segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

DE HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE A DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO, E VOLTA

Texto do Sr. Slavoj Zizek



História e consciência de classe (1923), de Georg Lukács, é um dos poucos verdadeiros eventos na história do marxismo. Hoje, nossa experiência do livro é apenas como de uma estranha lembrança fornecida por uma época já distante – para nós, é até mesmo difícil imaginar o impacto verdadeiramente traumático que seu aparecimento teve nas posteriores gerações de marxistas. O próprio Lukács, na sua fase termidoriana, i. e., do começo dos anos trinta em diante, tentou desesperadamente se afastar dele, tratando-o como um documento com mero interesse histórico. Aceitou que fosse reeditado apenas em 1967, fazendo-o acompanhar de um
novo e longo Prefácio autocrítico. O livro teve, até que essa reedição “oficial”
aparecesse, uma espécie de existência fantasmagórica e subterrânea como uma entidade “não morta”, que circulava em edições piratas entre estudantes alemães da década de sessenta, estando também disponível em poucas e raras traduções (como a legendária edição francesa de 1959). No meu próprio país, a agora defunta Iugoslávia, referir-se a História e consciência de classe servia como um signe de reconnaissance ritualístico para saber se se fazia parte do círculo marxista crítico reunido em torno da revista Praxis. Seu ataque à noção de Engels de “dialética da natureza” foi crucial para a rejeição crítica da crença que a proposição central do “materialismo dialético” seria a teoria do conhecimento “reflexiva”. O impacto
do livro esteve longe de se restringir a círculos marxistas: mesmo Heidegger foi claramente afetado por História e consciência de classe, havendo alguns sinais inconfundíveis disso em O ser e o tempo. Até no último parágrafo, o autor, numa clara reação à crítica de Lukács à “reificação”, pergunta: “há muito tempo sabemos que existe o perigo da ‘reificação da consciência’. Mas o que significa reificação [verdinglichung]? Qual é sua origem?... A ‘diferença’entre ‘consciência’ e ‘coisa’ é o bastante para haver um desenvolvimento pleno do problema ontológico?”1
Como, então, História e consciência de classe passou a ter um status de livro proibido quase-mítico, cujo impacto foi talvez comparável apenas ao de Pour Marx, escrito pelo posterior grande antípoda antihegeliano de Lukács, Louis Althusser?2 A resposta que primeiro vem à mente é evidentemente que estamos discutindo o texto fundador de todo o marxismo ocidental de inspiração hegeliana. Nessa linha, o livro combina uma postura revolucionária engajada com temas que foram mais tarde
desenvolvidos pelas diferentes linhas da chamada Teoria Crítica chegando até os Estudos Culturais de nossos dias (por exemplo, a noção de que seriam componentes estruturais de toda a vida social o “fetichismo da mercadoria”, a “reificação” e a “razão instrumental” etc). No entanto, olhando mais de perto, as coisas aparecem numa luz ligeiramente diferente: há uma quebra radical entre História e consciência de classe (mais precisamente, entre os trabalhos de Lukács escritos em torno de 1915 a 1930, inclusive seu Lenin de 1925, e uma série de outros textos curtos desse período publicados nos anos sessenta sob a rubrica Ética e política), e a posterior tradição do marxismo ocidental. O paradoxo (ao menos, para nossa sensibilidade “póspolítica” ocidental) é que História e consciência de classe é um livro filosoficamente muito sofisticado, comparável às maiores realizações do
pensamento não-marxista do período, ao mesmo tempo que também está inteiramente envolvido nas lutas políticas de seu tempo, refletindo a radical experiência política leninista do autor (entre outras coisas, Lukács foi comissário da cultura na curta experiência do governo comunista da Hungria de Bela Kun em 1919). O paradoxo é que, em comparação com o marxismo ocidental “padrão” da Escola de Frankfurt, História e consciência de classe é ao mesmo tempo muito mais engajado politicamente como filosoficamente é muito mais marcadamente hegeliano-especulativo (veja, por exemplo, a noção do proletariado como sujeito e objeto da história, idéia
com a qual os membros da Escola de Frankfurt nunca sentiram-se confortáveis).

Se é que houve algum dia um filósofo do leninismo e do Partido Leninista, o Lukács marxista dos primeiros dias foi quem avançou mais longe nessa direção, chegando a defender os elementos “não democráticos” do primeiro ano do regime soviético contra a famosa crítica de Rosa Luxemburgo. O crítico acusou a revolucionária de “fetichizar” a democracia formal, ao invés de tratá-la como uma das possíveis estratégias a ser utilizadas ou rejeitadas a fim de fazer avançar a situação revolucionária concreta.Atualmente, aquilo que mais se deve evitar é precisamente esquecer o aspecto político do livro, o que corresponderia a reduzir Lukács a um
respeitável crítico cultural, que nos adverte sobre a “reificação” e a “razão
instrumental”, motivos que já foram há um bom tempo apropriados até mesmo pelos críticos conservadores da “sociedade do consumo”.

