos estão conseguindo lidar bem com esse fato, pois existe uma diversidade de instituições reguladoras que podem intervir contra qualquer abalo severo, ainda mais de forma conjunta com outros Estados que precisam dessa estabilidade.
Nessa condição de supremacia economia da globalização, com posição privilegiada dentro do sistema financeiro, os Estados Unidos conseguem criar mecanismos de conter as crises inerentes à predominância do capital fictício na economia mundial e, ainda por cima, abrir ainda mais o leque de opções de intervenção econômica, com efetividade maior do que no período de 1945 a 1970, já que a tendência a liberalização das finanças ocorre mundialmente fazendo com que todos os Estados fiquem ligados nessa rede. Segundo Gowan, foi por meio da organização da volatilidade da economia é que os Estados Unidos conseguiram reproduzir seu poder (Gowan, 2003) mesmo que, com o aprofundamento do sistema financeiro e o fortalecimento das instituições reguladoras de seus efeitos, a volatilidade que essa forma de acumulação de capital engendra uma dinâmica no capitalismo que trás inexoravelmente mais crises, porém apóia a durabilidade do sistema (Patitch & Gindin, 2004, p. 90).
Um fato ligado a isso é que o processo de globalização acabou trazendo uma radicalização do imperialismo que, por si só, já é um sinal de falta de liderança. É claro que o imperialismo se transformou desde as teorizações de Lênin, Rosa Luxemburgo, Hobson, Bukharin e Hilferding, porém continua sendo imperialismo com uma nova forma, além da já discorrida forma de dominação sobre a cultura e sobre o aspecto das finanças globais liberalizadas e suas instituições internacionais como o FMI, OMC e Banco Mundial com o mecanismo de dependência a partir da dívida externa e os ajustes estruturais que penalizam as populações da América Latina, África, Ásia e Leste Europeu.
A novidade do imperialismo é que ele é, assim como a globalização, encabeçado pelos Estados Unidos como potência organizadora. Não é aquele com uma variedade de potências lutando entre si e nem mesmo uma coalizão bem estabelecida. A capacidade estadunidense de intervenção é única na história e pode usar o recurso da imprevisibilidade do envio rápido de tropas por estar entendido pelos quatro cantos do mundo com suas bases militares. Seu poder territorial é como qualquer império precedente. Segundo Gill
Os Estados Unidos possuem algo entre 700 e 1000 bases militares em todo o mundo (dependendo de como elas são catogorizadas e contatas); possui mais de 6000 dentro dos Estados Unidos e em seus próprios territórios. Um pessoal uniformizado de cerca de 250.000 funcionários civis, mais cerca de 45.000 funcionários contratados localmente (o que não exclui os novos envios ao Iraque, cerca de 140.000, nem o pequeno exército de contratantes privados que trabalham a seu lado como parte do modelo dos Estados Unidos de operações de guerra quase privatizadas). Ao menos 4, ou talvez 6 novas bases estão sendo construídas hoje no Iraque. Desde 11 de setembro de 2001, as forças dos Estados Unidos construíram, modernizaram ou expandiram as dependências militares em Bahrain, Qatar, Kuwait, Arábia Saudita, Omã, Turquia, Bulgária, Paquistão, Uzbequistão e Quirguistão (Gill, 2006, p. 51)
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As bases militares estadunidenses estão em cerca de 130 países e possuem um sistema de guerra único para garantir a defesa de seus interesses e práticas em constante expansão que, mesmo com o fim da Guerra Fria, não se conteve. O projeto Future Image Architecture, ou FIA, mostra isso. Ele é uma expansão massiva de seu sistema de satélites espiões e custeará US$ 25 bilhões em vinte anos. Em comparação, o projeto Manhattan que teve o propósito de construir a bomba atômica na Segunda Guerra Mundial custou US$ 20 bilhões de dólares atuais. Esse projeto se encaixa perfeitamente sobre a expansão constante de tecnologia militar a fim de dominar, além de tudo, o espaço e a cibernética (Gill, 2006, p. 52).
Mesmo a Rússia, segunda maior potência bélica do mundo, está em uma posição de diferença gritante em relação aos gastos na esfera militar. Depois do fim da União Soviética, a Rússia gasta cerca de 10% de seu PIB de 330 milhões com gastos militares. Os Estados Unidos podem gastar anualmente 3% de seu PIB de 11 trilhões para gastos militares, algo em torno de todo o PIB russo (Dupas, 2005, p. 128). Esse comportamento não é aleatório ou pode ser reduzido a determinado governo já que constitui uma política de Estado. Como escreve Mearsheimer, “as grandes potências têm um comportamento agressivo não porque elas queiram, mas porque elas têm que buscar acumular mais poder se quiserem maximizar suas probabilidades de sobrevivência, porque o sistema internacional cria incentivos poderosos para que os estados estejam sempre procurando oportunidades de ganhar mais poder às custas dos seus rivais” .
