segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A morte da narração ou a não-narração da morte? Reflexões benjaminianas sobre o declínio da experiência narrativa no capitalismo histórico.

A morte sem narração perde-se no tempo. Mas como narrar algo hoje quando a experiência narrativa vem perdendo espaço? Walter Benjamin já notou esse processo da seguinte forma:

“Torna-se cada vez mais raro o encontro com pessoas que sabem narrar alguma coisa direito. É cada vez mais freqüente espalhar-se em volta o embaraço quando se anuncia o desejo de ouvir uma história. É como se uma faculdade, que nos parecia inalienável, a mais garantida entre as coisas seguras, nos fosse retirada. Ou seja: a de trocar experiências. Uma causa deste fenômeno é evidente: a experiência caiu na cotação. E a impressão é a de que prosseguirá na queda interminável”.


A quem ouve o narrador mergulha no que escuta em sua própria experiência e, mais tarde, pode transmiti-la de bom grado. Benjamin nota que esta capacidade de audição também estaria sendo destruída, porque ela depende de um relaxamento psíquico propiciado por atividades naturais, como o fiar e o tecer, que estariam desaparecendo. Com a perda destas atividades, desaparece a “comunidade dos que escutam”, e a narrativa sofre golpe de morte. Segundo as palavras de Walter Benjamin,


“Narrar histórias é sempre a arte de as continuar contando e esta se perde quando as histórias já não são mais retidas. Perde-se porque já não se tece e fia enquanto elas são escutadas. Quanto mais esquecido de si mesmo está quem escuta, tanto mais fundo se grava nele a coisa escutada. No momento em que o ritmo do trabalho o capturou, ele escuta as histórias de tal maneira que o dom de narrar lhe advém espontaneamente. Assim, portanto, está constituída a rede em que se assenta o dom de narrar. Hoje em dia ela se desfaz em todas as extremidades, depois de ter sido atada há milênios no âmbito das mais antigas formas de trabalho artesanal”.

Ocorre segundo Benjamin, “uma espécie de concorrência histórica entre as várias formas de comunicação”. Nesta concorrência, a narrativa leva a pior, perdendo para o romance e a informação. E se a existência da narrativa está relacionada com o aconselhamento, dependendo de sua conservação na memória do ouvinte, sua substituição pelo romance e pela informação coincide com o desaparecimento dessas faculdades.

Por narração Benjamin entende uma arte e também uma faculdade, ambas em vias de desaparecimento. Isso quer dizer, em outras palavras, que desaparece no mundo atual a “faculdade de intercambiar experiências”. Tanto é que, na figura de Nicolai Leskov, Benjamin vê o último representante de uma arte em particular, a narração. Benjamin considera Leskov um extemporâneo, alguém que se encontra distante de seu tempo. Ao apresentá-lo como narrador, caracteriza-o como produto de um outro tempo que não o seu. Sua narração comporta elementos que não se apresentam ao seu cotidiano. A experiência que adensa a narração já não se encontra por isso mesmo disponível na época moderna. Isso explica porque o filósofo afirma que o narrador “não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva”.

A matéria prima da narração é a própria vida humana, a experiência (Erfahrung), aquela que anteriormente foi associada à sabedoria, como sendo “inimiga da pressa e do imediatismo” próprios de uma vivência. A lentidão é, naturalmente, matéria da experiência, cujo ritmo apressado da modernidade subtraiu o indivíduo do universo da tradição. Se narrar é a faculdade de intercambiar experiências, é também a faculdade de que dispõem aqueles que sabem trabalhar com o tempo; aqui, uma outra faceta da narração, que obedece, por sua vez, ao modo de produção artesanal, qualitativamente distinto do modo de produção capitalista, ou seja, industrial. Na prática narrativa interagem, segundo Benjamin, a voz, a mão e a alma. É a partir da convergência destes termos que a narrativa acabou se desenvolvendo em torno das mais “antigas formas de trabalho manual”.

“A narrativa floresceu num meio de artesão, (...) é ela própria uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso”.