Como texto fundador do marxismo ocidental, História e consciência de classe é uma exceção que, entretanto, mais uma vez, confirma a idéia de Schelling de que “o início é a negação daquilo que se inicia com ele”. No que se baseia esse status excepcional? Em meados dos anos vinte, aquilo que Alain Badiou chama de “evento de 1917” começou a exaurir seu potencial revolucionário, ao mesmo tempo que o processo tomava uma viragem termidoriana. Com a exaustão da “sequência revolucionária de
1917” (Badiou), já não era mais possível um engajamento teórico-político
direto, como o que aparece em História e consciência de classe de Lukács.
O movimento socialista definitivamente rachou entre o reformismo parlamentar
social-democrata e a nova ortodoxia stalinista, enquanto o marxismo ocidental, que se absteve de apoiar abertamente qualquer um dos dois pólos, abandonou o envolvimento político direto e tornou-se uma parte da máquina acadêmica existente, estabelecendo, a partir daí, uma tradição que vai da Escola de Frankfurt até os atuais Estudos Culturais. Aí está a principal diferença que separa essa tradição do Lukács da década de vinte. Por outro lado, a filosofia soviética foi gradualmente assumindo a forma de “materialismo dialético”, funcionando como a ideologia de legitimação do “socialismo realmente existente” – é mesmo sinal da ascensão da ortodoxia soviética termidoriana os violentos ataques desferidos contra Lukács e
seu companheiro teórico Karl Korsch, cujo Marxismo e filosofia é uma espécie de peça de acompanhamento à História e consciência de classe, ambos publicados em 1923.

O momento de viragem foi o quinto congresso do Comintern de 1924, o primeiro congresso após a morte de Lênin, e também o primeiro a transcorrer depois que ficou claro que a onda revolucionária tinha se exaurido na Europa e que o socialismo russo teria que sobreviver por conta própria. Na sua famosa intervenção nesse congresso, Zinoviev fez questão de desferir um ataque antiintelectualista e de fácil apelo contra os desvios “ultra-esquerdistas” de Lukács, Korsch e outros “professores”, como
depreciativamente referiu-se a eles, apoiando, assim, a crítica de Laszlo
Rudas, companheiro de Lukács no partido húngaro, contra seu “revisionismo”.
Mais tarde, as principais críticas a Lukács e Korsch passaram a ser fornecidas por Abram Deborin e sua escola filosófica, na época dominante na União Soviética (apesar de posteriormente ter sido expurgada sob a acusação de “idealismo hegeliano”). Escola essa que foi a primeira a sistematicamente desenvolver a concepção de que o marxismo seria um método dialético com validade universal, capaz de elaborar leis gerais que poderiam ser aplicadas tanto à análise dos fenômenos naturais como dos sociais – a dialética marxista é estripada, dessa forma, de sua atitude prático-revolucionária, que leva ao engajamento direto, e transforma-se numa teoria
epistemológica geral que lida com as leis universais do conhecimento científico.
Como notou Korsch, logo depois desses debates, críticas vindas dos inimigos declarados, o Comintern e o “revisionismo” social-democrata, basicamente repetiam os mesmos contra-argumentos contra ele e Lukács, denunciando seu “subjetivismo” (na verdade, o engajamento prático da teoria marxista etc.). Já não se podia admitir tal posição numa época em que o marxismo estava transformando-se numa ideologia de Estado cuja raison d’être última era legitimar as pragmáticas decisões do Partido por
meio das não-históricas (“universais”) leis da dialética. Sintomático disso
é a reabilitação da idéia de que o materialismo dialético seria a “visão de
mundo [Weltanschaung] da classe trabalhadora”. Para Lukács e Korsch, assim como para o próprio Marx, por definição, “visão de mundo” designa a atitude “contemplativa” da ideologia, que a engajada teoria revolucionária
marxista deveria superar.

Evert Van der Zweerde3 descreveu em detalhes a utilização ideológica
pelo regime soviético da filosofia do materialismo dialético, pretensamente
a “visão de mundo científica da classe trabalhadora”. Apesar do materialismo dialético reconhecer ser uma ideologia,não é a ideologia que proclama ser. Não motivou, mas legitimou atos políticos; não se deveria, assim, acreditar nela, mas ritualmente encená-la. Sua reivindicação de que era uma “ideologia científica” e, consequentemente, a “reflexão correta” das circunstâncias sociais excluía a possibilidade que existisse uma ideologia “normal” na sociedade soviética, já que ela “refletiria” a realidade social de uma maneira “errada” etc. Perde-se, por conseqüência, inteiramente o fio da meada ao se tratar o infame diamat como um sistema filosófico genuíno. Ele funcionava, na verdade, como o instrumento de
legitimação do poder que deveria ser ritualmente encenado e, como tal, é
melhor colocá-lo na densa teia de relações de poder. Emblemático disso
são os diferentes destinos de I. Iljenkov e P. Losev, quase protótipos de
filósofos russos durante o socialismo. Losev foi o autor do último livro
publicado na URSS (em 1929) a rejeitar abertamente o marxismo, que
descartava como “óbvia perda de tempo”. No entanto, depois de uma
pequena temporada na prisão, lhe foi permitido retomar sua carreira
acadêmica e, durante a Segunda Guerra, voltar a dar aulas. A “fórmula”
que encontrou para sobreviver foi refugiar-se na história da filosofia
(estética) especializando-se numa disciplina acadêmica, onde dedicava-se
ao estudo de autores gregos e romanos. Aparentemente narrando e interpretando
o pensamento de autores antigos, especialmente Plotino e outros
neoplatônicos, pôde contrabandear suas próprias teses místicas, ao mesmo
tempo que, nas introduções a seus livros, macaqueava a ideologia oficial
com uma citação ou duas de Khruschev ou Brezhnev. Dessa forma, foi
capaz de sobreviver a todas as vicissitudes do socialismo e viveu para ver
o fim do comunismo, consagrado como o decano da autêntica herança
espiritual russa! Em contraste, Iljenkov, um soberbo dialético e especialista
em Hegel, tornou-se, como marxista-leninista convicto, uma figura
descolada. Por essa razão (i.e. porque escrevia de uma maneira que revelava
seu envolvimento pessoal com o que escrevia, procurando fazer do
marxismo uma filosofia séria e não o equivalente a uma série de fórmulas
ritualísticas de legitimação4), foi excomungado e levado ao suicídio. Será
que é possível encontrar melhor demonstração de como uma ideologia
efetivamente funciona?