A atual invasão ao Iraque demonstra mais claramente isso já que “quem controlar o Oriente Médio controlará a torneira global do petróleo, e quem controlar a torneira global do petróleo poderá controlar a economia global, pelo menos no futuro próximo” assim, “o acesso ao petróleo do Oriente Médio é portanto uma questão de segurança crucial para os Estados Unidos, bem como para a economia global como um todo” (Harvey, 2005). Essa situação possibilita uma desagregação entre os principais interessados nesse controle. Para tanto, “o assim chamado ‘efeito demonstração’ é sempre – e cada vez mais – um ponto a considerar: a exibição ao mundo de que a força militar estadunidense pode ir a qualquer lugar e a qualquer momento” (Wood, 2002).
O que vemos, por outro lado, é que o potencial bélico dos Estados Unidos também faz parte de uma lógica de poder onde, paradoxalmente, ela arma seus “futuros e eventuais adversários, pelo menos até o momento em que eles adquiram autonomia tecnológico-militar. Mesmo depois do fim da Guerra Fria, os Estados Unidos (com 56,7% do mercado) e a Rússia (com 16,8 de todas as vendas de 2003) continuam dominando o mercado internacional de armamentos, e os países asiáticos, a China em particular, seguem sendo os seus maiores compradores” (Fiori, 2004). Exemplo dessa tendência megalomaníaca é que apenas no governo Clinton “os Estados Unidos se envolveram em 48 intervenções militares, muito mais do que em toda a Guerra Fria, período em que ocorreram 16 intervenções” (Bacevith, 2002). Sabemos que poder é mais que apenas armas, intervenções e ameaças. O poder está inserido em uma dialética de coerção e consenso e, qualquer uma das duas independentes é autodestrutiva. Assim como na vida, o uso extensivo da violência só é praticado quando existem lutas em potencial ou quando sabemos que estamos perdendo o controle.
Chegamos a um momento em que as contradições fundamentais do sistema são colocadas à prova. É necessário tomar decisões mais aventureiras, agressivas e, possivelmente, mais desastrosas diante da crise e da instabilidade. Como escreve István Mészáros,
hoje os perigos catastróficos que acompanhariam uma conflagração global, como as que ocorreram no passado, são evidentes até para os defensores menos críticos do sistema. Ao mesmo tempo, ninguém em sã consciência pode excluir a possibilidade de erupção de um conflito mortal, e com ele a destruição da humanidade. Ainda assim, nada se faz para resolver as maciças contradições ocultas que apontam para esta assustadora direção. Pelo contrário, o crescimento contínuo da hegemonia economia e militar da única superpotência remanescente – os Estados Unidos da América – lança uma sombra cada vez mais escura sobre o futuro
Talvez um controle real sobre as estruturas responsáveis pela reprodução da vida social seja uma possibilidade contra a atual situação do processo histórico. Se nessa transformação do mundo uma mudança decorrente seja a mudança em nós mesmos, talvez seja a hora de arriscar.
quarta-feira, 14 de julho de 2010
Crise na Europa: quais as respostas progressistas?
Lembro-me que no auge da crise nos Estados Unidos fiz um "texto pastiche". Era uma combinação entre o texto de Walden Bello e alguns comentários por fora do texto escrito de forma "anônima". Hoje li um texto de Michel Husson que vou fazer a mesma experiência, mas apenas no início do texto. Vou utilizar o início do texto como base para atualizar o andamento da crise atual e pontuar algumas questões política.
O original está em http://www.esquerda.net/dossier/crise-quais-respostas-progressistas.
Lá vai.
