quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

A crise de investidura de Wall Street

O Significante-Mestre do sistema financeiro global (Wall Street) se enfraqueceu com o derretimento de 15 de setembro de 2008. Além disso, as empresas “grandes demais para quebrar” deslegitimaram o livre-mercado financeiro global articulado a partir de Wall Street.

Em termos de Eric Santner, esse enfraquecimento pode ser chamado de perda da eficácia simbólica – uma “crise de investidura”. Seguindo Santner, essa “crise de investidura” consiste numa perda generalizada da eficácia simbólica por parte da autoridade (que se constitui por reprodução dos mitos) por mudanças na matriz fundamental da relação do indivíduo com a autoridade social e institucional, aos modos como a ele se dirigem e como ele responde aos chamamentos do poder e da autoridade “oficiais”. Esses chamamentos são processos de investidura simbólica pelo qual o indivíduo passa a ter um novo status social que modifica sua identidade perante a comunidade – nesses processos os indivíduos “se tornam quem são”. Como a estabilidade política e social (assim como a “saúde” psicológica dos indivíduos) se relaciona com a eficácia das operações simbólicas, uma “crise de investidura” tem o potencial de criar sentimentos de extrema alienação, anomia e angústias associadas ao colapso do espaço social e dos ritos da instituição no núcleo mais íntimo do sujeito. Não seria exatamente esses os efeitos de uma quebra financeira generalizada?

Nesse processo de perda da capacidade de ser exigido pelo Outro, é nessa inconsistência do Outro que se abre espaço ao Ato que se autoriza por si mesmo. Com “Lanin” dizemos que o Ato não é aprovado ou coberto pelo grande Outro – medo de ser cedo demais, busca por garantias, etc. O Ato é o encontro puramente contingente e traumático que desestabiliza a normalidade do universo simbólico, podendo só ser reconstruído retroativamente. O Ato cria retroativamente as condições de sua possibilidade e não é um evolucionismo etapista barato.

Mas o que isso tem a ver com Wall Street? Por que não esperar uma mudança drástica nas relações financeiras internacionais diante do aprofundamento da crise e na eminência de um novo colapso financeiro ainda mais profundo? Aqui um Ato que, por ser um Ato, não podemos esperar ou ter certeza do que pode ser. Entretanto, sabemos que astúcia e imoralidade são banais em Wall Street e, portanto, não esperemos (é obvio) um Ato progressista do ponto de vista do trabalho e sim um Ato para firmar ainda mais a dependência do capital produtivo ao capital financeiro internacional abrindo novas portas para a entrada do capital portador de juros na vida social. Sem um Ato isso seria impossível, por isso mesmo a necessidade de um Ato financeiro talvez já para 2010. Atentemo-nos!

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Justiça Infinita Reloaded - Parte 2

Após oito anos de guerra das tropas estrangeiras (encabeçadas pelos EUA) no Afeganistão, vem a pergunta: qual o sentido da invasão ao Afeganistão? Ou antes ainda: do ponto de vista dos EUA, quais são os pontos internacionais estratégicos que asseguram sua expansão imperial? Sem dúvida podemos apontar dois: Colômbia e Afeganistão. O primeiro cria uma base de intervenção ampla dos Estados Unidos na América Latina, sendo um aviso claro tanto ao Brasil como a Venezuela. Mas bem, tratemos do Afeganistão.



O ataque ao Afeganistão foi legitimado pela construção de uma democracia que deixaria para trás os retrógrados talebãs. Hoje, entretanto, a prioridade de Washington é exclusivamente militar. Com os novos reforços que serão enviados ao Afeganistão no início de 2010, Obama terá mobilizado mais de 50.000 soldados suplementares naquele país desde que assumiu o poder, em janeiro deste ano. E seus aliados da Otan anunciaram o envio de mais 7.000. Assim, quase 150.000 soldados estrangeiros deverão ser mobilizados no Afeganistão até o fim de 2010. É bastante gente para quem prometeu acabar a guerra. Como balanço parcial desse ano, até o dia 27 de dezembro, mais de 500 soldados estrangeiros tinham sido mortos no país em 2009, sendo pelo menos 310 americanos.



O Afeganistão é um ponto militar que da fácil acesso tanto à Rússia e a China como ao Irã e outros países extratores de petróleo no Oriente Médio. Sendo um ponto de localização geopolítica privilegiada, em torno do Sul da Ásia, Ásia Central e o Oriente Médio, o Afeganistão também tem saídas pelo Mar Cáspio que facilitam enormemente os dutos de petróleo rumo ao Oceano Índico onde a empresa estadunidense Unocal tem negócios exclusivos para o gás natural do Turcomenistão pelo Afeganistão e Paquistão. Para o sucesso desse empreendimento, as forças fundamentalistas se fortificam num ciclo vicioso e que parece ser sem fim.



A elite corrupta afegã, encabeçada pelo presidente reeleito Hamid Karzai, parece não se importar com a invação norte-americana. Afinal, quem está pagando a democracia com características afegãs são os EUA. Recentemente Karzai disse: "esperamos que a comunidade internacional, e em particular os Estados Unidos como nosso principal aliado, nos ajudem a ter também a capacidade econômica para manter uma força que proteja o país com o número (de membros) e equipamentos adequados". O secretário de Defesa norte-americano, Robert Gates, disse complementando a panacéia que o Afeganistão vai precisar de "algum tempo" para ser capaz de manter suas forças de segurança. "Se serão 15 ou 20 anos, esperamos um desenvolvimento econômico acelerado no Afeganistão", afirmou. A pergunta que fica é: não existe uma relação retroativa entre a democracia imposta no Afeganistão e a corrupção própria de um governo imposto pela força a custa de milhares de pessoas que necessitam continuar a viver às custas e perdas de quase uma década de invasão?



Em 2009 os aviões sem piloto da CIA baseados no Afeganistão bombardearam intensamente as zonas tribais, fazendo muitas vítimas civis. O desencargo de consciência que a guerra produz pode ser passado com a guerra invisível que matar muito mais do que jovens inseguros que morrem pela pátria sem saber o que é a pátria. Estranhamente essa forma-guerra invisível é correlata a forma-terrorista da qual não sabemos como realmente atua.



Minha hipótese é que, do ponto de vista hegeliano, a Al-Qaeda e a CIA são os dois lados de uma mesma moeda que, no nosso mundo contemporâneo, se excluem mutuamente. Existe uma coincidência dos opostos entre a democracia liberal – e suas instituições – e o fundamentalismo religioso – e suas instituições - que deixa de lado apenas... apenas quem? Sem dúvida, a esquerda é o falta para desestabilizar essa falsa oposição que dá corda do ordenamento político internacional atual.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Justiça Infinita Reloaded

Depois de receber o prêmio Nobel do Cinismo 2009, o presidente Barack Obama – de férias no Haiti – recebeu um grande desafio que o introduz na lógica política do terrorismo que até então havia sido apenas herdado de seu predecessor. Os ataques de 11 de setembro tiveram uma resposta específica da coalização neoconservadora de Georg Bush ao iniciar um período de estado de sítio internacional invadindo o Afeganistão e o Iraque num tom “quem não está conosco está contra nós”. Com o esgotamento político do mandado neoconservador, se abriu a oportunidade do novo: Barack Obama, o Lula norte-americano.

Seu discurso humanista demonstrou um tom de revitalização da ala democrata. Muitas esperanças foram depositadas sobre o novo presidente que aparentava poder transformar positivamente os aspectos negativos em que os Estados Unidos estavam metidos: crise econômica severa, guerra contra o terrorismo, desemprego em alta, falta de legitimação internacional, criminalização dos imigrantes e da pobreza em geral, etc. Entretanto, quando subiu ao poder sua margem de manobra política se mostrou muito mais limitada do que poderia esperar os “amantes da esperança negra”, aplicando uma política de continuísmo aberto, entretanto sob uma face mais harmoniosa, humana, tolerante e multiracial. A esperança se tornou uma farsa com o não-fechamento de Guantánamo – o campo de concentração pós-moderno -, políticas econômicas neoliberais sustentadas pelo Estado, aumento da agressividade bélica no Afeganistão, no Iraque, no Paquistão, no Iêmen e no Irã, continuação das políticas anti-imigrantes e um distanciamento de qualquer tipo de acordo internacional pela desaceleração da destruição ecológica global. Além disso, deu suporte ao “golpe de Estado democrático” em Honduras, aumentou a influência bélica na América Latina com novas bases no estado de exceção colombiano com um claro tom de aviso prévio ao Brasil e a Venezuela.

Para melhorar esse panorama, o espectro do terrorismo voltou. Não foi tão bombástico como o 11 de setembro, mas já deu o alerta para ficarmos atentos. Os ataques de 11 de setembro tiveram como resposta a melhor manobra conservadora possível para enfraquecer os movimentos alternativos de transformação social além de aprofundar a crença da democracia-liberal como limite histórico intransponível. Embasbacada, grande parte da esquerda aceitou a divisão entre Democracia x Terrorismo como a ação política progressista numa espécie de auto-enclausuramento. Afinal de contas, quem seria a favor do terrorismo?