Num gesto que corresponde a um termidor pessoal, Lukács, no início dos anos trinta, refugiou-se nas águas mais especializadas da estética e da teoria literária marxista, justificando seu apoio público às políticas stalinistas com base na crítica hegeliana à bela alma. A União Soviética, inclusive todas suas dificuldades não previstas, foi o resultado da Revolução de Outubro, portanto, ao invés de condená-la a partir da posição confortável da bela alma e, assim, manter as mãos limpas, se deveria reconhecer corajosamente “o cerne da encruzilhada do presente” (a fórmula de Hegel para a reconciliação pós-revolucionária). Adorno estava inteiramente
justificado ao designar sarcasticamente esse Lukács como alguém que confundiu
o barulho de suas correntes com a marcha triunfante do Espírito Universal, e, consequentemente, apoiou a “reconciliação à força” do indivíduo e da sociedade nos países comunistas do leste europeu.5 Apesar de tudo, o destino de Lukács nos leva a confrontar o difícil problema da emergência do stalinismo. É até excessivamente fácil contrastar o espírito autenticamente revolucionário do “Evento de 1917” com
seu posterior termidor stalinista – o verdadeiro problema é saber “como a partir de lá chegamos aonde chegamos”. A grande tarefa, como foi enfatizado por Alain Badiou, é de pensar a necessidade da evolução no interior do leninismo em direção ao stalinismo sem negar o tremendo potencial emancipador do Evento de outubro, e também sem cair no velho papo furado liberal sobre o potencial “totalitário” da política emancipadora radical, que sugere que toda revolução leva a uma repressão pior do que a antiga. Ao mesmo tempo que se deve reconhecer que o stalinismo é inerente à lógica
revolucionária leninista e não o fruto de alguma influência corruptora externa,
como o “atraso russo” ou a postura ideológica “asiática” das massas, é
necessário continuar a fazer uma análise concreta da lógica do processo
político e, a todo custo, evitar usar conceitos imediatos quase-antropológi
cos ou genericamente filosóficos, como “razão instrumental”. A partir do
momento que aceitamos tal postura, o stalinismo perde sua especificidade,
sua dinâmica política particular, e transforma-se apenas num outro exemplo
da noção geral. Exemplo disso é o famoso comentário de Heidegger, na sua
Introdução à metafísica, de que o comunismo russo e o americanismo são, do ponto de vista histórico, “metafisicamente iguais”.

É evidente que, no interior do marxismo ocidental, a Dialética do
esclarecimento, de Adorno e Horkheimer, e os diversos ensaios posteriores
de Horkheimer sobre a “razão instrumental” levaram à mudança fatal, de
análises sociopolíticas concretas às generalizações antropofilosóficas. A
transformação exige que, ao reificar a “razão instrumental”, ela mesma deixe
de se basear em relações capitalistas concretas, para tornar-se, de maneira
praticamente imperceptível, o “princípio” ou “fundação” quase-transcendental.
Junto com essa mudança, a tradição da Escola de Frankfurt evita quase
inteiramente a confrontação teórica direta com o stalinismo, o que contrasta
claramente com sua obsessão com o anti-semitismo fascista. As exceções a
essa regra são reveladoras. O Behemoth, de Fraz Neumann, um estudo do
nacional-socialismo que, da maneira bastante comum no final dos anos trinta
e quarenta, sugere que os três grandes sistemas mundiais da época – o
emergente capitalismo do New Deal, o fascismo e o stalinismo – tenderiam
a levar à mesma sociedade “administrada”, burocrática e inteiramente organizada.
Da mesma forma, O marxismo soviético, de Herbert Marcurse, seu
menos apaixonado e, talvez, pior livro, estranhamente traz uma análise neutra,
sem nenhum engajamento claro, sobre a ideologia soviética. Finalmente,
há tentativas de alguns discípulos de Habermas que, ao refletirem sobre o
então fenômeno nascente da dissidência, tentaram elaborar um conceito de
sociedade civil como o espaço onde apareceria a resistência ao regime comunista.
Politicamente essas análises são interessantes, mas não oferecem uma
teoria global satisfatória da especificidade do “totalitarismo” stalinista.6 A
desculpa padrão, segundo a qual os autores clássicos da Escola Frankfurt não
queriam se opor abertamente ao comunismo já que, ao fazerem isso, domesticamente
estariam fazendo o jogo daqueles que eram favoráveis ao capitalismo
e à Guerra Fria, é evidentemente insuficiente. Na verdade, o ponto central
não é que seu medo de servirem ao anticomunismo oficial provaria como
eram secretamente pró-comunistas, mas, o oposto. Se fossem realmente
colocados contra a parede para definirem sua posição na Guerra Fria, os
membros da Escola de Frankfurt provavelmente escolheriam a democracia
liberal ocidental (como fez explicitamente Horkheimer em alguns de seus
últimos escritos). No final das contas, essa solidariedade com o sistema ocidental,
quando ele esteve realmente ameaçado, é o que os teóricos de
Frankfurt tinham vergonha de assumir publicamente, o que contrasta com a
“oposição crítica socialista e democrática” na República Democrática
Alemã, que criticava abertamente o domínio do Partido. Mas no momento
em que a situação se agravou e o socialismo passou realmente a ser ameaçado,
eles (Brecht nas manifestações de trabalhadores em 1953, Christa Wolf
na Primavera de Praga em 1968) passaram a apoiar o sistema abertamente...
O “stalinismo” (o socialismo realmente existente) foi, assim, um assunto
traumático para a Escola de Frankfurt, sobre o qual ela preferiu se calar. Esse
silêncio foi a única maneira que seu intelectuais encontraram para manter
uma inconsistente posição de solidariedade implícita com a democracia liberal
ocidental, sem perder a máscara oficial de críticos esquerdistas “radicais”.
Se assumissem abertamente essa solidariedade perderiam sua aura
“radical”, convertendo-se em meramente mais uma versão liberal esquerdista
e anticomunista da Guerra Fria, enquanto que se demonstrassem muita simpatia
pelo “socialismo realmente existente” seriam forçados a trair seus verdadeiros
compromissos não assumidos.