A atual crise é uma crise extremamente profunda. A reação dos governos é, por fim, suficientemente clara: resolvem o mais urgente para evitar as catástrofes, submetem-se ao capricho dos mercados sem nunca procurar controlá-los e preparam as adaptações necessárias para voltar, logo que possível, ao business as usual. A profundidade da crise é tal, que os governos não dispõem de alternativa real à versão neoliberal do capitalismo que construíram. Os planos de austeridade que se anunciam são e serão de uma grande violência e só irão conseguir endurecer os traços regressivos deste sistema. Do ponto de vista político isso comprova os limites da estritamente ação parlamentar como horizonte único do movimento social.Do lado do movimento social, a crise tem efeitos contraditórios. Por um lado, dá razão aos críticos de um sistema cujos próprios fundamentos são abalados por uma crise cuja dimensão demonstra a instabilidade crônica e a irracionalidade crescente. Mas, por outro lado, constrange as lutas a uma postura de defesa muitas vezes estilhaçada. Esta tensão sempre existiu, mas foi levada ao seu paroxismo pela crise: é preciso bater-se passo a passo contra as medidas para a «saída da crise» e, simultaneamente, abrir uma perspectiva alternativa radical. Num parametro organizacional e estratégico é necessário negar o existente e construir a alternativa ao mesmo tempo. É uma "crise da negação" onde para avançar com respostas que façam a ponte entre as duas exigências é necessário uma postura ofensiva. Isso é, colocar em jogo o próprio "jogo democrático" no plano da organização de massas cujo processo político não é fundado na "representação" dos partidos no Estado. Entrementes a dificuldade real para se organizar é o Estado. Nesse sentido um projeto "democrático-popular" da esquerda parlamentar tem como resposta o azeitamento das contradições sociais do capitalismo - vide petistas, democratas, trabalhistas, etc. Entretanto lembremos que tanto maior quanto mais mundial é a crise e quanto mais essas respostas devem ter em conta esta dimensão e serem portadoras de uma outra concepção de comunismo como associação dos livres associados do trabalho.
Prioridade às necessidades sociais... (a partir daqui apenas Husson)
O princípio fundamental de qualquer projeto de transformação social é minimamente a satisfação das necessidades sociais. Do ponto de vista capitalista, a saída da crise passa por uma recuperação da rentabilidade e, portanto, por uma pressão suplementar sobre os salários e o emprego. E os famosos déficits da proteção social ou do orçamento de Estado agravaram-se devido à deslocação da repartição da riqueza que é, também, o produto das contra-reformas fiscais. O resgate trilhionário do sistema financeiro está produzindo como resultado não uma melhora mínima nas condições de vida dos trabalhadores mas, ao contrário, uma crescente desigualdade social revestida de "política democrática".
A equação é portanto simples: não sairemos da crise por cima sem uma modificação significativa da repartição das receitas. Esta questão vem antes da do crescimento pautado pelo "ritmo Chinês". Claro que um crescimento mais sustentado seria favorável ao emprego e aos salários (falta ainda discutir o assunto de um ponto de vista ecológico) mas, de qualquer maneira, não se pode contar com esta variável se, ao mesmo tempo, a repartição das receitas se tornar cada vez mais desigual.
É preciso portanto esmagar as desigualdades: por um lado, pelo aumento da massa salarial e, por outro, pela reforma fiscal. A reposição do nível da parte correspondente aos salários deveria seguir uma regra dos três terços: um terço para os salários diretos, um terço para o salário socializado (a proteção social) e um terço para a criação de emprego através da redução do tempo de trabalho. Esta progressão far-se-ia em detrimento dos dividendos, que não têm nenhuma justificação económica nem utilidade social. O déficit orçamentário deveria ser progressivamente reduzido, não por um corte nas despesas, mas por uma refiscalização de todas as formas de receitas que, a pouco e pouco, foram dispensadas de impostos. A cobrança da dívida deveria ser atenuada por uma dedução excepcional equivalente a uma rejeição parcial da dívida.
... e portanto ao emprego
O desemprego e a precariedade já eram as perversões sociais mais graves deste sistema: a crise ainda as intensificou, tanto mais que os planos de austeridade vão poupar à custa das condições de existência dos mais desfavorecidos. Mesmo assim, não se deve considerar um hipotético crescimento como a via mais fácil. Produzamos mais para criar empregos? É inverter a questão. É preciso realizar aqui uma total mudança de perspectiva e pegar na criação de empregos úteis como ponto de partida.
Quer seja pela redução do tempo de trabalho no privado quer pela criação de lugares nas administrações, serviços públicos e colectividades; é preciso partir das necessidades e compreender que é o emprego que cria a riqueza (não necessariamente mercantil). E isto permite estabelecer uma ponte para as preocupações ambientais: a prioridade ao tempo livre e a criação de empregos úteis são dois elementos essenciais da luta contra as alterações climáticas.
A questão da repartição das receitas é pois um bom impulsionador em torno deste princípio simples: «nós não pagaremos a crise deles». Isto não tem nada a ver com «relançar a questão dos salários», mas com a defesa dos salários, do emprego e dos direitos sociais sobre o que não deveria haver discussão. Pode então avançar-se com a noção complementar de controlo: controlo sobre o que eles fazem com os seus lucros (pagar dividendos ou criar empregos); controlo sobre a utilização dos impostos (subvencionar os bancos ou financiar os serviços públicos). A cartada é passar da defesa ao controlo e só esta viragem pode permitir que o pôr em causa a propriedade privada dos meios de produção adquira uma audiência de massas.