Primeiramente é necessário conceber o que ocorreu no dia 11 de setembro no contexto dos antagonismos do capitalismo global. Para o filósofo esloveno Slavoj Zizek, a leitura padrão dos acontecimentos é basicamente segundo a qual existiu uma intrusão do Real que estilhaçou nossa esfera ilusória. Que o impossível ocorreu acabando com as idealidades sobre as formas com que se reproduzia a sociedade americana. Porém, ele propõe uma visão contrária: antes dos ataques ao WTC a realidade era ver os horrores pelo mundo, em especial do Terceiro Mundo como algo que estava completamente deslocado da realidade social, como algo que existia apenas como um fantasma espectral nos televisores. O que aconteceu no 11 de setembro foi uma entrada abrupta desse fantasma na realidade estadunidense. “Não foi a realidade que invadiu a nossa imagem: foi à imagem que destruiu a nossa realidade (ou seja, as coordenadas simbólicas que determinam o que sentimos como realidade). Dessa forma, “os EUA ganharam aquilo que haviam fantasiado – e essa foi a maior surpresa”.
Um importante desdobramento político do 11 de setembro foi tornar o significante terrorista um equivalente universal a todos os males sociais. Hoje é possível alugar um DVD e na sempre ridícula propaganda contra pirataria ver algo como “quando você pirateia filmes você está ajudando os terroristas”. O terrorista se tornou um x equiparável ao Judeu Errante unificando a imagem do fundamentalista reacionário e o militante de esquerda numa ótima obra política sem dúvidas fukuyamista – da qual grande parte da esquerda bateu palmas.

Sabemos que diante desse último ataque terrorista capenga e falho que só podemos ouvir falar pela mídia burguesa internacional, a segurança nacional (interna e externa) vai aumentar sua atuação a partir dessa desculpa política. A primeira resposta governamental de Obama ao ataque foi: “aqueles que matariam homens, mulheres e crianças inocentes precisam saber que os Estados Unidos estão fazendo mais do que simplesmente fortalecer nossas defesas".

Como resposta oficialmente terrorista ao ataque frustrado a um avião da Northwest Airlines sobre Detroit, um comunicado advindo de uma misteriosa divisão regional da Al Quaeda na península Árabe escreveu que "nós dizemos ao povo americano que, como vocês apoiam os líderes que matam nossas mulheres e crianças, nós vamos matar vocês e atacar sem nenhum alerta prévio. Nossa vingança está próxima". Em outra parte do comunicado ainda atingem a moralidade liberal-democrata escrevendo que “nós preparamos homens que amam morrer”. Que monstros!

Entrementes, em nossa era pós-política dominada pelo fetiche da democracia-liberal, é o terrorismo que dá suporte ao imaginário fukuyamista. Entretanto, Democracia e Terrorismo são os dois lados de uma mesma moeda que na sua inércia histórica encontra hoje a esquerda fora do lugar e, assim, derrapando e se auto-sabotando.
Atentemo-nos!

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Golpes de Estado Democráticos

Um espectro ronda novamente a América Latina: o risco dos golpes de Estados. Não são aqueles golpes de Estado como o de 1964 no Brasil. São qualitativamente diferentes. Não são golpes para implementar uma ditadura estrito senso e sim, paradoxalmente, golpes de Estado democráticos que, por mais que tenha um conteúdo militar-policial-fascista, são envoltos pelo véu retórico da democracia liberal.


A direita está retornando (e na sua pior face) ao palco político agressivamente. Perdeu espaço e visibilidade social com a subida ao poder de governos de centro-esquerda e esquerda na América Latina que barraram ou maquiaram o radical processo de neoliberalização. No caso brasileiro a questão é mais paradoxal ainda: a subida de Lula ao poder deu legitimidade ao continuísmo macroeconômico e ao processo de expansão do capital – produtivo e financeiro - brasileiro a outras áreas da América Latina. É uma espécie de unidade dos contrários que deixou a direita paralisada, mas apenas temporariamente. Ela também está preparando a sua unidade de contrários composta pelo discurso democrático, práticas privatizantes e linha dura política e policial.


Portanto, o tempo de aparente calmaria está acabando. Honduras deu o passo inicial no que fico tentado de chamar de “golpe de estado democrático”, articulado pela direita rumo à intensificação do “neoliberalismo com características latino-americanas”. O Chile talvez seja tenha uma vitória eleitoral da direita e no Paraguai de Fernando Lugo está sendo planejado para 2010 a mesma forma do “golpe hondurenho”. Recentemente o senador liberal Alfredo Luís Jaeggli demonstrou a unidade dos contrários da direita defendendo o julgamento político e o afastamento do presidente do Paraguai e disse que defende os golpistas hondurenhos, o modelo econômico de Pinochet no Chile, as reformas privatizantes de Menem e Fernando Henrique. Quando perguntado sobre a articulada saída forçada de Lugo para a “modernização” do país respondeu: “pelo menos é isso que eu penso e a idéia de muitos outros. Nós não podemos andar para trás, nós temos que impulsionar uma revolução. Nós tivemos 60 anos de ditadura, de castigo, de vandalismo. Nós temos que democratizar, tornar esse país atraente para investidores externos...” Como se vê esse discurso mistura o apelo as lutas democratizantes (a muito tempo esgotadas), uma revolução (seja lá o que isso signifique), abertura ao capital externo e uma crítica cínica a ditadura dos anos 60. É uma constelação ideológica meio Frankstein, mas que esquerda não pode cair por seus tons “democratizantes” e “pós-políticos”.


Com o desdobramento da atual crise o nó que juntava milagrosamente democracia e capitalismo se desatou. Isso possibilita com que a direita de aproprie do discurso “democratizante” facilmente apontando qualquer tipo de transformação social como essencialmente ditatorial – e além de tudo como representantes da terceira via. Hoje a democracia é um obstáculo as lutas progressistas. Mas atentemo-nos, o futuro nos reserva impactos profundos como vários tipos de governos “democráticos” a lá Berlusconi pipocando pelo mundo.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Aviso de incêndio: o enfraquecimento do "marinismo" no PSOL

A possibilidade real de que Marina Silva seja a candidata a presidente numa aliança PSOL-PV está se distanciando de nosso horizonte. Isso nao quer dizer que a luta esteja ganha. Longe disso, o desafio começa a pegar fogo. De qualquer forma, esse movimento parece ser tanto interno como externo ao PSOL. Analisemos.


Por um lado choveram diversos tipos de indignações da militância devida a obscenidade da potencial aliança articulada pela cúpula chefiada por Sra. Heloísa Helena. Lembremos que para a Sra. Heloísa Helena seria Marina Silva o único nome capaz de “promover o debate do desenvolvimento sustentável com inclusão social”. Com certeza o nome de Marina Silva seria o melhor para uma bandeira baseada no desenvolvimento sustentável, mas o que isso tem a ver com o PSOL? Isso quer dizer que o PSOL luta por um “desenvolvimento sustentável com inclusão social”? Contra essa (im)postura, diversas discussões e resoluções foram feitas em diferentes partes do Brasil pressionando a cúpula que já estava articulando ativamente essa aliança. Ponto positivo.


Talvez a lição de Marina Silva valha para Heloísa Helena, por mais que só tardiamente isso seja claro. Nenhuma delas conseguiu quebrar com o petismo realmente existente. Estão no final das contas lutando por um capitalismo mais humano, mais tolerante, mais ecológico e mais sustentável. Segundo a própria Marina “em linhas gerais, acho que o estado não deve se colocar como uma força que suplanta a capacidade criativa do mercado. Nem o estado deve ser onipresente, nem o mercado deve ser deificado. Também gosto da idéia do Banco Central com autonomia, como está, mas acho que estão certos os que defendem juros mais baixos”. Em outras palavras, ela é a favor da terceira via. O PSOL também é?


Por outro lado, as aparições, testemunhos e opiniões públicas da Sra. Marina Silva e do PV enfatizaram sempre, de forma explícita, seu “caminho do meio” baseado no continuísmo econômico e político. Em síntese, a Sra. Marina Silva se mostrou como uma espécie de Lula Light: quando ao essencial absolutamente nenhuma mudança entretanto com forma descafeínada. Em outras palavras, seu horizonte é um capitalismo mais humano, ecológico e tolerante. O último acontecimento desse porte é recente. No dia 19 desse mês a direção nacional do PV encaminhou uma carta a Executiva do PSOL que diz claramente o óbvio: o PV não é um partido de esquerda e nem se propõem a ser. Ao contrário, é um partido essencialmente neutro diante de uma oposição tanto ao Lula quanto o PSDB e o DEM que defendem “um novo modelo de desenvolvimento econômico, capaz de dar o passo seguinte das políticas sociais dos últimos governos assegurando a plena cidadania do povo brasileiro”. Passo seguinte? Como se daria isso? Eles nos dão uma pista: com o “indispensável o fortalecimento do papel do Estado” sabendo que “o limite para atuação dos movimentos sociais é o estado democrático de direito”. Paradoxalmente esse é exatamente o discurso neoconservador que está emergindo com o desdobramento da atual crise global.