Apesar da tarefa de explicar a ascensão do stalinismo estar além
do escopo deste ensaio, somos tentados a arriscar um curto comentário preliminar
sobre ela. Todo marxista se lembra do comentário de Lenin, nos
seus Cadernos filosóficos, de que aquele que não leu e estudou cuidadosamente
toda a Ciência da lógica de Hegel não pode realmente entender O
capital de Marx. Na mesma linha, somos tentados a afirmar que quem não
leu e estudou com cuidado os capítulos sobre “Julgamento” e “Silogismo”
da Lógica de Hegel não pode realmente entender a emergência do stalinismo.
Isto é, a lógica da emergência do fenômeno histórico pode ser melhor
entendida com base na sucessão das três formas de mediação silológica,
que vagamente correspondem à tríade marxismo-leninismo-stalinismo. Os
três termos mediados (o Universal, o Particular e o Singular) representam
a História (o movimento histórico universal), o proletariado (a classe particular
que tem uma relação privilegiada com o Universal) e o Partido
Comunista (o agente singular). Na primeira forma marxista clássica de
mediação, o Partido realiza a mediação entre a História e o proletariado:
sua ação permite que a classe trabalhadora “empírica” torne-se consciente
da missão histórica inscrita em sua própria situação social e aja de acordo
com ela, i.e., torna-se sujeito revolucionário. A ênfase está na atitude
“espontaneamente” revolucionária do proletariado: o Partido apenas
desempenharia um papel maiêutico, tornando possível a conversão, meramente
formal, do proletariado de classe-em-si para classe-para-si. No
entanto, como é sempre o caso em Hegel, a “verdade” dessa mediação está
que, no curso do movimento, a posição inicial, a identidade presumida, é
falsificada. Na primeira forma, a identidade presumida é entre o proletariado
e a História, i.e., a idéia de que a missão revolucionária de libertação
universal está inscrita na própria condição social objetiva do proletariado
como “classe universal”, classe cujos interesses particulares confundem-se
com os interesses universais da humanidade. O terceiro termo, o Partido, é
meramente o operador que realiza esse potencial universal do particular. É
palpável, porém, que no curso da mediação o proletariado atinja “espontaneamente”
apenas uma consciência economicista e reformista, o que nos
leva à conclusão leninista: a constituição do sujeito revolucionário só é
possível quando os intelectuais do Partido compreenderem a lógica interna
do processo histórico e, de acordo com ela, “educarem” o proletariado.
Nessa segunda forma, o proletariado tem seu papel reduzido ao de mediador
entre a História (o processo histórico global) e a consciência científica
a respeito dela internalizada no Partido. Depois de compreender a lógica
interna do processo histórico, o Partido “educa” os trabalhadores, que
serão o instrumento consciente da realização do fim da história. A identidade
pressuposta nessa segunda forma é entre o Universal e o Singular, a
História e o Partido, i.e., a concepção de que o Partido como “intelectual
coletivo” compreende o processo histórico. Esse pressuposto é melhor
entendido com a superação dos aspectos “subjetivo” e “objetivo”. A noção
da História como um processo objetivo ao qual correspondem leis
necessárias é estritamente correlata com a dos intelectuais do Partido como
Sujeitos cujo conhecimento privilegiado – compreensão – do processo possibilita
a intervenção e direção do processo. Como era de se esperar, é esse
pressuposto que é falsificado no curso da segunda mediação, levando à terceira,
“o Stalinismo”, forma de mediação que contém a “verdade” de todo
o movimento, no qual o Universal (a História ela mesmo) faz a mediação
entre o proletariado e o Partido. Em termos simplistas, o Partido apenas usa
a referência à História – i.e., sua doutrina, “o materialismo histórico e
dialético”, para garantir seu acesso privilegiado à “necessidade inexorável
do progresso histórico” – a fim de legitimar sua dominação e exploração
sobre a classe trabalhadora. Ela fornece, dessa forma, às decisões pragmáticas
e oportunistas do Partido uma espécie de “justificativa ontológica”.
Em termos da coincidência especulativa dos opostos, ou do “julgamento
infinito”, em que o mais alto coincide com o mais baixo, não deixa de ser
significativo que os trabalhadores soviéticos eram acordados de manhã
cedo pela música tocada por amplificadores que reproduziam os primeiros
acordes da Internacional. Suas palavras, “De pé, ó vítimas da fome!” passa
a ter um significado irônico mais profundo: a “verdade” última do significado
patético original (“Bem unidos façamos, nesta luta final, uma terra
sem amos, a Internacional!”) passa a ser seu significado literal, o apelo
dirigido aos trabalhadores cansados “De pé, ó vítimas da fome, comecem
a trabalhar para nós, a nomenklatura do Partido!”.