O espartilho do euro
A segunda investida da crise vem abalar a Europa através da especulação sobre as dívidas públicas. A gestão desta crise é reveladora: a Europa neoliberal é um espartilho e o euro um instrumento de disciplina salarial e social. Esta constatação coloca a questão da possibilidade de uma experiência de transformação social iniciada num único país.
Não existe uma resposta clara. A saída do euro permitiria restabelecer uma margem de manobra graças à manipulação da taxa de câmbio, mas uma desvalorização teria um custo importante já que faria aumentar o peso da dívida e tornaria necessário um plano de austeridade, a fim de ajustar os salários a uma nova escala de preços internacionais. Por outro lado, é uma decisão extremamente arriscada, que arrisca desencadear a especulação contra a nova moeda. Resumindo, a saída do euro é uma ferramenta possível, mas não constitui por si própria uma saída progressista.
A verdadeira solução passaria pela criação dos instrumentos necessários para gerir a co-existência de diferentes economias no seio de uma moeda única. Uma primeira proposta, apresentada por Jacques Sapir, é a instauração de uma moeda «comum» e não «única»: existiria um euro convertível para as relações da zona com o resto do mundo e moedas reajustáveis para cada país ou grupo de países. Mas esta reforma não seria suficiente se a Europa não se dotasse de um verdadeiro orçamento alargado, fundado sobre uma tributação unificada do capital e se o BCE não estivesse autorizado a emitir euro-obrigações destinadas a financiar de forma co-responsável as dívidas públicas. Mas este tipo de solução pressupõe uma relação de forças e um grau de consenso que não existem hoje.
Por uma estratégia de alargamento europeu
A escolha parece pois ser entre uma aventura arriscada e uma harmonização utópica. A questão política central é portanto sair deste dilema. Para tentar responder-lhe, é preciso trabalhar a distinção entre os fins e os meios. O objetivo de uma política de transformação social é, mais uma vez, o de assegurar ao conjunto dos cidadãos uma vida decente em todas as suas dimensões (emprego, saúde, reforma, alojamento, etc.). O obstáculo imediato é a repartição das receitas, que é preciso modificar na fonte (entre lucros e salários) e corrigir ao nível fiscal. É preciso portanto tomar um conjunto de medidas que visem contrair as receitas financeiras e realizar uma reforma fiscal radical. Estes objetivos passam por pôr em causa os interesses sociais dominantes, os seus privilégios, e este confronto desenrola-se em primeiro lugar num âmbito nacional. Mas os trunfos dos dominadores e as medidas de retaliação possíveis ultrapassam esse âmbito nacional: invoca-se imediatamente a perda de competitividade, as fugas de capitais e a ruptura com as regras europeias.
A única estratégia possível deve portanto apoiar-se na legitimidade das soluções progressistas, que resulta do seu caráter eminentemente cooperativo. Todas as recomendações neoliberais remetem, em última instância, para a procura da competitividade: é preciso baixar os salários, reduzir os «encargos» para, no fim de contas, ganhar partes de mercado. Como o crescimento será fraco no período aberto pela crise na Europa, o único meio dos países criarem empregos será retirá-los aos países vizinhos, tanto mais que a maioria do comércio externo dos países europeus faz-se no interior da Europa. Isto é verdade mesmo para a Alemanha (primeiro ou segundo exportador mundial, juntamente com a China), que não pode contar apenas com os países emergentes para obter o seu crescimento e os seus empregos. As saídas neoliberais para a crise são, portanto, por natureza não cooperativas: só se pode ganhar contra os outros e isso é aliás o fundamento da crise da construção europeia.
Em contrapartida, as soluções progressistas são cooperativas: funcionam tanto melhor quanto se alargarem a um maior número de países. Se todos os países europeus reduzissem a duração do trabalho e tributassem as receitas do capital, esta coordenação permitiria eliminar as consequências às quais seria exposta esta mesma política levada a cabo num só país. A via a explorar é portanto a de uma estratégia de alargamento que um governo da esquerda radical poderia seguir:
1. tomam-se unilateralmente as «boas» medidas (por exemplo a taxação das transações financeiras);
2. fazem-se acompanhar de medidas de proteção (por exemplo um controle dos capitais);
3. assume-se o risco político de infringir as regras europeias;
4. propõe-se modificá-las, alargando as medidas tomadas à escala europeia;
5. não se exclui um braço de ferro e usa-se a ameaça da saída do euro.
Este esquema advém do fato de não podermos condicionar a aplicação de uma «boa» política à constituição de uma «boa» Europa. As medidas de retaliação de todos os tipos devem ser antecipadas por meio de medidas de proteção que, efetivamente, apelam ao arsenal protecionista. Mas não se trata de protecionismo no sentido habitual do termo, uma vez que este tipo de protecionismo protege uma experiência de transformação social e não os interesses dos capitalistas de um dado país face à concorrência dos outros. Trata-se, portanto, de um protecionismo de alargamento, cuja lógica é a de desaparecer a partir do momento em que as «boas» medidas se alargarem.
