sexta-feira, 13 de agosto de 2010

História, revolução e amor

Essas notas fazem parte de devaneios que estão saltitando mas também complementam algumas reflexões anteriores, principalmente sobre história, revolução e amor.


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A cerca de duas décadas atrás Francis Fukuyama lançou a tese do “fim da história”. De certo modo ele está correto: o capitalismo global é o fim da história. Na medida em que o oposto da história é a natureza, o “fim da história” significa que o próprio processo social é cada vez mais “naturalizado”, vivenciado como uma forma de destino, uma força cega e sem controle. O capitalismo vem se universalizando de tal forma que sua aceitação está o tornando invencível e indestrutível, Sem dúvida o que está em jogo aqui é o fim da uma concepção de história, agora baseada num tempo desorientado.

Zizek está certo com a pergunta: não estamos hoje todos divididos entre a lembrança do passado histórico e o presente pós-histórico que não somos capazes de inserir na mesma narrativa com o passado, de modo que o presente é vivenciando como uma confusa sucessão de fragmentos que se evaporam rapidamente em nossa memória? Em suma, o problema de nossa era não é que não conseguimos nos lembrar do passado, de nossa própria história, mas sim que não conseguimos nos recordar do próprio presente – não conseguimos historitizá-lo – narrá-lo apropriadamente, ou seja, adquirir um mapeamento cognitivo adequado com relação a ele. Não é a toda que, do ponto de vista da esquerda, estamos experimentando não é apenas um déficit de ação ou a ausência de meios e da organização necessário à luta. Não sabemos como agir contra o capitalismo e estamos penando para redescobrir como pensar contra ele.

Em parte isso se dá porque nossa vida cotidiana no capitalismo tardio envolve uma rejeição sem precedentes da experiência do outro com o qual se aprende sobre os sintomas da história. Numa memorável interpretação das teses “Sobre o conceito de história” de Walter Benjamin, Eric Santner desenvolve a noção benjaminiana de que uma intervenção revolucionária presente repete/redime as tentativas fracassadas no passado. Os “sintomas” – traços do passado que são “redimidos” pela intervenção revolucionária – “não são exatamente feitos esquecidos, mas inações, tentativas fracassadas de suspender a força do tecido social que inibe gestos de solidariedade em relações aos ‘outros’ de uma dada sociedade”.

“Sintomas marcam não só tentativas revolucionárias fracassadas, mas, mais modestamente, respostas não-dadas a chamados para a acao ou mesmo por empatia em relacao àqueles cujo sofrimento de certo modo faz parte de nossa forma de vida. Eles guardam o lugar de algo que está lá, que insiste em nossa vida, mesmo que não tenha atingido consistência ontológica completa. Sintomas são, portanto, em certo sentido, os arquivos virtuais de vazios – ou, melhor dizendo, defesas contra vazis – que persistem na experiência histórica”.

É nesta “defesa contra vazis” que encontramos a singularidade universal do sujeito. A universalidade emerge onde a ordem “normal” que liga a cadeia de particulares é rompida. Por isso que não há, por exemplo, revolução “normal”. Toda explosão revolucionária é fundada numa exceção, num curto-circuito de “tarde demais” e “cedo demais”. Existe, simultaneamente, falta e excesso. A revolução, assim como o amor, nunca tem condições objetivas perfeitas para acontecer.

Aqui devemos entender as ligações entre o capitalismo contemporâneo e as possibilidades de amar. Hoje a busca patológica pela normalidade não é contrária ao culto pela diferença colorida da tolerância multicultural pós-moderna. Ambas recusam a possibilidade do Ato amoroso que reconfigura as coordenadas simbólicas. É uma postura que busca amor e segurança ao mesmo tempo ou, nos termos de Badiou, um “amor securitário”. Ambas são as posições ideológicas par excellence da pós-modernidade ideologicamente “pós-ideológica”. Ambas têm medo de serem pegas sob uma identificação com o Outro.

O desejo de amar não é sustentado por pressões superegóicas. Por isso que entre sexo e amor não existe metalinguagem (enquanto o sexo é baseado em pressões do supereu obviamente não existe amor!). O amor é o desejo de ser Um – e claro que o amor ignora a impossibilidade dessa empreitada.


Fico me perguntando: não é evidente que há alvo horrivelmente violento ao mostrarmos nossa paixão por outro ser humano – seja ele homem ou mulher? A paixão fere seu objeto, mutila-o. Até mesmo se seu objeto alegremente concorda em ocupar esse lugar, ele ou ela nunca podem fazê-lo sem um momento de espanto ou surpresa. A essa “imperfeição” constitutiva da paixão Lacan deu o nome de objet petit a: o tique “patológico” que torna alguém singular - o "objeto perdido da história de cada sujeito". No amor autêntico, eu amo o outro não apenas por estar vivo, mas por causa do excesso perturbador de vida nele ou nela.

Comumente existem algumas opções diante de um convite amoroso: 1) há os que recusam convites porque, “de qualquer forma”, já sabem que não vai ser o grande amor; 2) Há os que não querem perder tempo com conhecidos, só “com grandes amigos mesmo”; 3) Há os que recusam convites porque, se for o grande amor, vai ser o fim de seus hábitos solitários consolidados (não está disposto a aprender a amar); 4) há os que recusam convites porque, se o grande amor acontecer, vão ter que parar de se preparar para o grande amor futuro. Essas quatro posturas têm algo em comum: excluem a materialização de um amor impossível. Esse Ato Impossível não é irracional. Longe disso, ele cria sua própria (e nova) racionalidade. Temos que correr o risco, um passo no vazio, sem um grande Outro para aprovar. Esse Ato impossível é o que acontece em qualquer processo revolucionário e amoroso autêntico.


Há uma vergonha em todo amor, uma "desadaptação", uma quebra na harmonia do conjunto. As relações entre os que se amam seguem regras próprias que atemorizam os que estão à volta. Não é a toa que o medo de amar é o medo de construir uma história conjunta no que se há de traumático (e não harmonioso a priori) entre os amantes. O amor, tanto quanto o desejo, começa da falta. Mas como sentir amor hoje quando nos manifestamos como pessoas sem faltas?

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