Se, nessa tríplice mediação silológica da História, do proletariado
e do Partido, cada forma de mediação é a “verdade” da precedente, então
o Partido, que instrumentaliza a classe trabalhadora para realizar seu fim,
justificado que está na compreensão correta que teria da lógica interna do
processo histórico, é a “verdade” da noção de que o Partido possibilitaria ao
proletariado tomar consciência da sua missão histórica, descobrindo seu
“verdadeiro” interesse. A exploração brutal da classe trabalhadora pelo
Partido seria, dessa forma, a “verdade” da idéia de que por meio dela o
Partido realiza sua compreensão da História. Será que isso significa que esse
movimento é inexorável, que estamos lidando com uma lógica de ferro com
base na qual, a partir do momento que aceitamos o ponto de partida – a premissa
que o proletariado, devido à sua posição social, é a “classe universal”
– ficamos presos, numa espécie de compulsão diabólica, a sermos conduzidos,
no final do caminho, ao Gulag? Se isso fosse verdade, História e consciência
de classe, apesar de (ou devido a) seu brilho intelectual, seria o
texto fundador do stalinismo, e a crítica pós-moderna do livro, segundo a
qual ele seria a manifestação última do essencialismo hegeliano, assim
como a identificação, por parte de Althusser, do hegelianismo com o stalinismo
(a necessidade teleológica de toda a História progredir em direção à
revolução proletária, momento decisivo, em que o proletariado como sujeito
e objeto da História, a “classe universal” tornada consciente pelo Partido da
missão inscrita em sua posição social objetiva, realiza o ato revelador de sua
própria libertação) estariam inteiramente justificados. A reação violenta dos
partidários do “materialismo dialético” à História e consciência de classe
seria apenas uma confirmação da regra de Lucien Goldman a respeito de
como uma ideologia dominante precisa necessariamente negar suas premissas
fundamentais. Dessa perspectiva, a noção megalomaníaca, que Lukács
toma emprestado de Hegel, do Partido leninista como correspondendo ao
espírito da história, já que ele seria o “intelectual coletivo” do proletariado,
sujeito e objeto da História, seria a “verdade” escondida por trás da
aparentemente mais modesta versão “objetivista” do stalinismo sobre como
a atividade revolucionária estaria baseada num processo ontológico global
dominado por leis dialéticas universais. E, claro, seria fácil desconstruir o
conceito hegeliano da identidade do Sujeito e Objeto com base na premissa
básica do desconstrutivismo de que o sujeito emerge precisamente de/como
ausência de Substância (Ordem das Coisas objetiva), que há subjetividade
apenas quando existe uma “rachadura no edifício do Ser”, na medida em
que o universal está, de alguma maneira, “fora dos trilhos”, “é descontínuo”.
Em poucas palavras, a realização completa do sujeito não só falha sempre,
mas aquilo a que Lukács não prestou atenção já seria um modo de subjetividade
“imperfeita”, sujeito frustrado e, efetivamente, o próprio sujeito. A
versão “objetivista” stalinista seria, portanto, por razões estritamente filosóficas,
a “verdade” de História e consciência de classe. Como, por definição,
o sujeito sempre falharia, sua completa realização como Sujeito e Objeto da
História necessariamente levaria ao seu próprio cancelamento, sua autoobjetivação
como instrumento da História. Indo mais além, seria fácil de
defender, contra esse impasse hegelo-stalinista, a posição pós-moderna de
Laclau, de que a contingência radical seria o próprio terreno da subjetividade
(política). Universais políticos deveriam ser entendidos como conceitos
“vazios”, a ligação entre eles e o conteúdo particular que os hegemoniza
devendo ser buscada naquilo que envolve a disputa ideológica, por sua
vez, inteiramente contingente. O que equivale a dizer que o sujeito político
tem sua missão universal inscrita na sua condição social “objetiva”.
Mas é isso que História e consciência de classe realmente sugere?
Será que se pode deixar de prestar atenção a Lukács em razão dele
ser um defensor do argumento pseudo-hegeliano de que o proletariado
seria o Sujeito e Objeto da História? Voltemos ao contexto político concreto
de História e consciência de classe, no qual Lukács agia como um revolucionário
engajado. Colocando as coisas em termos crus e simplistas, a
escolha, para as forças revolucionárias na Rússia de 1917, em que a burguesia
era incapaz de levar a cabo a revolução democrática, colocava-se
nos seguintes termos. Por um lado, havia a postura menchevique de obedecer
à lógica “do desenvolvimento das etapas objetivas”: realizando
primeiro a revolução democrática, depois a revolução proletária. Assim, no
remoinho de 1917, os partidos radicais, ao invés de capitalizar a desintegração
progressiva do aparato de Estado e construir, com base no descontentamento
popular generalizado, uma alternativa revolucionária, deveriam
resistir à tentação de empurrar o movimento longe demais, sendo presumivelmente
melhor aliar-se com elementos democráticos burgueses a fim
de “amadurecer” a situação revolucionária. Desse ponto de vista, a tomada
de poder por parte de socialistas em 1917, quando a situação ainda não
estava “madura”, levaria à volta ao terror primitivo... (Apesar de hoje o
temor das consequências catastróficas de um levante “prematuro” poder
parecer antecipar o Stalinismo, a ideologia do stalinismo leva, de fato, a um
retorno a essa lógica “objetivista” dos estágios necessários de desenvolvimento.)
Por outro lado, a estratégia leninista era de antecipar-se, lançandose
por inteiro no paradoxo da situação, aproveitando as oportunidades e
intervindo mesmo quando as condições eram “prematuras”, com a aposta
que a própria intervenção “prematura” mudaria a relação de forças
“objetivas”, dentro da qual a situação inicialmente parecia ser “prematura”.
Isto é, ela minaria o próprio padrão de referência, que nos informa que
a situação era “prematura”.

