As relações de gênero não podem ser entendidas como algo isolado da sociedade. Numa sociedade dividida em classes é evidente que nenhuma relação está desvinculada do contexto da luta de classes – Christiane Campos, companheira do MST.
I –
A economia feminista é um campo das ciências econômicas que compreende o estudo do pensamento econômico a partir da invisibilidade das mulheres no pensamento neoclássico e marxista, bem como a resignificação do trabalho de forma mais ampla, considerando o mercado informal, o trabalho doméstico, a divisão sexual do trabalho na família e na empresa e fundamentalmente agregando a esfera reprodutiva como essencial a existência humana. Em outras palavras, a economia feminista busca ampliar o espectro da emancipação humana ao trazer a tona as complexas relações entre classe e gênero. Marx, aos 26 anos, nos Manuscritos econômicos-filosóficos escreveu que “o relacionamento direto, natural e necessário de pessoa a pessoa é a relação do homem com a mulher...Portanto, desse relacionamento se pode avaliar o nível de desenvolvimento do homem...Nesse relacionamento também se revela a extensão em que a necessidade do homem se tornou uma necessidade humana; portanto, a outra pessoa tornou-se para ele uma necessidade – a extensão em que, em sua existência individual, ele é ao mesmo tempo um ser social”.
A perspectiva das desigualdades entre homens e mulheres na organização do trabalho e nas esferas produtiva e reprodutiva aproxima a economia feminista do marxismo, a partir da perspectiva da opressão como fator estrutural. A economia marxista reconstrói a idéia dos indivíduos homo economicus, afirmando que eles não são iguais e que faz grande diferença a condição de cada um, se um deles é proprietário do capital ou proprietário da força de trabalho. Marx desvela as relações sociais de produção do ponto de vista dos mecanismos internos de funcionamento do modo de produção capitalista. Nesse sentido o trabalho doméstico ficou fora de suas análises do sistema do capital, por considerá-lo improdutivo, posto que o mesmo não era remunerado e não fazia parte do fluxo circular do valor de troca do capital. Parte daí a crítica da economia feminista ao marxismo por suas categorias como proletariado, exploração, produção e reprodução como se estas fossem isentas em relação ao gênero, além de uma suposta convergência natural de interesses econômicos entre homens e mulheres.
Entretanto a perspectiva marxista não é restrita ao campo da economia, tal afirmação seria reducionismo. Marx pretendia uma abordagem totalizante, incorporando processos não econômicos como a política, a cultura e a intervenção, transformação social. E daí que advém o grande legado marxista com importantes contribuições aos estudos da economia feminista como a historicidade e o recorte de classe. A incorporação da perspectiva de gênero na análise econômica marxista e na construção de sujeitos políticos da transformação social pode ser feita em consonância com os fundamentos e metodologia dessa teoria. O marxismo se vê como uma ciência vinculada à ação política de classe, a práxis, para tanto é necessário além do incorporar a perspectiva de gênero, contemplando além da luta pela emancipação dos trabalhadores a luta pela emancipação das mulheres trabalhadoras. A economia feminista baseia-se nos métodos e fundamentos marxistas, agregando para além das análises econômicas a ação política, o historicismo e a perspectiva filosófica dialética.
II –
A entrada em massa das mulheres na força de trabalho no século XX, e mais intensivamente a partir da década de 1970, não resultou em sua emancipação. Ao contrário, vemos uma tendência generalizada para toda força de trabalho feminina a imposição de salários mais baixos, trabalhos precários normalmente voltados a serviços. Em todos os países da OECD (Organization for Economic Cooperation and Development), os trabalhos de baixos salários (part-time, desregulamentados e precarizados) são realizados por mulheres, minorias e imigrantes. Isso está reduzindo o nível salarial geral em todas as economias. Nos Estados Unidos, a porcentagem de mulheres na força de trabalho saltou de 36,5 por cento em 1960 para 54 por cento em 1985; o principal aumento ocorreu com mulheres casadas entre 25 e 34 anos, cuja participação passou de 28 por cento para 65 por cento. Desde 1999, mais da metade da força de trabalho na Inglaterra é feminina.