Como bem notou a jornalista Luciana Araújo, em última análise o PV defende o “estado democrático de direito que preserva a Cutrale – doadora de campanha do PV que se auto-intitula proprietária de terras da União – e criminaliza o MST, o MTL e todos os movimentos sociais que lutam pelo direito à terra para plantar. Aqui o PV sinaliza concretamente que é contrário às ocupações de terras, ao questionamento ativo da propriedade privada”. Isso para não falar da criminalização da pobreza empreendida pelo Estado contra as favelas por exemplo.


Lembremos que o PSOL é um partido socialista e, portanto, é no mínimo importante que sua resistência não ajude a reproduzir o atual estado de coisas como a ala da terceira via dominante em nosso capitalismo contemporâneo, o que seria o efeito mínimo de uma aliança com o PV.


O grande desafio da esquerda hoje no Brasil é um programático distanciamento tanto da direita (PSDB) como da esquerda-liberal (PT). Para tal empreendimento, reconstruir um projeto socialista para além dessa dicotomia está na ordem do dia. Já temos um nome para essa necessária reconstrução de um projeto unificador anticapitalista da esquerda no Brasil: Plínio Arruda Sampaio.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

DE HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE A DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO, E VOLTA

Texto do Sr. Slavoj Zizek



História e consciência de classe (1923), de Georg Lukács, é um dos poucos verdadeiros eventos na história do marxismo. Hoje, nossa experiência do livro é apenas como de uma estranha lembrança fornecida por uma época já distante – para nós, é até mesmo difícil imaginar o impacto verdadeiramente traumático que seu aparecimento teve nas posteriores gerações de marxistas. O próprio Lukács, na sua fase termidoriana, i. e., do começo dos anos trinta em diante, tentou desesperadamente se afastar dele, tratando-o como um documento com mero interesse histórico. Aceitou que fosse reeditado apenas em 1967, fazendo-o acompanhar de um
novo e longo Prefácio autocrítico. O livro teve, até que essa reedição “oficial”
aparecesse, uma espécie de existência fantasmagórica e subterrânea como uma entidade “não morta”, que circulava em edições piratas entre estudantes alemães da década de sessenta, estando também disponível em poucas e raras traduções (como a legendária edição francesa de 1959). No meu próprio país, a agora defunta Iugoslávia, referir-se a História e consciência de classe servia como um signe de reconnaissance ritualístico para saber se se fazia parte do círculo marxista crítico reunido em torno da revista Praxis. Seu ataque à noção de Engels de “dialética da natureza” foi crucial para a rejeição crítica da crença que a proposição central do “materialismo dialético” seria a teoria do conhecimento “reflexiva”. O impacto
do livro esteve longe de se restringir a círculos marxistas: mesmo Heidegger foi claramente afetado por História e consciência de classe, havendo alguns sinais inconfundíveis disso em O ser e o tempo. Até no último parágrafo, o autor, numa clara reação à crítica de Lukács à “reificação”, pergunta: “há muito tempo sabemos que existe o perigo da ‘reificação da consciência’. Mas o que significa reificação [verdinglichung]? Qual é sua origem?... A ‘diferença’entre ‘consciência’ e ‘coisa’ é o bastante para haver um desenvolvimento pleno do problema ontológico?”1
Como, então, História e consciência de classe passou a ter um status de livro proibido quase-mítico, cujo impacto foi talvez comparável apenas ao de Pour Marx, escrito pelo posterior grande antípoda antihegeliano de Lukács, Louis Althusser?2 A resposta que primeiro vem à mente é evidentemente que estamos discutindo o texto fundador de todo o marxismo ocidental de inspiração hegeliana. Nessa linha, o livro combina uma postura revolucionária engajada com temas que foram mais tarde
desenvolvidos pelas diferentes linhas da chamada Teoria Crítica chegando até os Estudos Culturais de nossos dias (por exemplo, a noção de que seriam componentes estruturais de toda a vida social o “fetichismo da mercadoria”, a “reificação” e a “razão instrumental” etc). No entanto, olhando mais de perto, as coisas aparecem numa luz ligeiramente diferente: há uma quebra radical entre História e consciência de classe (mais precisamente, entre os trabalhos de Lukács escritos em torno de 1915 a 1930, inclusive seu Lenin de 1925, e uma série de outros textos curtos desse período publicados nos anos sessenta sob a rubrica Ética e política), e a posterior tradição do marxismo ocidental. O paradoxo (ao menos, para nossa sensibilidade “póspolítica” ocidental) é que História e consciência de classe é um livro filosoficamente muito sofisticado, comparável às maiores realizações do
pensamento não-marxista do período, ao mesmo tempo que também está inteiramente envolvido nas lutas políticas de seu tempo, refletindo a radical experiência política leninista do autor (entre outras coisas, Lukács foi comissário da cultura na curta experiência do governo comunista da Hungria de Bela Kun em 1919). O paradoxo é que, em comparação com o marxismo ocidental “padrão” da Escola de Frankfurt, História e consciência de classe é ao mesmo tempo muito mais engajado politicamente como filosoficamente é muito mais marcadamente hegeliano-especulativo (veja, por exemplo, a noção do proletariado como sujeito e objeto da história, idéia
com a qual os membros da Escola de Frankfurt nunca sentiram-se confortáveis).

Se é que houve algum dia um filósofo do leninismo e do Partido Leninista, o Lukács marxista dos primeiros dias foi quem avançou mais longe nessa direção, chegando a defender os elementos “não democráticos” do primeiro ano do regime soviético contra a famosa crítica de Rosa Luxemburgo. O crítico acusou a revolucionária de “fetichizar” a democracia formal, ao invés de tratá-la como uma das possíveis estratégias a ser utilizadas ou rejeitadas a fim de fazer avançar a situação revolucionária concreta.Atualmente, aquilo que mais se deve evitar é precisamente esquecer o aspecto político do livro, o que corresponderia a reduzir Lukács a um
respeitável crítico cultural, que nos adverte sobre a “reificação” e a “razão
instrumental”, motivos que já foram há um bom tempo apropriados até mesmo pelos críticos conservadores da “sociedade do consumo”.

Como texto fundador do marxismo ocidental, História e consciência de classe é uma exceção que, entretanto, mais uma vez, confirma a idéia de Schelling de que “o início é a negação daquilo que se inicia com ele”. No que se baseia esse status excepcional? Em meados dos anos vinte, aquilo que Alain Badiou chama de “evento de 1917” começou a exaurir seu potencial revolucionário, ao mesmo tempo que o processo tomava uma viragem termidoriana. Com a exaustão da “sequência revolucionária de
1917” (Badiou), já não era mais possível um engajamento teórico-político
direto, como o que aparece em História e consciência de classe de Lukács.
O movimento socialista definitivamente rachou entre o reformismo parlamentar
social-democrata e a nova ortodoxia stalinista, enquanto o marxismo ocidental, que se absteve de apoiar abertamente qualquer um dos dois pólos, abandonou o envolvimento político direto e tornou-se uma parte da máquina acadêmica existente, estabelecendo, a partir daí, uma tradição que vai da Escola de Frankfurt até os atuais Estudos Culturais. Aí está a principal diferença que separa essa tradição do Lukács da década de vinte. Por outro lado, a filosofia soviética foi gradualmente assumindo a forma de “materialismo dialético”, funcionando como a ideologia de legitimação do “socialismo realmente existente” – é mesmo sinal da ascensão da ortodoxia soviética termidoriana os violentos ataques desferidos contra Lukács e
seu companheiro teórico Karl Korsch, cujo Marxismo e filosofia é uma espécie de peça de acompanhamento à História e consciência de classe, ambos publicados em 1923.

O momento de viragem foi o quinto congresso do Comintern de 1924, o primeiro congresso após a morte de Lênin, e também o primeiro a transcorrer depois que ficou claro que a onda revolucionária tinha se exaurido na Europa e que o socialismo russo teria que sobreviver por conta própria. Na sua famosa intervenção nesse congresso, Zinoviev fez questão de desferir um ataque antiintelectualista e de fácil apelo contra os desvios “ultra-esquerdistas” de Lukács, Korsch e outros “professores”, como
depreciativamente referiu-se a eles, apoiando, assim, a crítica de Laszlo
Rudas, companheiro de Lukács no partido húngaro, contra seu “revisionismo”.
Mais tarde, as principais críticas a Lukács e Korsch passaram a ser fornecidas por Abram Deborin e sua escola filosófica, na época dominante na União Soviética (apesar de posteriormente ter sido expurgada sob a acusação de “idealismo hegeliano”). Escola essa que foi a primeira a sistematicamente desenvolver a concepção de que o marxismo seria um método dialético com validade universal, capaz de elaborar leis gerais que poderiam ser aplicadas tanto à análise dos fenômenos naturais como dos sociais – a dialética marxista é estripada, dessa forma, de sua atitude prático-revolucionária, que leva ao engajamento direto, e transforma-se numa teoria
epistemológica geral que lida com as leis universais do conhecimento científico.
Como notou Korsch, logo depois desses debates, críticas vindas dos inimigos declarados, o Comintern e o “revisionismo” social-democrata, basicamente repetiam os mesmos contra-argumentos contra ele e Lukács, denunciando seu “subjetivismo” (na verdade, o engajamento prático da teoria marxista etc.). Já não se podia admitir tal posição numa época em que o marxismo estava transformando-se numa ideologia de Estado cuja raison d’être última era legitimar as pragmáticas decisões do Partido por
meio das não-históricas (“universais”) leis da dialética. Sintomático disso
é a reabilitação da idéia de que o materialismo dialético seria a “visão de
mundo [Weltanschaung] da classe trabalhadora”. Para Lukács e Korsch, assim como para o próprio Marx, por definição, “visão de mundo” designa a atitude “contemplativa” da ideologia, que a engajada teoria revolucionária
marxista deveria superar.