Nessa linha, é preciso tomar cuidado para não perder o fio da meada: não é que Lenin, diferentemente dos mencheviques e dos céticos no interior do Partido Bolchevique, acreditasse que a complexa situação de 1917, i.e., a crescente insatisfação das massas com as políticas irresolutas do governo provisório, oferecesse uma chance única de “pular” uma fase (a revolução democrática burguesa), ou de “condensar” os dois estágios consecutivos necessários (a revolução democrático burguesa e a revolução proletária) num só. Tal raciocínio mantém a mesma lógica objetiva “reificada” dos “estágios necessários de desenvolvimento”, mas aceita que existiria um ritmo diferente de evolução em variadas circunstâncias concretas (i.e., em alguns países, o segundo estágio poderia suceder imediatamente ao
primeiro). O argumento de Lênin é muito mais forte. Em última instância,
não há nenhuma lógica objetiva dos “estágios de desenvolvimento necessários”, já que “complicações” aparecem na intricada textura das situações concretas e/ou os resultados não antecipados de intervenções “subjetivas” sempre bagunçam sua evolução normal. Como Lenin gostava de observar, o colonialismo e a superexploração das massas na Ásia, África e América Latina afeta e “desloca” radicalmente a luta de classes “normal” nos países capitalistas avançados. Falar de “luta de classes” sem levar em conta o colonialismo é uma abstração vazia, que, quando se traduz em
política concreta, pode apenas resultar na aceitação do papel “civilizador”
do colonialismo. Portanto, ao subordinar a luta anticolonialista das massas
asiáticas à “verdadeira” luta de classes nos Estados capitalistas avançados,
a burguesia passaria a definir de facto os termos da luta de classes... (Mais
uma vez, aqui se pode notar uma proximidade não esperada com a idéia althusseriana da “sobredeterminação”. Não há nenhuma regra última que permita traçar “exceções”. Na história real, há apenas exceções.) É também tentador utilizar termos lacanianos sobre isso. O que está em jogo nessa fórmula alternativa é a (não) existência do “grande Outro”. Os mencheviques acreditavam nas bases auto-suficientes da lógica positiva do desenvolvimento histórico, enquanto os bolcheviques (ao menos Lenin) tinham consciência de que “o grande Outro não existe”. A intervenção apolítica não
acontece a partir das coordenadas dadas por uma matriz global subjacente,
já que o que ela faz é precisamente “reelaborar” essa matriz global. Essa é a razão por que Lukács admirava tanto Lenin. Seu Lenin era aquele que, diante da disputa na Social-Democracia russa entre bolcheviques e mencheviques sobre quem deveria ser membro do partido, escreveu: “Por algumas vezes, todo o destino do movimento operário pode, por certo tempo, ser decidido por uma ou duas palavras presentes no programa do partido.” Ou o Lenin que quando percebeu, no fim de 1917, a possibilidade
de tomada revolucionária do poder disse: “A História nunca nos perdoará se desperdiçarmos a oportunidade!” Num nível mais geral, a história do capitalismo é uma longa história de como a referência ideológica predominante foi capaz de cooptar (e diluir o potencial subversivo) dos movimentos e demandas que pareciam ameaçar sua própria sobrevivência. Por exemplo, por um bom tempo, libertários em matéria sexual acreditavam que a repressão monogâmica era necessária para a sobrevivência do capitalismo – sabemos agora que o capitalismo não só pode tolerar, mas incitar
e explorar formas de sexualidade “pervertidas”, sem mencionar seu convívio,
sem maiores problemas, com a indulgência promíscua em prazeres sexuais. No entanto, a conclusão que se pode tirar disso não é que o capitalismo tem a capacidade sem fim de integrar e, assim, diluir o potencial subversivo de todas as demandas particulares – já que a questão do timing, de “aproveitar o momento”, é decisiva. Uma demanda particular, num dado momento, possui poder de detonação global, funcionando como um substituto metafórico para a revolução global. Se, de maneira inflexível, insistimos nela, o sistema pode explodir. Se, entretanto, esperamos por tempo demais, o curto-circuito metafórico entre essa demanda particular e a derrubada
global é dissolvido, e o Sistema pode, com hipócrita satisfação, perguntar,
“não era isso que você queria? Então, fique com o que pediu!”, sem que nada de realmente radical aconteça. O artifício que Lukács chamou de Augenblick (o momento quando, por pouco tempo, há a abertura para um ato de intervenção numa situação) é a capacidade de aproveitar o momento certo, agravando o conflito antes que o Sistema possa acomodar a demanda. Passamos a ter, assim, um Lukács muito mais “gramsciano”, aberto para o conjuntural/contingente do que normalmente se imagina. O Augenblick de
Lukács está também surpreendentemente próximo do que Alain Badiou chama de Evento: uma intervenção que não pode ser entendida com base em suas “condições objetivas” preexistentes. O ponto principal do argumento de Lukács é rejeitar a redução do ato às suas “circunstâncias históricas”. Não há “condições objetivas” neutras, i.e. (em hegelês), todos os pressupostos estão minimamente postos.