A ruptura com as regras europeias não se faz por uma questão de princípio, mas a partir de uma medida justa e legítima que corresponde aos interesses da maioria e que é proposta aos países vizinhos como caminho a seguir. Esta esperança de mudança permite então apoiar-se na mobilização social nos outros países e construir assim uma relação de forças que pode pesar sobre as instituições europeias. A experiência recente do plano de salvaguarda do euro demonstrou aliás que não era necessário alterar os tratados para desrespeitar várias das suas disposições.
A saída do euro deixa de ser, neste esquema, um pré-requisito. É, pelo contrário, uma arma a utilizar como «último recurso». Em primeiro lugar, a ruptura dever-se-ia fazer em dois pontos que permitiriam disponibilizar verdadeiras margens de manobra: nacionalização dos bancos e denúncia da dívida.
O projeto e a relação de forças
As justificações, tanto técnicas como políticas, de uma nacionalização do sistema bancário surgiram novamente com força: o plano de salvaguarda do euro é de fato um novo plano de salvaguarda dos bancos europeus, que detêm em grande parte a dívida grega e a de outros países ameaçados de especulação. Para fazer desaparecer todas essas dívidas emaranhadas, a melhor solução seria uma nacionalização integral, permitindo de uma vez por todas compensar, reescalonar ou saldar essas dívidas. As dívidas públicas, além do impacto mecânico sobre as receitas, correspondem no essencial à acumulação das ofertas fiscais às empresas e aos que têm rendimentos. A lógica apontaria para que fossem anuladas ou amplamente reestruturadas. Neste ponto, como no anterior, esbarra-se com uma outra dificuldade: essas medidas (nacionalização dos bancos e denúncia da dívida) poriam em causa os interesses dos não residentes e pressupõem uma ruptura com o capitalismo globalizado.
Um programa que visasse apenas regular o sistema à margem seria não só subdimensionado, mas também pouco mobilizador. Por outro lado, uma perspectiva radical arrisca-se a desencorajar perante a dimensão da tarefa. Trata-se de certo modo de determinar o grau óptimo de radicalidade. A dificuldade não está tanto em elaborar os dispositivos de ordem técnica: claro que é indispensável e é um trabalho muito avançado, mas nenhuma medida hábil pode permitir contornar o inevitável confronto entre interesses sociais contraditórios.
Sobre os bancos, o leque vai da nacionalização integral à regulação, passando pela constituição de um pólo financeiro público ou pela criação de uma regulamentação muito restritiva. Quanto à dívida pública, pode ser anulada, suspensa, renegociada, etc. A nacionalização integral dos bancos e a denúncia da dívida pública são medidas legítimas e economicamente viáveis, mas podem parecer fora de alcance devido à relação de forças actual. Situa-se aqui o verdadeiro debate: qual é, na escala do radicalismo, a posição do cursor que permite mobilizar melhor? Não cabe aos economistas decidir este debate e é por isso que, mais do que propor um conjunto de medidas, este artigo procurou colocar questões de método e sublinhar a necessidade, para uma verdadeira saída da crise, de três ingredientes indispensáveis:
1. uma modificação radical da repartição das receitas;
2. uma redução massiva do tempo de trabalho;
3. uma ruptura com a ordem mundial capitalista, a começar pela Europa que existe na realidade.
Não se pode encerrar o debate numa oposição entre antiliberais e anticapitalistas. Evidentemente que esta distinção tem um sentido, conforme o projeto seja de desembaraçar o capitalismo da finança ou de nos desembaraçarmos do capitalismo. Mas esta tensão não deveria impedir de fazermos um longo caminho juntos, enquanto se realiza este debate. O «programa comum» poderia basear-se agora na vontade de impor ao capitalismo outras regras de funcionamento. É esta a linha que separa a esquerda radical de ruptura e o social liberalismo de acompanhamento. Se se avançar por esta via, ver-se-á em seguida se isso leva a pôr em causa a propriedade privada a partir do controlo que se conseguir exercer sobre a repartição da riqueza.
O original está em http://www.esquerda.net/dossier/crise-quais-respostas-progressistas.
Lá vai.
