As favelas são o sintoma da globalização capitalista. Elas não fazem parte de um projeto social que deu errado ou um acidente no processo de distribuição de renda e espaço. Pelo contrário, as favelas são o resultado necessário diante do processo de concentração e centralização da riqueza. Mais de 70% da população urbana no Terceiro Mundo é favelada hoje. Não devemos ter medo de propor que a favela é hoje o “campo de concentração” por excelência da globalização capitalista e o Rio de Janeiro um epicentro tanto de favelas como das políticas “públicas” que incentivam o apartheid social generalizado.
A favela, ao mesmo tempo dentro e fora do ordenamento espacial da lei, persiste no cotidiano com um excesso de controle por parte do Estado para assegurar principalmente suas bordas, para que os conflitos sociais que possibilitaram a ascensão das favelas não se dissolvam pelo tecido social fazendo com que, ao mesmo tempo, exista um enclausuramento dos favelados. Essa violência aberta ocasiona diversas mortes aleatórias e irresolvidas. No rio de Janeiro em especial, a política pública de segurança – a ser seguida pelo governo Dilma – tem a execução sumária como categoria política central.
No Rio diferentes formas de criminalização da pobreza e controle sobre as favelas são colocados em prática, como a construção de muros que cerceiam a favela e a utilização de aparatos técnicos de vigilância como aeronave não tripulada da Polícia Federal que podem ser comandados por um piloto em terra, que fica numa base a até mil quilômetros de distância, ou voar em missões pré-programadas. Decolagem e pouso são automáticos. Cada aeronave é dotada de aparelhos que permitem captar imagens em alta resolução mesmo quando está a 10 mil metros de altitude (10 mil metros!).
Entretanto, a forma mais explícita de criminalização da pobreza é a entrada massiva da polícia e do exército nas favelas que, praticamente em todas as operações, beneficia apenas interesses escusos - como das milícias – sendo uma ofensiva tática militar contra civis que acabam morrendo aleatoriamente aos montes. Na atual ação civil-militar no grande Complexo do Alemão, por exemplo, fica claro que o objetivo não é acabar com o tráfico, mas reconfigurar sua disposição geopolítica em favor das milícias. Deixar um espaço vazio para a entrada das milícias e do Terceiro Comando que, como todos sabem, tem acordos com a política de segurança. Esse é objetivo real da operação em curso.
A questão é que o modelo do tráfico que se firmou historicamente no Rio está em declínio. Na realidade, com a expansão das milícias o tráfico territorializado tornou-se obsoleto. É muito pesado e caro manter um pequeno exército do tráfico considerando que nas milícias são os próprios policiais, seu armamento, disciplina e treinamento que estão em jogo. As dinâmicas políticas e econômicas predominantes hoje também tornam difíceis qualquer competição com as milícias que não se reduzem a um nicho exclusivo de mercado, como do comércio de drogas, e se expandem para uma diversidade de atividades.
Já a mídia, na forma com que retrata essa barbárie, mostra ao povo apenas idiotisse generalizada. Tudo se passa como se fosse uma luta do bem contra o mal e que os “bandidos” são os inimigos reais que a democracia deveria lutar. Desconsideram as milícias, a própria polícia, o Estado, a criminalização, etc, etc. É a banalização do fascismo social. O cerco ao Complexo do Alemão não deve nos enganar: como disse João Cláudio Alves, “o que está por trás desses conflitos urbanos é uma reconfiguração da geopolítica do crime na cidade... Nesse rearranjo quem vai se sobressair são, sobretudo, as milícias, o Terceiro Comando – que vem crescendo junto e operando com as milícias – e a política de segurança do Estado calcada nas UPPs – que não alteraram a relação com o tráfico de drogas”. O processo de triagem já começou e, para continuar funcionando, precisa da crescente máquina do Estado. É necessário ir contra os “inimigos internos” que são os elementos excedentes da sociedade em que a lei policial pode utilizar de forma discriminatória o uso e a funcionalidade de suas ações repressoras. Essa ação é um teste para o Estado brasileiro depois do treinamento imperialista de tropas no Haiti. Na realidade, essa ação da política/Exército no grande Complexo do Alemão é um acting out, assim como a entrada dos EUA no Afeganistão: porque o enfrentamento em lugares pobres que são mais fáceis e que não resolvem o seriamente o pepino? Porque não entrar na Baía da Guanabara aonde entram as armas que se destinam, em parte, ao tráfico? Seria um sinal de impotência para lidar de frente com as difíceis questões da violência social ou uma política de segurança fascista contra os pobres para restabelecer o controle sobre áreas estratégicas para a cidade da Copa e das Olimpíadas? Ou ambos?
E agora? Como combinar a necessidade urgente de formas mínimas de auto-organização nas favelas diante desta criminalização generalizada da pobreza que, além dos movimentos político-militares, também aterrorizam os pobres para que não tenham nenhuma possibilidade de reclamar contra sua penúria social?
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