Evert Van der Zweerde3 descreveu em detalhes a utilização ideológica
pelo regime soviético da filosofia do materialismo dialético, pretensamente
a “visão de mundo científica da classe trabalhadora”. Apesar do materialismo dialético reconhecer ser uma ideologia,não é a ideologia que proclama ser. Não motivou, mas legitimou atos políticos; não se deveria, assim, acreditar nela, mas ritualmente encená-la. Sua reivindicação de que era uma “ideologia científica” e, consequentemente, a “reflexão correta” das circunstâncias sociais excluía a possibilidade que existisse uma ideologia “normal” na sociedade soviética, já que ela “refletiria” a realidade social de uma maneira “errada” etc. Perde-se, por conseqüência, inteiramente o fio da meada ao se tratar o infame diamat como um sistema filosófico genuíno. Ele funcionava, na verdade, como o instrumento de
legitimação do poder que deveria ser ritualmente encenado e, como tal, é
melhor colocá-lo na densa teia de relações de poder. Emblemático disso
são os diferentes destinos de I. Iljenkov e P. Losev, quase protótipos de
filósofos russos durante o socialismo. Losev foi o autor do último livro
publicado na URSS (em 1929) a rejeitar abertamente o marxismo, que
descartava como “óbvia perda de tempo”. No entanto, depois de uma
pequena temporada na prisão, lhe foi permitido retomar sua carreira
acadêmica e, durante a Segunda Guerra, voltar a dar aulas. A “fórmula”
que encontrou para sobreviver foi refugiar-se na história da filosofia
(estética) especializando-se numa disciplina acadêmica, onde dedicava-se
ao estudo de autores gregos e romanos. Aparentemente narrando e interpretando
o pensamento de autores antigos, especialmente Plotino e outros
neoplatônicos, pôde contrabandear suas próprias teses místicas, ao mesmo
tempo que, nas introduções a seus livros, macaqueava a ideologia oficial
com uma citação ou duas de Khruschev ou Brezhnev. Dessa forma, foi
capaz de sobreviver a todas as vicissitudes do socialismo e viveu para ver
o fim do comunismo, consagrado como o decano da autêntica herança
espiritual russa! Em contraste, Iljenkov, um soberbo dialético e especialista
em Hegel, tornou-se, como marxista-leninista convicto, uma figura
descolada. Por essa razão (i.e. porque escrevia de uma maneira que revelava
seu envolvimento pessoal com o que escrevia, procurando fazer do
marxismo uma filosofia séria e não o equivalente a uma série de fórmulas
ritualísticas de legitimação4), foi excomungado e levado ao suicídio. Será
que é possível encontrar melhor demonstração de como uma ideologia
efetivamente funciona?

Num gesto que corresponde a um termidor pessoal, Lukács, no início dos anos trinta, refugiou-se nas águas mais especializadas da estética e da teoria literária marxista, justificando seu apoio público às políticas stalinistas com base na crítica hegeliana à bela alma. A União Soviética, inclusive todas suas dificuldades não previstas, foi o resultado da Revolução de Outubro, portanto, ao invés de condená-la a partir da posição confortável da bela alma e, assim, manter as mãos limpas, se deveria reconhecer corajosamente “o cerne da encruzilhada do presente” (a fórmula de Hegel para a reconciliação pós-revolucionária). Adorno estava inteiramente
justificado ao designar sarcasticamente esse Lukács como alguém que confundiu
o barulho de suas correntes com a marcha triunfante do Espírito Universal, e, consequentemente, apoiou a “reconciliação à força” do indivíduo e da sociedade nos países comunistas do leste europeu.5 Apesar de tudo, o destino de Lukács nos leva a confrontar o difícil problema da emergência do stalinismo. É até excessivamente fácil contrastar o espírito autenticamente revolucionário do “Evento de 1917” com
seu posterior termidor stalinista – o verdadeiro problema é saber “como a partir de lá chegamos aonde chegamos”. A grande tarefa, como foi enfatizado por Alain Badiou, é de pensar a necessidade da evolução no interior do leninismo em direção ao stalinismo sem negar o tremendo potencial emancipador do Evento de outubro, e também sem cair no velho papo furado liberal sobre o potencial “totalitário” da política emancipadora radical, que sugere que toda revolução leva a uma repressão pior do que a antiga. Ao mesmo tempo que se deve reconhecer que o stalinismo é inerente à lógica
revolucionária leninista e não o fruto de alguma influência corruptora externa,
como o “atraso russo” ou a postura ideológica “asiática” das massas, é
necessário continuar a fazer uma análise concreta da lógica do processo
político e, a todo custo, evitar usar conceitos imediatos quase-antropológi
cos ou genericamente filosóficos, como “razão instrumental”. A partir do
momento que aceitamos tal postura, o stalinismo perde sua especificidade,
sua dinâmica política particular, e transforma-se apenas num outro exemplo
da noção geral. Exemplo disso é o famoso comentário de Heidegger, na sua
Introdução à metafísica, de que o comunismo russo e o americanismo são, do ponto de vista histórico, “metafisicamente iguais”.

É evidente que, no interior do marxismo ocidental, a Dialética do
esclarecimento, de Adorno e Horkheimer, e os diversos ensaios posteriores
de Horkheimer sobre a “razão instrumental” levaram à mudança fatal, de
análises sociopolíticas concretas às generalizações antropofilosóficas. A
transformação exige que, ao reificar a “razão instrumental”, ela mesma deixe
de se basear em relações capitalistas concretas, para tornar-se, de maneira
praticamente imperceptível, o “princípio” ou “fundação” quase-transcendental.
Junto com essa mudança, a tradição da Escola de Frankfurt evita quase
inteiramente a confrontação teórica direta com o stalinismo, o que contrasta
claramente com sua obsessão com o anti-semitismo fascista. As exceções a
essa regra são reveladoras. O Behemoth, de Fraz Neumann, um estudo do
nacional-socialismo que, da maneira bastante comum no final dos anos trinta
e quarenta, sugere que os três grandes sistemas mundiais da época – o
emergente capitalismo do New Deal, o fascismo e o stalinismo – tenderiam
a levar à mesma sociedade “administrada”, burocrática e inteiramente organizada.
Da mesma forma, O marxismo soviético, de Herbert Marcurse, seu
menos apaixonado e, talvez, pior livro, estranhamente traz uma análise neutra,
sem nenhum engajamento claro, sobre a ideologia soviética. Finalmente,
há tentativas de alguns discípulos de Habermas que, ao refletirem sobre o
então fenômeno nascente da dissidência, tentaram elaborar um conceito de
sociedade civil como o espaço onde apareceria a resistência ao regime comunista.
Politicamente essas análises são interessantes, mas não oferecem uma
teoria global satisfatória da especificidade do “totalitarismo” stalinista.6 A
desculpa padrão, segundo a qual os autores clássicos da Escola Frankfurt não
queriam se opor abertamente ao comunismo já que, ao fazerem isso, domesticamente
estariam fazendo o jogo daqueles que eram favoráveis ao capitalismo
e à Guerra Fria, é evidentemente insuficiente. Na verdade, o ponto central
não é que seu medo de servirem ao anticomunismo oficial provaria como
eram secretamente pró-comunistas, mas, o oposto. Se fossem realmente
colocados contra a parede para definirem sua posição na Guerra Fria, os
membros da Escola de Frankfurt provavelmente escolheriam a democracia
liberal ocidental (como fez explicitamente Horkheimer em alguns de seus
últimos escritos). No final das contas, essa solidariedade com o sistema ocidental,
quando ele esteve realmente ameaçado, é o que os teóricos de
Frankfurt tinham vergonha de assumir publicamente, o que contrasta com a
“oposição crítica socialista e democrática” na República Democrática
Alemã, que criticava abertamente o domínio do Partido. Mas no momento
em que a situação se agravou e o socialismo passou realmente a ser ameaçado,
eles (Brecht nas manifestações de trabalhadores em 1953, Christa Wolf
na Primavera de Praga em 1968) passaram a apoiar o sistema abertamente...
O “stalinismo” (o socialismo realmente existente) foi, assim, um assunto
traumático para a Escola de Frankfurt, sobre o qual ela preferiu se calar. Esse
silêncio foi a única maneira que seu intelectuais encontraram para manter
uma inconsistente posição de solidariedade implícita com a democracia liberal
ocidental, sem perder a máscara oficial de críticos esquerdistas “radicais”.
Se assumissem abertamente essa solidariedade perderiam sua aura
“radical”, convertendo-se em meramente mais uma versão liberal esquerdista
e anticomunista da Guerra Fria, enquanto que se demonstrassem muita simpatia
pelo “socialismo realmente existente” seriam forçados a trair seus verdadeiros
compromissos não assumidos.