Para Benjamin, “na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito”. O saber de que dispõe o narrador não é meramente técnico e nem tampouco um saber de si auto-referencial. Sua sabedoria implica no conhecimento histórico de formação de si em meio a um coletivo, do conhecimento das práticas, dos ritos e valores compartilhados e transmitidos pela tradição aos indivíduos. Para Jeanne Marie Gagnebin, é justamente nesse contexto que a experiência, a Erfahrung, pode surgir, pois essa é a experiência que não reenvia o indivíduo à sua vida como um só, singular, solitário, mas como ser em meio a outros. “A história do si vai, [assim], pouco a pouco, preencher o papel deixado vago pela história comum...”. É exatamente sobre este sentido de comunitário que se sustentam, inclusive, a noção de trabalho, entre outras práticas sociais.

Outro ponto crucial é a capacidade do narrador de dar conselhos. “o narrador é [sempre] um homem que sabe dar conselhos” escreve Benjamin. Em termos quase lacanianos, “aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada”. Ao narrador cabe deixar a história em aberto, intentando com isso de multiplicar as possibilidades de reconstrução do que se encontra perdido, esquecido ou destruído. Nesta perspectiva, o desejo comum projeta o futuro no presente obrigando a remontar o passado:

“Na vida, quanto mais cedo se formula um desejo, tanto maiores são as suas perspectivas de realização. Quanto mais um desejo remonta no tempo, tanto mais se pode esperar a sua concretização. Mas aquilo que reporta ao tempo passado é a experiência, é o que o preenche e articula. Por isso, o desejo realizado é a coroa destinada à experiência”

Quem formula e concretiza um desejo vive um “tempo que realiza”, antítese do “tempo infernal” experimentado por aqueles que, como o jogador e o trabalhador assalariado, se dobram sob um eterno presente, pois têm que “recomeçar sempre de novo”, não lhes sendo dado “realizar nada daquilo que começaram”. A marca do narrador firma-se no modo como este traduz a sua experiência, a tradição e os seus conselhos em sua narrativa, de forma única e peculiar.

“O narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poder deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida”.

Em Benjamin, tempo e linguagem se co-pertencem. A narração, ao restaurar o passado, atualiza o presente, presentifica a ausência do tempo. Sem narração a morte perde-se no tempo. Quando a linguagem sobre a morte também morre, a própria “condição de possibilidade” da experiência se mortifica. A experiência da morte se iguala assim a “vivência” da vida no capitalismo contemporâneo, sem paixão a uma causa que a cada morte ressuscita para dar sentido à vida comum que pode ser narrada. Nesta era de “banalidade da morte” a própria vida encontra um caminho limite de ruptura no campo do Ser. O encontro com esse limite ainda é um tema a desdobrar em outro texto cotidiano.

Um comentário:

Tiago Costella disse...

Em análise, se usa todo o material falado para buscar compreender aquilo que escapa a fala. Não é por nada que o declínio da narração como Forma de comunicação da experiência, acompanhe inversamente o crescimento das várias “psicologias da vida cotidiana” – o sucateamento destas, porém, é outra história. A primeira barbárie subjetiva a nível individual, que Benjamin salienta, paradoxalmente é aquela a que sequer pode se experienciar, pois é justamente a perda da possibilidade da experiência em si. Vendo isso, a grande pergunta é, como inverter o fluxo que nos direciona para a destruição daquilo que temos de mais humano – o germe de nossa comunicação, a Forma que possibilita “trocar”. Em uma era que tanto se fala mas tão pouco se tem a dizer, da inundação da informação, sábio é aquele que apreende a escutar, pois o assassinato desta forma antiga começa pelo esquecimento do valor do narrador, pelo esquecimento de se escutar.
Excelente tópico Fernando, sempre carregado de abertura é falar sobre experiencia, análises muito importantes, principalmente hoje, para conseguirmos vislumbrar positividades.
Contudo, sinto algo em sua fala de muito preso... Existe uma frase de um filme muito bonito, que é muito interessante –“Às vezes, há tanta beleza,no mundo. Que quase que não consigo suportar. E meu coração parece que vai desmoronar”.
Como seu texto mesmo disse, tenho a impressão que as vezes temos tanto a dizer, que parece que mesmo abrindo a boca ao máximo não conseguiríamos dizer um décimo do que esta preso em nós, é como se nos faltasse uma faculdade, perdida a muito tempo... Sentir a materialidade da teoria na própria carne é a primeira tarefa do materialista histórico.
Te saúdo tempos melhores meu amigo!