A atual crise é uma crise extremamente profunda. A reação dos governos é, por fim, suficientemente clara: resolvem o mais urgente para evitar as catástrofes, submetem-se ao capricho dos mercados sem nunca procurar controlá-los e preparam as adaptações necessárias para voltar, logo que possível, ao business as usual. A profundidade da crise é tal, que os governos não dispõem de alternativa real à versão neoliberal do capitalismo que construíram. Os planos de austeridade que se anunciam são e serão de uma grande violência e só irão conseguir endurecer os traços regressivos deste sistema. Do ponto de vista político isso comprova os limites da estritamente ação parlamentar como horizonte único do movimento social.Do lado do movimento social, a crise tem efeitos contraditórios. Por um lado, dá razão aos críticos de um sistema cujos próprios fundamentos são abalados por uma crise cuja dimensão demonstra a instabilidade crônica e a irracionalidade crescente. Mas, por outro lado, constrange as lutas a uma postura de defesa muitas vezes estilhaçada. Esta tensão sempre existiu, mas foi levada ao seu paroxismo pela crise: é preciso bater-se passo a passo contra as medidas para a «saída da crise» e, simultaneamente, abrir uma perspectiva alternativa radical. Num parametro organizacional e estratégico é necessário negar o existente e construir a alternativa ao mesmo tempo. É uma "crise da negação" onde para avançar com respostas que façam a ponte entre as duas exigências é necessário uma postura ofensiva. Isso é, colocar em jogo o próprio "jogo democrático" no plano da organização de massas cujo processo político não é fundado na "representação" dos partidos no Estado. Entrementes a dificuldade real para se organizar é o Estado. Nesse sentido um projeto "democrático-popular" da esquerda parlamentar tem como resposta o azeitamento das contradições sociais do capitalismo - vide petistas, democratas, trabalhistas, etc. Entretanto lembremos que tanto maior quanto mais mundial é a crise e quanto mais essas respostas devem ter em conta esta dimensão e serem portadoras de uma outra concepção de comunismo como associação dos livres associados do trabalho.
Prioridade às necessidades sociais... (a partir daqui apenas Husson)
O princípio fundamental de qualquer projeto de transformação social é minimamente a satisfação das necessidades sociais. Do ponto de vista capitalista, a saída da crise passa por uma recuperação da rentabilidade e, portanto, por uma pressão suplementar sobre os salários e o emprego. E os famosos déficits da proteção social ou do orçamento de Estado agravaram-se devido à deslocação da repartição da riqueza que é, também, o produto das contra-reformas fiscais. O resgate trilhionário do sistema financeiro está produzindo como resultado não uma melhora mínima nas condições de vida dos trabalhadores mas, ao contrário, uma crescente desigualdade social revestida de "política democrática".
A equação é portanto simples: não sairemos da crise por cima sem uma modificação significativa da repartição das receitas. Esta questão vem antes da do crescimento pautado pelo "ritmo Chinês". Claro que um crescimento mais sustentado seria favorável ao emprego e aos salários (falta ainda discutir o assunto de um ponto de vista ecológico) mas, de qualquer maneira, não se pode contar com esta variável se, ao mesmo tempo, a repartição das receitas se tornar cada vez mais desigual.
É preciso portanto esmagar as desigualdades: por um lado, pelo aumento da massa salarial e, por outro, pela reforma fiscal. A reposição do nível da parte correspondente aos salários deveria seguir uma regra dos três terços: um terço para os salários diretos, um terço para o salário socializado (a proteção social) e um terço para a criação de emprego através da redução do tempo de trabalho. Esta progressão far-se-ia em detrimento dos dividendos, que não têm nenhuma justificação económica nem utilidade social. O déficit orçamentário deveria ser progressivamente reduzido, não por um corte nas despesas, mas por uma refiscalização de todas as formas de receitas que, a pouco e pouco, foram dispensadas de impostos. A cobrança da dívida deveria ser atenuada por uma dedução excepcional equivalente a uma rejeição parcial da dívida.
... e portanto ao emprego
O desemprego e a precariedade já eram as perversões sociais mais graves deste sistema: a crise ainda as intensificou, tanto mais que os planos de austeridade vão poupar à custa das condições de existência dos mais desfavorecidos. Mesmo assim, não se deve considerar um hipotético crescimento como a via mais fácil. Produzamos mais para criar empregos? É inverter a questão. É preciso realizar aqui uma total mudança de perspectiva e pegar na criação de empregos úteis como ponto de partida.
Quer seja pela redução do tempo de trabalho no privado quer pela criação de lugares nas administrações, serviços públicos e colectividades; é preciso partir das necessidades e compreender que é o emprego que cria a riqueza (não necessariamente mercantil). E isto permite estabelecer uma ponte para as preocupações ambientais: a prioridade ao tempo livre e a criação de empregos úteis são dois elementos essenciais da luta contra as alterações climáticas.