Apesar da tarefa de explicar a ascensão do stalinismo estar além
do escopo deste ensaio, somos tentados a arriscar um curto comentário preliminar
sobre ela. Todo marxista se lembra do comentário de Lenin, nos
seus Cadernos filosóficos, de que aquele que não leu e estudou cuidadosamente
toda a Ciência da lógica de Hegel não pode realmente entender O
capital de Marx. Na mesma linha, somos tentados a afirmar que quem não
leu e estudou com cuidado os capítulos sobre “Julgamento” e “Silogismo”
da Lógica de Hegel não pode realmente entender a emergência do stalinismo.
Isto é, a lógica da emergência do fenômeno histórico pode ser melhor
entendida com base na sucessão das três formas de mediação silológica,
que vagamente correspondem à tríade marxismo-leninismo-stalinismo. Os
três termos mediados (o Universal, o Particular e o Singular) representam
a História (o movimento histórico universal), o proletariado (a classe particular
que tem uma relação privilegiada com o Universal) e o Partido
Comunista (o agente singular). Na primeira forma marxista clássica de
mediação, o Partido realiza a mediação entre a História e o proletariado:
sua ação permite que a classe trabalhadora “empírica” torne-se consciente
da missão histórica inscrita em sua própria situação social e aja de acordo
com ela, i.e., torna-se sujeito revolucionário. A ênfase está na atitude
“espontaneamente” revolucionária do proletariado: o Partido apenas
desempenharia um papel maiêutico, tornando possível a conversão, meramente
formal, do proletariado de classe-em-si para classe-para-si. No
entanto, como é sempre o caso em Hegel, a “verdade” dessa mediação está
que, no curso do movimento, a posição inicial, a identidade presumida, é
falsificada. Na primeira forma, a identidade presumida é entre o proletariado
e a História, i.e., a idéia de que a missão revolucionária de libertação
universal está inscrita na própria condição social objetiva do proletariado
como “classe universal”, classe cujos interesses particulares confundem-se
com os interesses universais da humanidade. O terceiro termo, o Partido, é
meramente o operador que realiza esse potencial universal do particular. É
palpável, porém, que no curso da mediação o proletariado atinja “espontaneamente”
apenas uma consciência economicista e reformista, o que nos
leva à conclusão leninista: a constituição do sujeito revolucionário só é
possível quando os intelectuais do Partido compreenderem a lógica interna
do processo histórico e, de acordo com ela, “educarem” o proletariado.
Nessa segunda forma, o proletariado tem seu papel reduzido ao de mediador
entre a História (o processo histórico global) e a consciência científica
a respeito dela internalizada no Partido. Depois de compreender a lógica
interna do processo histórico, o Partido “educa” os trabalhadores, que
serão o instrumento consciente da realização do fim da história. A identidade
pressuposta nessa segunda forma é entre o Universal e o Singular, a
História e o Partido, i.e., a concepção de que o Partido como “intelectual
coletivo” compreende o processo histórico. Esse pressuposto é melhor
entendido com a superação dos aspectos “subjetivo” e “objetivo”. A noção
da História como um processo objetivo ao qual correspondem leis
necessárias é estritamente correlata com a dos intelectuais do Partido como
Sujeitos cujo conhecimento privilegiado – compreensão – do processo possibilita
a intervenção e direção do processo. Como era de se esperar, é esse
pressuposto que é falsificado no curso da segunda mediação, levando à terceira,
“o Stalinismo”, forma de mediação que contém a “verdade” de todo
o movimento, no qual o Universal (a História ela mesmo) faz a mediação
entre o proletariado e o Partido. Em termos simplistas, o Partido apenas usa
a referência à História – i.e., sua doutrina, “o materialismo histórico e
dialético”, para garantir seu acesso privilegiado à “necessidade inexorável
do progresso histórico” – a fim de legitimar sua dominação e exploração
sobre a classe trabalhadora. Ela fornece, dessa forma, às decisões pragmáticas
e oportunistas do Partido uma espécie de “justificativa ontológica”.
Em termos da coincidência especulativa dos opostos, ou do “julgamento
infinito”, em que o mais alto coincide com o mais baixo, não deixa de ser
significativo que os trabalhadores soviéticos eram acordados de manhã
cedo pela música tocada por amplificadores que reproduziam os primeiros
acordes da Internacional. Suas palavras, “De pé, ó vítimas da fome!” passa
a ter um significado irônico mais profundo: a “verdade” última do significado
patético original (“Bem unidos façamos, nesta luta final, uma terra
sem amos, a Internacional!”) passa a ser seu significado literal, o apelo
dirigido aos trabalhadores cansados “De pé, ó vítimas da fome, comecem
a trabalhar para nós, a nomenklatura do Partido!”.

Se, nessa tríplice mediação silológica da História, do proletariado
e do Partido, cada forma de mediação é a “verdade” da precedente, então
o Partido, que instrumentaliza a classe trabalhadora para realizar seu fim,
justificado que está na compreensão correta que teria da lógica interna do
processo histórico, é a “verdade” da noção de que o Partido possibilitaria ao
proletariado tomar consciência da sua missão histórica, descobrindo seu
“verdadeiro” interesse. A exploração brutal da classe trabalhadora pelo
Partido seria, dessa forma, a “verdade” da idéia de que por meio dela o
Partido realiza sua compreensão da História. Será que isso significa que esse
movimento é inexorável, que estamos lidando com uma lógica de ferro com
base na qual, a partir do momento que aceitamos o ponto de partida – a premissa
que o proletariado, devido à sua posição social, é a “classe universal”
– ficamos presos, numa espécie de compulsão diabólica, a sermos conduzidos,
no final do caminho, ao Gulag? Se isso fosse verdade, História e consciência
de classe, apesar de (ou devido a) seu brilho intelectual, seria o
texto fundador do stalinismo, e a crítica pós-moderna do livro, segundo a
qual ele seria a manifestação última do essencialismo hegeliano, assim
como a identificação, por parte de Althusser, do hegelianismo com o stalinismo
(a necessidade teleológica de toda a História progredir em direção à
revolução proletária, momento decisivo, em que o proletariado como sujeito
e objeto da História, a “classe universal” tornada consciente pelo Partido da
missão inscrita em sua posição social objetiva, realiza o ato revelador de sua
própria libertação) estariam inteiramente justificados. A reação violenta dos
partidários do “materialismo dialético” à História e consciência de classe
seria apenas uma confirmação da regra de Lucien Goldman a respeito de
como uma ideologia dominante precisa necessariamente negar suas premissas
fundamentais. Dessa perspectiva, a noção megalomaníaca, que Lukács
toma emprestado de Hegel, do Partido leninista como correspondendo ao
espírito da história, já que ele seria o “intelectual coletivo” do proletariado,
sujeito e objeto da História, seria a “verdade” escondida por trás da
aparentemente mais modesta versão “objetivista” do stalinismo sobre como
a atividade revolucionária estaria baseada num processo ontológico global
dominado por leis dialéticas universais. E, claro, seria fácil desconstruir o
conceito hegeliano da identidade do Sujeito e Objeto com base na premissa
básica do desconstrutivismo de que o sujeito emerge precisamente de/como
ausência de Substância (Ordem das Coisas objetiva), que há subjetividade
apenas quando existe uma “rachadura no edifício do Ser”, na medida em
que o universal está, de alguma maneira, “fora dos trilhos”, “é descontínuo”.
Em poucas palavras, a realização completa do sujeito não só falha sempre,
mas aquilo a que Lukács não prestou atenção já seria um modo de subjetividade
“imperfeita”, sujeito frustrado e, efetivamente, o próprio sujeito. A
versão “objetivista” stalinista seria, portanto, por razões estritamente filosóficas,
a “verdade” de História e consciência de classe. Como, por definição,
o sujeito sempre falharia, sua completa realização como Sujeito e Objeto da
História necessariamente levaria ao seu próprio cancelamento, sua autoobjetivação
como instrumento da História. Indo mais além, seria fácil de
defender, contra esse impasse hegelo-stalinista, a posição pós-moderna de
Laclau, de que a contingência radical seria o próprio terreno da subjetividade
(política). Universais políticos deveriam ser entendidos como conceitos
“vazios”, a ligação entre eles e o conteúdo particular que os hegemoniza
devendo ser buscada naquilo que envolve a disputa ideológica, por sua
vez, inteiramente contingente. O que equivale a dizer que o sujeito político
tem sua missão universal inscrita na sua condição social “objetiva”.
Mas é isso que História e consciência de classe realmente sugere?
Será que se pode deixar de prestar atenção a Lukács em razão dele
ser um defensor do argumento pseudo-hegeliano de que o proletariado
seria o Sujeito e Objeto da História? Voltemos ao contexto político concreto
de História e consciência de classe, no qual Lukács agia como um revolucionário
engajado. Colocando as coisas em termos crus e simplistas, a
escolha, para as forças revolucionárias na Rússia de 1917, em que a burguesia
era incapaz de levar a cabo a revolução democrática, colocava-se
nos seguintes termos. Por um lado, havia a postura menchevique de obedecer
à lógica “do desenvolvimento das etapas objetivas”: realizando
primeiro a revolução democrática, depois a revolução proletária. Assim, no
remoinho de 1917, os partidos radicais, ao invés de capitalizar a desintegração
progressiva do aparato de Estado e construir, com base no descontentamento
popular generalizado, uma alternativa revolucionária, deveriam
resistir à tentação de empurrar o movimento longe demais, sendo presumivelmente
melhor aliar-se com elementos democráticos burgueses a fim
de “amadurecer” a situação revolucionária. Desse ponto de vista, a tomada
de poder por parte de socialistas em 1917, quando a situação ainda não
estava “madura”, levaria à volta ao terror primitivo... (Apesar de hoje o
temor das consequências catastróficas de um levante “prematuro” poder
parecer antecipar o Stalinismo, a ideologia do stalinismo leva, de fato, a um
retorno a essa lógica “objetivista” dos estágios necessários de desenvolvimento.)
Por outro lado, a estratégia leninista era de antecipar-se, lançandose
por inteiro no paradoxo da situação, aproveitando as oportunidades e
intervindo mesmo quando as condições eram “prematuras”, com a aposta
que a própria intervenção “prematura” mudaria a relação de forças
“objetivas”, dentro da qual a situação inicialmente parecia ser “prematura”.
Isto é, ela minaria o próprio padrão de referência, que nos informa que
a situação era “prematura”.

