sexta-feira, 13 de agosto de 2010

A paixão da voz (como um objeto que é motor do pensamento)

Ao escutar uma bela voz na tarde desta sexta-feira sentei rapidamente e resolvi escrever sobre a voz em geral. São sínteses. Melhor, é um mini-texto-carta lacaniano resultado da famosa mutilação operada pelo "objeto a voz".

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Lacan escolhe o nó borrromeano como a configuração que articula os três registros da experiência humana no psiquismo: o real, o simbólico e o imaginário. Desse modo, na superposição da junção borromeana, o real fica sobre o simbólico, que fica sobre o imaginário, que tem, ele próprio, ascendência sobre o real. Os três registros se articulam de forma que há um espaço, um vazio no centro, um lugar de interseção, onde Lacan coloca o objeto a. Logo, como objeto a, a voz está entre as três dimensões do nó que surgem entrelaçadas, mas que podem ser pensadas, teoricamente, em separado.

A voz que chega aos ouvidos, fundida ao enunciado vocal sonoro, é apenas uma dimensão resultante de toda uma complexa trama imaginária (submetida ao simbólico) na qual o som veste a voz como objeto a, dando-lhe alguma consistência. Embora o real escape ao simbólico, o imaginário tem ascendência sobre ele, por isso, jamais o real se apresenta ao sujeito despido de alguma figuração. Como todo objeto a, a voz porta um excedente humano de força, de vigor, a rebeldia da energia vital: a libido, por onde se expressa essa exigência de um a “mais de gozar”. A voz é um sopro de vida que impulsiona, puxa as nossas enunciações, pois, como objeto a, nos provoca pela libido a tecer vigorosamente sobre o furo do real. Por isso, no seu cunho de objeto a, a voz está para além do tempo, onde habita um não simbolizável e um não imaginável e tende a mostrar-se como objeto ambíguo, fonte da angústia e causa do desejo. Tanto a voz como o olhar, ambos, não são visíveis ao sujeito em seu campo perceptivo.

Jacques-Alain Miller comenta, em seu ensaio intitulado “Jacques Lacan e a voz”, que o ato de cantar é uma forma de fazer calar o que tem o valor de voz enquanto objeto pequeno a. A tese de Lacan é de que a voz não pertence ao registro sonoro, nesse sentido, ela é afônica, por isso, ela poderá encarnar o furo, ela então, ordenar-se-á ao sujeito do significante, ou melhor, ao sujeito do inconsciente a partir do lugar vazio da castração da qual a voz exercerá sua função de objeto não-substancial.


Não é a toa que o grito, para Lacan, é a ponte para entender o universal de toda linguagem. É o que, do discurso, desemboca no ponto para além da significação.


Mas a voz também tem uma implicação no nível do desejo. Lacan, em seu seminário 13, O objeto da psicanálise nos diz que “Se o desejo do sujeito se funda no desejo do Outro, este desejo como tal se manifesta a nível da voz. A voz não é somente o objeto causal, mas o instrumento de onde se manifesta o desejo do Outro”. A voz é a borda entre a angústia e o desejo. Não é fácil lidar com a voz. A voz se revela não apenas pelo fato de desaparecer no ar, sem deixar pistas. Como escreve o esloveno Mladen Dolar, é precisamente a voz que mantém corpos e línguas unidos. Entretanto, a voz não pertence a nenhum dos dois. Essa é a propriedade que divide com todos os objetos de pulsão: encontra-se situados num âmbito que excede o corpo, prolongam o corpo como uma excrescência. A voz é localizada como intervalo entre corpo e linguagem, entre sujeito e Outro, entre som e palavra, escapando a qualquer atribuição de papel unívoca. A risada é diferente de outros fenômenos porque parece exceder a linguagem tanto na direção pré-simbólica quanto mais além do simbólico. Já a música é uma tentativa de domesticar este objeto, transformá-lo em prazer estético, de erguer uma barreira contra o que dele é insuportável.

Assim a voz é um instrumento vivo capaz de mobilizar os sorrisos da escuta. A dificuldade continua a mesma: ouvir outra coisa além do simples significado das palavras que estão sendo pronunciadas.

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