A questão da repartição das receitas é pois um bom impulsionador em torno deste princípio simples: «nós não pagaremos a crise deles». Isto não tem nada a ver com «relançar a questão dos salários», mas com a defesa dos salários, do emprego e dos direitos sociais sobre o que não deveria haver discussão. Pode então avançar-se com a noção complementar de controlo: controlo sobre o que eles fazem com os seus lucros (pagar dividendos ou criar empregos); controlo sobre a utilização dos impostos (subvencionar os bancos ou financiar os serviços públicos). A cartada é passar da defesa ao controlo e só esta viragem pode permitir que o pôr em causa a propriedade privada dos meios de produção adquira uma audiência de massas.
O espartilho do euro
A segunda investida da crise vem abalar a Europa através da especulação sobre as dívidas públicas. A gestão desta crise é reveladora: a Europa neoliberal é um espartilho e o euro um instrumento de disciplina salarial e social. Esta constatação coloca a questão da possibilidade de uma experiência de transformação social iniciada num único país.
Não existe uma resposta clara. A saída do euro permitiria restabelecer uma margem de manobra graças à manipulação da taxa de câmbio, mas uma desvalorização teria um custo importante já que faria aumentar o peso da dívida e tornaria necessário um plano de austeridade, a fim de ajustar os salários a uma nova escala de preços internacionais. Por outro lado, é uma decisão extremamente arriscada, que arrisca desencadear a especulação contra a nova moeda. Resumindo, a saída do euro é uma ferramenta possível, mas não constitui por si própria uma saída progressista.
A verdadeira solução passaria pela criação dos instrumentos necessários para gerir a co-existência de diferentes economias no seio de uma moeda única. Uma primeira proposta, apresentada por Jacques Sapir, é a instauração de uma moeda «comum» e não «única»: existiria um euro convertível para as relações da zona com o resto do mundo e moedas reajustáveis para cada país ou grupo de países. Mas esta reforma não seria suficiente se a Europa não se dotasse de um verdadeiro orçamento alargado, fundado sobre uma tributação unificada do capital e se o BCE não estivesse autorizado a emitir euro-obrigações destinadas a financiar de forma co-responsável as dívidas públicas. Mas este tipo de solução pressupõe uma relação de forças e um grau de consenso que não existem hoje.
Por uma estratégia de alargamento europeu
A escolha parece pois ser entre uma aventura arriscada e uma harmonização utópica. A questão política central é portanto sair deste dilema. Para tentar responder-lhe, é preciso trabalhar a distinção entre os fins e os meios. O objetivo de uma política de transformação social é, mais uma vez, o de assegurar ao conjunto dos cidadãos uma vida decente em todas as suas dimensões (emprego, saúde, reforma, alojamento, etc.). O obstáculo imediato é a repartição das receitas, que é preciso modificar na fonte (entre lucros e salários) e corrigir ao nível fiscal. É preciso portanto tomar um conjunto de medidas que visem contrair as receitas financeiras e realizar uma reforma fiscal radical. Estes objetivos passam por pôr em causa os interesses sociais dominantes, os seus privilégios, e este confronto desenrola-se em primeiro lugar num âmbito nacional. Mas os trunfos dos dominadores e as medidas de retaliação possíveis ultrapassam esse âmbito nacional: invoca-se imediatamente a perda de competitividade, as fugas de capitais e a ruptura com as regras europeias.
A única estratégia possível deve portanto apoiar-se na legitimidade das soluções progressistas, que resulta do seu caráter eminentemente cooperativo. Todas as recomendações neoliberais remetem, em última instância, para a procura da competitividade: é preciso baixar os salários, reduzir os «encargos» para, no fim de contas, ganhar partes de mercado. Como o crescimento será fraco no período aberto pela crise na Europa, o único meio dos países criarem empregos será retirá-los aos países vizinhos, tanto mais que a maioria do comércio externo dos países europeus faz-se no interior da Europa. Isto é verdade mesmo para a Alemanha (primeiro ou segundo exportador mundial, juntamente com a China), que não pode contar apenas com os países emergentes para obter o seu crescimento e os seus empregos. As saídas neoliberais para a crise são, portanto, por natureza não cooperativas: só se pode ganhar contra os outros e isso é aliás o fundamento da crise da construção europeia.
Em contrapartida, as soluções progressistas são cooperativas: funcionam tanto melhor quanto se alargarem a um maior número de países. Se todos os países europeus reduzissem a duração do trabalho e tributassem as receitas do capital, esta coordenação permitiria eliminar as consequências às quais seria exposta esta mesma política levada a cabo num só país. A via a explorar é portanto a de uma estratégia de alargamento que um governo da esquerda radical poderia seguir:
1. tomam-se unilateralmente as «boas» medidas (por exemplo a taxação das transações financeiras);
2. fazem-se acompanhar de medidas de proteção (por exemplo um controle dos capitais);
3. assume-se o risco político de infringir as regras europeias;
4. propõe-se modificá-las, alargando as medidas tomadas à escala europeia;
5. não se exclui um braço de ferro e usa-se a ameaça da saída do euro.