Na divisão sexual do trabalho, operada pelo capital dentro do espaço fabril geralmente as atividades de concepção ou aquelas baseadas em capital intensivo são preenchidas pelo trabalho masculino, enquanto aquelas dotadas de menor qualificação, mais elementares e muitas vezes fundadas em trabalho intensivo, são destinadas as mulheres.
Por mais que ainda existam diferenças salariais enormes entre homens e mulheres, progressivamente estamos vendo uma diminuição na diferença de salários entre homens e mulheres. Entretanto, isso não é razão de festa. A origem dessa mudança foi a queda no salário dos homens assim como, desde 1970, estamos vendo na totalidade da classe trabalhadora uma estagnação salarial.
III -
Existem diversas correntes feministas hoje. Elas vão desde as mais conservadoras que chegam a apoiar a guerra contra o Iraque nos EUA às radicais socialistas vistas no MST, por exemplo. No meio existem as feministas pós-modernas (como Judith Butler, por exemplo) que se apóiam na idéia de uma democracia de gênero. Ao afirmarem a primazia da democracia-liberal na luta feminista não buscam nada mais que a igualdade formal já estabelecida. Entretanto, dadas as condições estabelecidas de hierarquias e dominação, a causa das mulheres não pode ser atingida sem afirmar a igualdade substantiva que desafia diretamente a autoridade do capital, da família nuclear.
A principal vertente do marxismo-feminismo é sob o questionamento sobre a engrenagem do capital a partir da perspectiva feminista em relação aos problemas econômicos enfrentados atualmente com a crise do sistema do capital. István Mészáros, por exemplo, denominou o feminismo como o “calcanhar de Aquiles do capital”.
Desde o final dos anos 1960, o crescimento requerido pelo capital se mantém sob uma disjunção radical com o desenvolvimento aumentando nos níveis de concentração de renda, políticas sociais que incentivam o desemprego crônico, financeirização e transnacionalização econômica, perda progressiva de direitos trabalhistas e a destruição do ecossistema. É o esgotamento da capacidade de expansão ilimitada do capital que encontra seus limites absolutos. Esgotada a fase de ascensão do sistema do capital, entramos numa fase de crise estrutural irreversível numa forma de reprodução social essencialmente destrutivo.
A partir dessa condição de crise estrutural, como assinala Mészáros, “na causa da emancipação das mulheres, podem-se avaliar as implicações de longo alcance do questionamento direto à autoridade do capital, quando se tem em mente o fato de não se conceber que o sistema de valor estabelecido prevalece nas condições do presente, e menos ainda se pudesse ser transmitido (e internalizado) por sucessivas gerações de indivíduos, sem o envolvimento ativo da família nuclear hierárquica, articulada em plena sintonia com o princípio antagônico que estrutura o sistema do capital”. Por mais que diversas derrotas feministas estejam ocorrendo, a causa da emancipação feminina não é integrável ao sistema do capital.
Isso impõe novas formas de organização que não se mantenham negativas a ordem social, isso é, que apenas neguem a dominação masculina. O desafio é muito maior. A negativa é a apenas a primeira parte desse projeto. Ela envolve, além dessa negativa, uma afirmação primordial: a igualdade substantiva entre homens e mulheres, uma demanda para além do capital. Como estão o(a)s feministas em relação a construção dessa única alternativa viável – socialista e feminista? Parece que, como diria Eduardo Galeano, "estamos começando a sentir um movimento. Não sabemos onde vamos, mas algo novo está nascendo".
Um comentário:
Calcanhar de Aquiles do Capital é interessante. Intrigante na verdade. E mesmo pensando numa correlação superficial parece cair como uma luva.
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