Característico disso é a enunciação “objetivista” por Lukács dos fatores que levaram ao fracasso da revolução húngara de 1919: os oficiais traiçoeiros, o bloqueio externo que causou a fome... Apesar desses serem indubitavelmente fatores que desempenharam um papel decisivo na derrota da revolução, é equivocado considerá-los como a matéria-prima decisiva, sem levar em conta a maneira como foram “mediados” por inúmero fatores políticos subjetivos. Por que, então, no caso do bloqueio ainda mais intenso à Rússia soviética, não se sucumbiu aos ataques imperialistas e
contra-revolucionários? Porque na Rússia, o Partido Bolchevique esclareceu
as massas que o bloqueio era fruto da ação de forças contra-revolucionárias
estrangeiras e domésticas. Na Hungria, porém, o Partido não era suficientemente forte, o que fez com que as massas sucumbissem à propaganda anticomunista que afirmava que o bloqueio era o resultado da natureza “antidemocrática” do regime – sugerindo que com o retorno à democracia a ajuda estrangeira não pararia de afluir... Traição dos oficiais?
Sim, mas por que a mesma traição não levou às mesmas consequências catastróficas
na Rússia soviética? E quando traidores foram descobertos por
que não foi possível substituí-los por quadros confiáveis? Porque o Partido
Comunista Húngaro não era suficientemente forte e ativo, ao passo que o
Partido Bolchevique russo mobilizou os soldados que estavam dispostos a
defender a revolução. Claro, pode-se sempre afirmar que a fraqueza do
Partido Comunista Húngaro era um componente “objetivo” da situação social; contudo, por trás desse “fato”, há ainda outras decisões e atos subjetivos, o que faz com que nunca seja possível atingir o nível zero de um pretenso estado de coisas puramente “objetivo”. O ponto realmente importante não é a objetividade, mas a “totalidade”, entendida como processo global de “mediação” entre o aspecto subjetivo e o objetivo. Em outras palavras, o Ato nunca pode ser reduzido ao reflexo de condições objetivas. Pegando um exemplo de outro campo, a maneira que a ideologia
“põe seus pressupostos” é também facilmente percebido na (pseudo)
explicação sobre a crescente aceitação da ideologia nazista durante os anos
vinte, segundo a qual os nazistas manipulavam os medos e as ansiedades
da classe média gerados pela crise econômica e as mudanças sociais. O problema com essa explicação é que ela não percebe como está implícita nela uma auto-referência circular. Sim, os nazistas certamente manipularam medos e ansiedades, todavia, esses medos e ansiedades refletiam, de antemão, uma certa perspectiva ideológica e não correspondiam a fatos pré-ideológicos. Em outras palavras, a ideologia nazista ela mesmo também gerou “ansiedades e medos”, para a qual propôs soluções.
Podemos agora voltar para nosso “silogismo” triplo e procurar descobrir onde encontra-se seu erro: na própria oposição entre as suas duas primeiras formas. Claro que Lukács opõe-se ao “espontaneísmo”, que defende a organização autônoma das massas trabalhadoras em movimentos de base contra a ditadura imposta por burocratas do Partido. Mas ele também opõe-se ao conceito pseudoleninista (na verdade, de Kaustky) de que a classe trabalhadora “empírica” pode, deixada a ela mesma, apenas atingir
o nível sindicalista de consciência, e que a única maneira dela passar a
ser o sujeito revolucionário é importando sua consciência por meio de intelectuais
que, depois de compreenderem “cientificamente” as necessidades
“objetivas” da passagem do capitalismo para o socialismo, “esclarecem a
classe trabalhadora da missão implícita em sua posição social objetiva”. No
entanto, é aqui que encontramos a abusiva “identidade dos opostos”
dialética na sua forma mais pura. O problema com essa oposição não é que
os dois pólos estão muito cruamente opostos e que a verdade se encontraria
em algum lugar presente entre eles, na “mediação dialética” (a consciência
de classe que surgiria da “interação” entre a consciência espontânea da
classe trabalhadora e o trabalho educativo do Partido). Na verdade, o problema
está na idéia de que a classe trabalhadora tem potencialmente a
capacidade de atingir a consciência de classe adequada (e, conseqüentemente,
que o Partido apenas desempenha um papel menor, “maiêutico”, de
possibilitar aos trabalhadores empíricos realizarem seu potencial), já que,
assim, se legitima o exercício da ditadura do Partido sobre os “trabalhadores,
baseada na sua compreensão correta de quais são seus verdadeiros
potenciais e/ou seus interesses a longo prazo”. Em poucas palavras, Lukács
está apenas aplicando à oposição falsa entre “espontaneísmo” e dominação
externa do Partido a identificação especulativa de Hegel dos “potenciais
internos” de um indivíduo na sua relação com seus educadores. Dizer que
o indivíduo precisa possuir “potencial próprio” para se tornar um grande
músico equivale a dizer que esses potenciais devem estar, de antemão, presentes
no educador que, por meio de influência externa, estimulará o indivíduo
a realizar seu potencial.

O paradoxo, então, é que quanto mais insistimos em como uma
postura revolucionária traduz a verdadeira “natureza” da classe trabalhadora,
mais somos levados a exercer pressão externa sobre a classe trabalhadora
“empírica”, a fim de que ela realize seu potencial. Em outras
palavras, a “verdade” sobre a identidade imediata dos dois primeiros opostos
é, como vimos, a terceira forma, a mediação stalinista. Por quê? Porque
essa identidade imediata exclui qualquer espaço para o ato propriamente
dito. Se a consciência de classe aparece “espontaneamente”, como a realização
do potencial interno presente na própria situação objetiva da classe
trabalhadora, nenhum ato ocorreria, a não ser a conversão puramente formal
do em-si para o para-si. O que corresponde ao gesto de descortinar o
que sempre esteve lá. Se a consciência de classe propriamente revolucionária
deve ser “importada” pelo Partido, então nos restaria a presença de
intelectuais “neutros”, que compreenderiam a necessidade histórica “objetiva”
(sem intervir diretamente nela). Conseqüentemente, a utilização da
classe trabalhadora, manipulada de maneira instrumental, como ferramenta
para realizar a necessidade já presente na sua situação, não deixaria nenhum
espaço para o ato propriamente dito.

Hoje em dia, época do triunfo mundial da democracia, quando
ninguém de esquerda (com exceções notáveis, como a de Alain Badiou)
ousa questionar as premissas da democracia política, é mais importante do
que nunca ter em mente o comentário de Lukács, proferido na sua polêmica
contra a crítica de Rosa Luxemburgo a Lenin, de como a atitude verdadeiramente
revolucionária de aceitar a contingência radical da Augenblick
não deveria levar também à aceitação da oposição padrão entre a
“democracia”, a “ditadura” ou o “terror”. Se deixarmos de lado a oposição
entre o universalismo liberal-democrático e o fundamentalismo étnico/religioso,
para o qual a mídia insiste em chamar a atenção, o primeiro passo é
reconhecer a existência do que se pode chamar de “fundamentalismo
democrático”: a ontologização da Democracia numa referência universal
despolitizada que não deve ser (re)negociada com base em disputas político-
ideológicas pela hegemonia.