Nessa linha, é preciso tomar cuidado para não perder o fio da meada: não é que Lenin, diferentemente dos mencheviques e dos céticos no interior do Partido Bolchevique, acreditasse que a complexa situação de 1917, i.e., a crescente insatisfação das massas com as políticas irresolutas do governo provisório, oferecesse uma chance única de “pular” uma fase (a revolução democrática burguesa), ou de “condensar” os dois estágios consecutivos necessários (a revolução democrático burguesa e a revolução proletária) num só. Tal raciocínio mantém a mesma lógica objetiva “reificada” dos “estágios necessários de desenvolvimento”, mas aceita que existiria um ritmo diferente de evolução em variadas circunstâncias concretas (i.e., em alguns países, o segundo estágio poderia suceder imediatamente ao
primeiro). O argumento de Lênin é muito mais forte. Em última instância,
não há nenhuma lógica objetiva dos “estágios de desenvolvimento necessários”, já que “complicações” aparecem na intricada textura das situações concretas e/ou os resultados não antecipados de intervenções “subjetivas” sempre bagunçam sua evolução normal. Como Lenin gostava de observar, o colonialismo e a superexploração das massas na Ásia, África e América Latina afeta e “desloca” radicalmente a luta de classes “normal” nos países capitalistas avançados. Falar de “luta de classes” sem levar em conta o colonialismo é uma abstração vazia, que, quando se traduz em
política concreta, pode apenas resultar na aceitação do papel “civilizador”
do colonialismo. Portanto, ao subordinar a luta anticolonialista das massas
asiáticas à “verdadeira” luta de classes nos Estados capitalistas avançados,
a burguesia passaria a definir de facto os termos da luta de classes... (Mais
uma vez, aqui se pode notar uma proximidade não esperada com a idéia althusseriana da “sobredeterminação”. Não há nenhuma regra última que permita traçar “exceções”. Na história real, há apenas exceções.) É também tentador utilizar termos lacanianos sobre isso. O que está em jogo nessa fórmula alternativa é a (não) existência do “grande Outro”. Os mencheviques acreditavam nas bases auto-suficientes da lógica positiva do desenvolvimento histórico, enquanto os bolcheviques (ao menos Lenin) tinham consciência de que “o grande Outro não existe”. A intervenção apolítica não
acontece a partir das coordenadas dadas por uma matriz global subjacente,
já que o que ela faz é precisamente “reelaborar” essa matriz global. Essa é a razão por que Lukács admirava tanto Lenin. Seu Lenin era aquele que, diante da disputa na Social-Democracia russa entre bolcheviques e mencheviques sobre quem deveria ser membro do partido, escreveu: “Por algumas vezes, todo o destino do movimento operário pode, por certo tempo, ser decidido por uma ou duas palavras presentes no programa do partido.” Ou o Lenin que quando percebeu, no fim de 1917, a possibilidade
de tomada revolucionária do poder disse: “A História nunca nos perdoará se desperdiçarmos a oportunidade!” Num nível mais geral, a história do capitalismo é uma longa história de como a referência ideológica predominante foi capaz de cooptar (e diluir o potencial subversivo) dos movimentos e demandas que pareciam ameaçar sua própria sobrevivência. Por exemplo, por um bom tempo, libertários em matéria sexual acreditavam que a repressão monogâmica era necessária para a sobrevivência do capitalismo – sabemos agora que o capitalismo não só pode tolerar, mas incitar
e explorar formas de sexualidade “pervertidas”, sem mencionar seu convívio,
sem maiores problemas, com a indulgência promíscua em prazeres sexuais. No entanto, a conclusão que se pode tirar disso não é que o capitalismo tem a capacidade sem fim de integrar e, assim, diluir o potencial subversivo de todas as demandas particulares – já que a questão do timing, de “aproveitar o momento”, é decisiva. Uma demanda particular, num dado momento, possui poder de detonação global, funcionando como um substituto metafórico para a revolução global. Se, de maneira inflexível, insistimos nela, o sistema pode explodir. Se, entretanto, esperamos por tempo demais, o curto-circuito metafórico entre essa demanda particular e a derrubada
global é dissolvido, e o Sistema pode, com hipócrita satisfação, perguntar,
“não era isso que você queria? Então, fique com o que pediu!”, sem que nada de realmente radical aconteça. O artifício que Lukács chamou de Augenblick (o momento quando, por pouco tempo, há a abertura para um ato de intervenção numa situação) é a capacidade de aproveitar o momento certo, agravando o conflito antes que o Sistema possa acomodar a demanda. Passamos a ter, assim, um Lukács muito mais “gramsciano”, aberto para o conjuntural/contingente do que normalmente se imagina. O Augenblick de
Lukács está também surpreendentemente próximo do que Alain Badiou chama de Evento: uma intervenção que não pode ser entendida com base em suas “condições objetivas” preexistentes. O ponto principal do argumento de Lukács é rejeitar a redução do ato às suas “circunstâncias históricas”. Não há “condições objetivas” neutras, i.e. (em hegelês), todos os pressupostos estão minimamente postos.

Característico disso é a enunciação “objetivista” por Lukács dos fatores que levaram ao fracasso da revolução húngara de 1919: os oficiais traiçoeiros, o bloqueio externo que causou a fome... Apesar desses serem indubitavelmente fatores que desempenharam um papel decisivo na derrota da revolução, é equivocado considerá-los como a matéria-prima decisiva, sem levar em conta a maneira como foram “mediados” por inúmero fatores políticos subjetivos. Por que, então, no caso do bloqueio ainda mais intenso à Rússia soviética, não se sucumbiu aos ataques imperialistas e
contra-revolucionários? Porque na Rússia, o Partido Bolchevique esclareceu
as massas que o bloqueio era fruto da ação de forças contra-revolucionárias
estrangeiras e domésticas. Na Hungria, porém, o Partido não era suficientemente forte, o que fez com que as massas sucumbissem à propaganda anticomunista que afirmava que o bloqueio era o resultado da natureza “antidemocrática” do regime – sugerindo que com o retorno à democracia a ajuda estrangeira não pararia de afluir... Traição dos oficiais?
Sim, mas por que a mesma traição não levou às mesmas consequências catastróficas
na Rússia soviética? E quando traidores foram descobertos por
que não foi possível substituí-los por quadros confiáveis? Porque o Partido
Comunista Húngaro não era suficientemente forte e ativo, ao passo que o
Partido Bolchevique russo mobilizou os soldados que estavam dispostos a
defender a revolução. Claro, pode-se sempre afirmar que a fraqueza do
Partido Comunista Húngaro era um componente “objetivo” da situação social; contudo, por trás desse “fato”, há ainda outras decisões e atos subjetivos, o que faz com que nunca seja possível atingir o nível zero de um pretenso estado de coisas puramente “objetivo”. O ponto realmente importante não é a objetividade, mas a “totalidade”, entendida como processo global de “mediação” entre o aspecto subjetivo e o objetivo. Em outras palavras, o Ato nunca pode ser reduzido ao reflexo de condições objetivas. Pegando um exemplo de outro campo, a maneira que a ideologia
“põe seus pressupostos” é também facilmente percebido na (pseudo)
explicação sobre a crescente aceitação da ideologia nazista durante os anos
vinte, segundo a qual os nazistas manipulavam os medos e as ansiedades
da classe média gerados pela crise econômica e as mudanças sociais. O problema com essa explicação é que ela não percebe como está implícita nela uma auto-referência circular. Sim, os nazistas certamente manipularam medos e ansiedades, todavia, esses medos e ansiedades refletiam, de antemão, uma certa perspectiva ideológica e não correspondiam a fatos pré-ideológicos. Em outras palavras, a ideologia nazista ela mesmo também gerou “ansiedades e medos”, para a qual propôs soluções.
Podemos agora voltar para nosso “silogismo” triplo e procurar descobrir onde encontra-se seu erro: na própria oposição entre as suas duas primeiras formas. Claro que Lukács opõe-se ao “espontaneísmo”, que defende a organização autônoma das massas trabalhadoras em movimentos de base contra a ditadura imposta por burocratas do Partido. Mas ele também opõe-se ao conceito pseudoleninista (na verdade, de Kaustky) de que a classe trabalhadora “empírica” pode, deixada a ela mesma, apenas atingir
o nível sindicalista de consciência, e que a única maneira dela passar a
ser o sujeito revolucionário é importando sua consciência por meio de intelectuais
que, depois de compreenderem “cientificamente” as necessidades
“objetivas” da passagem do capitalismo para o socialismo, “esclarecem a
classe trabalhadora da missão implícita em sua posição social objetiva”. No
entanto, é aqui que encontramos a abusiva “identidade dos opostos”
dialética na sua forma mais pura. O problema com essa oposição não é que
os dois pólos estão muito cruamente opostos e que a verdade se encontraria
em algum lugar presente entre eles, na “mediação dialética” (a consciência
de classe que surgiria da “interação” entre a consciência espontânea da
classe trabalhadora e o trabalho educativo do Partido). Na verdade, o problema
está na idéia de que a classe trabalhadora tem potencialmente a
capacidade de atingir a consciência de classe adequada (e, conseqüentemente,
que o Partido apenas desempenha um papel menor, “maiêutico”, de
possibilitar aos trabalhadores empíricos realizarem seu potencial), já que,
assim, se legitima o exercício da ditadura do Partido sobre os “trabalhadores,
baseada na sua compreensão correta de quais são seus verdadeiros
potenciais e/ou seus interesses a longo prazo”. Em poucas palavras, Lukács
está apenas aplicando à oposição falsa entre “espontaneísmo” e dominação
externa do Partido a identificação especulativa de Hegel dos “potenciais
internos” de um indivíduo na sua relação com seus educadores. Dizer que
o indivíduo precisa possuir “potencial próprio” para se tornar um grande
músico equivale a dizer que esses potenciais devem estar, de antemão, presentes
no educador que, por meio de influência externa, estimulará o indivíduo
a realizar seu potencial.