Este esquema advém do fato de não podermos condicionar a aplicação de uma «boa» política à constituição de uma «boa» Europa. As medidas de retaliação de todos os tipos devem ser antecipadas por meio de medidas de proteção que, efetivamente, apelam ao arsenal protecionista. Mas não se trata de protecionismo no sentido habitual do termo, uma vez que este tipo de protecionismo protege uma experiência de transformação social e não os interesses dos capitalistas de um dado país face à concorrência dos outros. Trata-se, portanto, de um protecionismo de alargamento, cuja lógica é a de desaparecer a partir do momento em que as «boas» medidas se alargarem.
A ruptura com as regras europeias não se faz por uma questão de princípio, mas a partir de uma medida justa e legítima que corresponde aos interesses da maioria e que é proposta aos países vizinhos como caminho a seguir. Esta esperança de mudança permite então apoiar-se na mobilização social nos outros países e construir assim uma relação de forças que pode pesar sobre as instituições europeias. A experiência recente do plano de salvaguarda do euro demonstrou aliás que não era necessário alterar os tratados para desrespeitar várias das suas disposições.
A saída do euro deixa de ser, neste esquema, um pré-requisito. É, pelo contrário, uma arma a utilizar como «último recurso». Em primeiro lugar, a ruptura dever-se-ia fazer em dois pontos que permitiriam disponibilizar verdadeiras margens de manobra: nacionalização dos bancos e denúncia da dívida.
O projeto e a relação de forças
As justificações, tanto técnicas como políticas, de uma nacionalização do sistema bancário surgiram novamente com força: o plano de salvaguarda do euro é de fato um novo plano de salvaguarda dos bancos europeus, que detêm em grande parte a dívida grega e a de outros países ameaçados de especulação. Para fazer desaparecer todas essas dívidas emaranhadas, a melhor solução seria uma nacionalização integral, permitindo de uma vez por todas compensar, reescalonar ou saldar essas dívidas. As dívidas públicas, além do impacto mecânico sobre as receitas, correspondem no essencial à acumulação das ofertas fiscais às empresas e aos que têm rendimentos. A lógica apontaria para que fossem anuladas ou amplamente reestruturadas. Neste ponto, como no anterior, esbarra-se com uma outra dificuldade: essas medidas (nacionalização dos bancos e denúncia da dívida) poriam em causa os interesses dos não residentes e pressupõem uma ruptura com o capitalismo globalizado.
Um programa que visasse apenas regular o sistema à margem seria não só subdimensionado, mas também pouco mobilizador. Por outro lado, uma perspectiva radical arrisca-se a desencorajar perante a dimensão da tarefa. Trata-se de certo modo de determinar o grau óptimo de radicalidade. A dificuldade não está tanto em elaborar os dispositivos de ordem técnica: claro que é indispensável e é um trabalho muito avançado, mas nenhuma medida hábil pode permitir contornar o inevitável confronto entre interesses sociais contraditórios.
Sobre os bancos, o leque vai da nacionalização integral à regulação, passando pela constituição de um pólo financeiro público ou pela criação de uma regulamentação muito restritiva. Quanto à dívida pública, pode ser anulada, suspensa, renegociada, etc. A nacionalização integral dos bancos e a denúncia da dívida pública são medidas legítimas e economicamente viáveis, mas podem parecer fora de alcance devido à relação de forças actual. Situa-se aqui o verdadeiro debate: qual é, na escala do radicalismo, a posição do cursor que permite mobilizar melhor? Não cabe aos economistas decidir este debate e é por isso que, mais do que propor um conjunto de medidas, este artigo procurou colocar questões de método e sublinhar a necessidade, para uma verdadeira saída da crise, de três ingredientes indispensáveis:
1. uma modificação radical da repartição das receitas;
2. uma redução massiva do tempo de trabalho;
3. uma ruptura com a ordem mundial capitalista, a começar pela Europa que existe na realidade.
Não se pode encerrar o debate numa oposição entre antiliberais e anticapitalistas. Evidentemente que esta distinção tem um sentido, conforme o projeto seja de desembaraçar o capitalismo da finança ou de nos desembaraçarmos do capitalismo. Mas esta tensão não deveria impedir de fazermos um longo caminho juntos, enquanto se realiza este debate. O «programa comum» poderia basear-se agora na vontade de impor ao capitalismo outras regras de funcionamento. É esta a linha que separa a esquerda radical de ruptura e o social liberalismo de acompanhamento. Se se avançar por esta via, ver-se-á em seguida se isso leva a pôr em causa a propriedade privada a partir do controlo que se conseguir exercer sobre a repartição da riqueza.
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