A democracia como forma de política estatal é mesmo inerentemente
“popperiana”. O critério último da democracia está na “falseabilidade”
do regime, i.e. que um procedimento público claramente definido (o
voto popular) pode determinar se ele perdeu legitimidade e deve ser substituído
por uma nova força política. O ponto não é tanto a “justiça” do procedimento,
mas o fato de que todos os envolvidos aceitam antecipadamente,
e sem dar margem a dúvidas, como ele funcionará, independente-
mente da sua “justiça”. No procedimento padrão de chantagem ideológica,
os defensores da democracia alegam que, a partir do momento que abandonamos
essa característica, entramos numa esfera “totalitária”, em que o
regime “não é falsificável”, i.e., ele evita a situação de “falsificação” unívoca.
Independentemente do que acontecer, mesmo que milhares se manifestem
contra o regime, ele continuará a insistir que é legítimo, que representa
os verdadeiros interesses do povo e que o “verdadeiro” povo o
apóia... Deveríamos, aqui, rejeitar essa chantagem (como Lukács faz em
relação a Rosa Luxemburgo). Não há nenhuma “regra (procedimento)
democrático” que estamos, de antemão, proibidos de violar. A política revolucionária
não diz respeito a “opiniões”, mas à verdade que faz com que
freqüentemente tenha-se que não levar em conta a “opinião da maioria” e
impor a vontade revolucionária sobre ela.

Se, então, a principal tarefa da esquerda atual for, afinal de contas,
fazer a passagem de História e consciência de classe a Dialética do
esclarecimento, mas na direção oposta do que é normalmente imaginado?
A questão não é de “aprofundar” Lukács de acordo com as “exigências dos
novos tempos” (o grande slogan de todo o revisionismo oportunista,
incluindo o atual Novo Trabalhismo), mas de repetir o Evento em novas
condições. Somos ainda capazes de nos imaginar num momento histórico
onde termos como “traidor revisionista” ainda não faziam parte do mantra
stalinista, mas expressavam uma postura verdadeiramente engajada? Em
outras palavras, a questão a ser levantada hoje sobre o Evento único do
Lukács marxista dos primeiros tempos não é: “Como esse trabalho fica em
relação à constelação atual? Ele ainda está vivo?”, mas, ao contrário, o de
parafrasear a conhecida inversão de Adorno da insolente pergunta historicista
de Croce sobre “o que está vivo e o que está morto na dialética de
Hegel” (o título de seu principal trabalho)7: como é que nós nos encontramos
diante de Lukács? Ainda somos capazes de realizar o ato descrito
por Lukács? Qual ator social pode, com base em seu radical deslocamento,
realizá-lo hoje em dia?


Notas:


SLAVOJ ZIZEK é pesquisador da Universidade de Liubliana
(Eslovênia), e autor de vários livros de filosofia, política e psicanálise.


* “From History and Class Consciousness to The Dialectic of Enlightenment... and Back”.
New German Critique81: 107-123, 2000. Agradecemos aos editores da New German Critique
e a Slavoj Zizek pela gentil permissão para publicar este artigo. Tradução de Bernardo
Ricupero.


1 Martin Heidegger, Sein und Zeit, Tuuebingen: Max Niemeyer, 1963, p. 437.

2 Paradoxalmente, da perspectiva de cada um desses dois marxistas, Althusser e Lukács, o outro aparece como o exemplo mais acabado do stalinista: para Althusser e os pós-althusserianos, a noção de Lukács de que o Partido Comunista equivale praticamente ao sujeito hegeliano legitima o stalinismo; para os discípulos de Lukács, o “antihumanismo teórico” do estruturalista Althusser e sua total rejeição da problemática da alienação e da reificação, combinam-se à desconsideração stalinista pela liberdade humana. Ao mesmo tempo que este não é o lugar para tratar detalhadamente desse confronto, ele enfatiza como cada um dos dois marxistas articula uma problemática fundamental, que não faz parte do horizonte do oponente:
em Althusser, a noção dos aparelhos ideológicos do Estado como a tradução material
da ideologia, e em Lukács, a noção do ato histórico. Além do mais, evidentemente não é fácil realizar uma “síntese” entre essas duas posições mutuamente opostas – é possível, assim, que a melhor maneira de proceder seja usando como referência alternativa o outro grande fundador do marxismo ocidental, Antonio Gramsci.

3 Ver: Evert van der Zweerde, Soviet historiography of philosophy, Dordrecht, Kluwer, 1997.

4 Paradigmática é a lendária história da fracassada participação de Iljenkov num congresso
mundial de filosofia realizado nos EUA em meados dos anos sessenta. Iljenkov já tinha o visto
e estava pronto para pegar o avião, quando sua viagem foi cancelada porque seu texto para o
congresso, “Do ponto de vista leninista”, que tinha antes apresentado aos ideólogos do
Partido, não os agradou. Isso não se deu graças a seu conteúdo (inteiramente aceitável), mas
simplesmente por causa de seu estilo, da maneira engajada em que foi escrito. Já a frase de
abertura (“É minha avaliação pessoal que...”) era proferida num tom pouco aceitável.

5 Ver: Theodor W. Adorno, “Erpresste Versohnung,” Noten zur literatur, Frankfurt/Main:
Suhrkamp, 1971, p. 278.

6 Ver, como exemplo representativo, Andrew Arato e Jean L. Cohen, Civil society and political
theory, Cambridge: MIT, 1994.

7 Ver: Adorno, Drei Studien zu Hegel, Frankfurt: Suhrkamp, 1963, p. 13.

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