O paradoxo, então, é que quanto mais insistimos em como uma
postura revolucionária traduz a verdadeira “natureza” da classe trabalhadora,
mais somos levados a exercer pressão externa sobre a classe trabalhadora
“empírica”, a fim de que ela realize seu potencial. Em outras
palavras, a “verdade” sobre a identidade imediata dos dois primeiros opostos
é, como vimos, a terceira forma, a mediação stalinista. Por quê? Porque
essa identidade imediata exclui qualquer espaço para o ato propriamente
dito. Se a consciência de classe aparece “espontaneamente”, como a realização
do potencial interno presente na própria situação objetiva da classe
trabalhadora, nenhum ato ocorreria, a não ser a conversão puramente formal
do em-si para o para-si. O que corresponde ao gesto de descortinar o
que sempre esteve lá. Se a consciência de classe propriamente revolucionária
deve ser “importada” pelo Partido, então nos restaria a presença de
intelectuais “neutros”, que compreenderiam a necessidade histórica “objetiva”
(sem intervir diretamente nela). Conseqüentemente, a utilização da
classe trabalhadora, manipulada de maneira instrumental, como ferramenta
para realizar a necessidade já presente na sua situação, não deixaria nenhum
espaço para o ato propriamente dito.

Hoje em dia, época do triunfo mundial da democracia, quando
ninguém de esquerda (com exceções notáveis, como a de Alain Badiou)
ousa questionar as premissas da democracia política, é mais importante do
que nunca ter em mente o comentário de Lukács, proferido na sua polêmica
contra a crítica de Rosa Luxemburgo a Lenin, de como a atitude verdadeiramente
revolucionária de aceitar a contingência radical da Augenblick
não deveria levar também à aceitação da oposição padrão entre a
“democracia”, a “ditadura” ou o “terror”. Se deixarmos de lado a oposição
entre o universalismo liberal-democrático e o fundamentalismo étnico/religioso,
para o qual a mídia insiste em chamar a atenção, o primeiro passo é
reconhecer a existência do que se pode chamar de “fundamentalismo
democrático”: a ontologização da Democracia numa referência universal
despolitizada que não deve ser (re)negociada com base em disputas político-
ideológicas pela hegemonia.

A democracia como forma de política estatal é mesmo inerentemente
“popperiana”. O critério último da democracia está na “falseabilidade”
do regime, i.e. que um procedimento público claramente definido (o
voto popular) pode determinar se ele perdeu legitimidade e deve ser substituído
por uma nova força política. O ponto não é tanto a “justiça” do procedimento,
mas o fato de que todos os envolvidos aceitam antecipadamente,
e sem dar margem a dúvidas, como ele funcionará, independente-
mente da sua “justiça”. No procedimento padrão de chantagem ideológica,
os defensores da democracia alegam que, a partir do momento que abandonamos
essa característica, entramos numa esfera “totalitária”, em que o
regime “não é falsificável”, i.e., ele evita a situação de “falsificação” unívoca.
Independentemente do que acontecer, mesmo que milhares se manifestem
contra o regime, ele continuará a insistir que é legítimo, que representa
os verdadeiros interesses do povo e que o “verdadeiro” povo o
apóia... Deveríamos, aqui, rejeitar essa chantagem (como Lukács faz em
relação a Rosa Luxemburgo). Não há nenhuma “regra (procedimento)
democrático” que estamos, de antemão, proibidos de violar. A política revolucionária
não diz respeito a “opiniões”, mas à verdade que faz com que
freqüentemente tenha-se que não levar em conta a “opinião da maioria” e
impor a vontade revolucionária sobre ela.

Se, então, a principal tarefa da esquerda atual for, afinal de contas,
fazer a passagem de História e consciência de classe a Dialética do
esclarecimento, mas na direção oposta do que é normalmente imaginado?
A questão não é de “aprofundar” Lukács de acordo com as “exigências dos
novos tempos” (o grande slogan de todo o revisionismo oportunista,
incluindo o atual Novo Trabalhismo), mas de repetir o Evento em novas
condições. Somos ainda capazes de nos imaginar num momento histórico
onde termos como “traidor revisionista” ainda não faziam parte do mantra
stalinista, mas expressavam uma postura verdadeiramente engajada? Em
outras palavras, a questão a ser levantada hoje sobre o Evento único do
Lukács marxista dos primeiros tempos não é: “Como esse trabalho fica em
relação à constelação atual? Ele ainda está vivo?”, mas, ao contrário, o de
parafrasear a conhecida inversão de Adorno da insolente pergunta historicista
de Croce sobre “o que está vivo e o que está morto na dialética de
Hegel” (o título de seu principal trabalho)7: como é que nós nos encontramos
diante de Lukács? Ainda somos capazes de realizar o ato descrito
por Lukács? Qual ator social pode, com base em seu radical deslocamento,
realizá-lo hoje em dia?


Notas:


SLAVOJ ZIZEK é pesquisador da Universidade de Liubliana
(Eslovênia), e autor de vários livros de filosofia, política e psicanálise.


* “From History and Class Consciousness to The Dialectic of Enlightenment... and Back”.
New German Critique81: 107-123, 2000. Agradecemos aos editores da New German Critique
e a Slavoj Zizek pela gentil permissão para publicar este artigo. Tradução de Bernardo
Ricupero.


1 Martin Heidegger, Sein und Zeit, Tuuebingen: Max Niemeyer, 1963, p. 437.

2 Paradoxalmente, da perspectiva de cada um desses dois marxistas, Althusser e Lukács, o outro aparece como o exemplo mais acabado do stalinista: para Althusser e os pós-althusserianos, a noção de Lukács de que o Partido Comunista equivale praticamente ao sujeito hegeliano legitima o stalinismo; para os discípulos de Lukács, o “antihumanismo teórico” do estruturalista Althusser e sua total rejeição da problemática da alienação e da reificação, combinam-se à desconsideração stalinista pela liberdade humana. Ao mesmo tempo que este não é o lugar para tratar detalhadamente desse confronto, ele enfatiza como cada um dos dois marxistas articula uma problemática fundamental, que não faz parte do horizonte do oponente:
em Althusser, a noção dos aparelhos ideológicos do Estado como a tradução material
da ideologia, e em Lukács, a noção do ato histórico. Além do mais, evidentemente não é fácil realizar uma “síntese” entre essas duas posições mutuamente opostas – é possível, assim, que a melhor maneira de proceder seja usando como referência alternativa o outro grande fundador do marxismo ocidental, Antonio Gramsci.

3 Ver: Evert van der Zweerde, Soviet historiography of philosophy, Dordrecht, Kluwer, 1997.

4 Paradigmática é a lendária história da fracassada participação de Iljenkov num congresso
mundial de filosofia realizado nos EUA em meados dos anos sessenta. Iljenkov já tinha o visto
e estava pronto para pegar o avião, quando sua viagem foi cancelada porque seu texto para o
congresso, “Do ponto de vista leninista”, que tinha antes apresentado aos ideólogos do
Partido, não os agradou. Isso não se deu graças a seu conteúdo (inteiramente aceitável), mas
simplesmente por causa de seu estilo, da maneira engajada em que foi escrito. Já a frase de
abertura (“É minha avaliação pessoal que...”) era proferida num tom pouco aceitável.

5 Ver: Theodor W. Adorno, “Erpresste Versohnung,” Noten zur literatur, Frankfurt/Main:
Suhrkamp, 1971, p. 278.

6 Ver, como exemplo representativo, Andrew Arato e Jean L. Cohen, Civil society and political
theory, Cambridge: MIT, 1994.

7 Ver: Adorno, Drei Studien zu Hegel, Frankfurt: Suhrkamp, 1963, p. 13.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Estado de Exceção Global

Uma longa leitura entre ciência política e psicanálise lacaniana para as férias.



A história do estado de exceção não é nova. No decreto de 8 de julho de 1791 da Assembléia Constituinte francesa foi instituído um decreto chamado “estado de sítio” que possibilitava a suspensão da constituição aplicando-se, inicialmente, apenas em casos extremos em portos militares e praças-fortes. Com Napoleão, em 1811, essa suspensão podia ser declarada pelo imperador devida à situação onde uma cidade estaria sitiada ou militarmente ameaçada. Desde então, esse dispositivo explodiu em utilização se espalhando sob o ordenamento jurídico da Alemanha, Itália, Suíça, Reino Unido e Estado Unidos em diversas situações de emergência durante os séculos XIX e XX. Portanto, é próprio da modernidade política (da tradição democrático-revolucionária) o princípio em que o poder de suspender as leis cabe ao poder em si mesmo (normalmente sendo em nome da construção de uma “normalidade” diante de perigos a segurança externa ou interna). Logo na emanação das constituições, o estado de exceção foi uma entidade jurídica constitutiva (da qual a teoria liberal nunca deu importância). Entretanto, o estado de exceção, ou de sítio, emergência, urgência ou lei marcial, não é um tipo qualquer de suspensão da lei.



Como explica Carl Schmitt (sim, um teórico da direita), ao confundir a ordem do esquema racional, o estado de exceção suspende o direito em função de um direito a autopreservação eliminando a norma. A ascensão de Hitler em 1933 teve ligação direta com esse mecanismo de suspensão. Logo no artigo 48º da Constituição de Weimar se estabelecia que “se, no Reich alemão, a segurança e a ordem pública estiverem seriamente conturbados ou ameaçados, o presidente do Reich pode tomar as medidas necessárias para o restabelecimento da segurança e da ordem pública, eventualmente com a ajuda das forças armadas. Para esse fim, ele pode suspender total ou parcialmente os direitos fundamentais...”. O que significa estar seriamente conturbando ou ameaçando a ordem pública? Conturbando e ameaçando a quem? Nos últimos anos da República de Weimar, o estado de exceção foi integral. Hitler não teria tomado o poder na Alemanha se não houvesse um regime de ditadura presidencial e a suspensão do funcionamento do Parlamento por quase três anos. Logo após subir ao poder, Hitler promulgou o Decreto para a proteção do povo e do Estado onde suspendeu a Constituição de Weimar do que dizia respeito às liberdades individuais. Como esse decreto nunca foi revogado, com o comando de Hitler, a Alemanha nazista ficou doze anos em estado de exceção (com a promessa que duraria mil anos).



Podemos entender a partir desse exemplo o estatuto paradoxal do estado de exceção: a partir dele se existe a possibilidade de que de dentro da ordem se possa suspender a ordem. Por que não fazemos um exercício intelectual e pensemos como seria a ordem pública estando conturbada ou ameaçada sob a eminência de Hitler e como a ordem pública estaria sendo conturbada e ameaçada hoje. O terrorista não tem esse papel de conturbador da ordem pública, pelo menos nos Estados Unidos e na Europa ocidental? Ou ainda, em outra perspectiva, não é pela conturbação da ordem pública que passa o caminho da transformação social radical?



Voltando a Schmitt, a importância do estado de exceção se encontra exatamente no seu estatuto de exceção. Por isso, numa linguagem quase lacaniana ele escreve que,



"A filosofia da vida concreta não pode subtrair-se à exceção e ao caso extremo, mas deve interessar-se ao máximo por ele. Para ela, a exceção pode ser mais importante do que a regra, não por causa da ironia romântica do paradoxo, mas porque deve ser encarada com toda a seriedade de uma visão mais profunda do que as generalizações das repetições medíocres. A exceção é mais interessante do que o caso normal. O normal não prova nada, a exceção prova tudo; ela não só confirma a regra, mas a própria regra só vive da exceção. Na exceção, a força da vida real rompe a crosta de uma mecânica cristalizada na repetição"



Nessa linha, para Giorgio Agamben, o estado de exceção é a lacuna fictícia nem externa e nem interna ao ordenamento jurídico que busca salvaguardar a existência da norma, “uma zona de indiferença, em que dentro e fora vão se excluem, mas que indeterminam. A suspensão da norma não significa sua abolição e a zona de anomia por ela instaurada não é (ou, pelo menos, não pretende ser) destituída de relação com a ordem jurídica”.



"A lacuna não é interna à lei, mas diz respeito à sua relação com a realidade, à possibilidade mesma de sua aplicação. É como se o direito contivesse uma fratura essencial entre o estabelecimento da norma e sua aplicação e que, em caso extremo, só pudesse ser preenchido pelo estado de exceção, ou seja, criando-se uma área onde essa aplicação é suspensa, mas onde a lei, enquanto tal, permanece em vigor"



Numa estrutura topológica, o estado de exceção está fora e ao mesmo tempo pertence à estrutura jurídica. Por isso que sob o estado de exceção a lei se torna força de lei sem lei – um espaço vazio onde o direito e as determinações jurídicas se interrompem fazendo com que a distinção entre público e privado seja desconstruída[1]. Esse espaço vazio de direito parece ser,



"Tão essencial à ordem jurídica que esta deve buscar, por todos os meios, assegurar uma relação com ele, como se, para se fundar, ela devesse manter-se necessariamente em relações com uma anomia. Por um lado, o vazio jurídico de que se trata no estado de exceção parece absolutamente impensável pelo direito; por outro lado, esse impensável se reveste, para a ordem jurídica, de uma relevância estratégica decisiva e que, de modo algum, se pode deixar escapar".



Como já notava Carl Schmitt, o paradoxo do estado de exceção é próprio do soberano – “soberano é aquele que decide sobre o Estado de exceção” (p. 87). Ele tem o poder de suspender a lei colocando-se legalmente fora da lei. Sendo externo a ordem vigente, o soberano pode (e deve) decidir se o estado normal das coisas é predominante ou não, detendo dessa forma o monopólio da decisão sobre a necessidade de um estado de exceção. É nesse sentido que Agamben frisa que a exceção é uma espécie de exclusão caracterizada por ser aquilo que não está absolutamente fora da relação com a norma, mas que mantém uma forma específica de existência desaplicando a norma. Nas palavras de Agamben, “a norma se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se desta. O estado de exceção não é, portanto, o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta da sua suspensão. Neste sentido, a exceção é verdadeiramente, segundo o étimo, capturada fora (ex-capere) e não simplesmente excluída” (Agamben, 2002, p. 25). O fetiche da democracia não apresenta esse interstício da lei que serve para legitimar a violência constitutiva do estado de exceção. Próprio da democracia, o estado de exceção surge porque é sempre já existente. Ele não é, dessa forma, um acidente, mas sim um fenômeno constituinte da modernidade política capitalista. É o pensamento liberal acerca do Estado que não permite captá-lo já que desconsidera a existência de um resto dentro da totalidade orgânica do todo. Paulo Arantes nota que essa anomalia constitutiva da modernidade política reside no fato de que a definição jurídica do estado de exceção tenha sido elaborada ao mesmo tempo em que se implantava o Estado constitucional liberal. Essa seria a raiz da miragem liberal que Schmitt reduziu a pó.



Tumultos e motins poderiam produzir desordem, mas a homogeneidade não estaria seriamente ameaçada por algum corpo social estranho. Assim sendo, o enquadramento dos recalcitrantes – individualidades possessivas isoladas – não careceria mais de medidas excepcionais, ou melhor, o estado de sítio previsto em lei seria sempre fictício porque se deixaria gerir juridicamente como a própria normalidade.



Entrementes, o estado de exceção não é a exceção que subtrai a regra e sim a suspensão da regra dando lugar à exceção que, desse modo, se constitui como regra quando necessário. A exceção é, portanto, um “paradoxal limiar de indiferença” que não pode ser definida como uma situação de fato e nem como situação de direito (assim como não pode ser definida como caos ou situação normal). Em termos a lá Alain Badiou, a exceção é um “resíduo impossível” que se caracteriza por não poder ser incluído no todo ao qual pertence e não pode pertencer ao conjunto no qual está desde sempre incluído. A pergunta que fica é: o que significa esse resíduo impossível dentro da estrutura simbólica do ordenamento jurídico? Ou ainda, por que é necessário para o Estado democrático-liberal o estado de exceção?



Primeiramente devemos tirar uma lição de Lógica do Sentido de Gilles Deleuze. Existe uma necessidade quando se constrói uma ordem simbólica: a da diferença que é estabelecida entre o lugar estrutural (vazio) e o elemento que ocupa esse lugar. O resultado dessa operação é que no nível formal do significante vazio e dos significantes que preenchem esse espaço vazio da estrutura nunca existe uma sobreposição de um ao outro. Dessa forma, sempre há uma entidade que simultaneamente encontra-se vazia perante a estrutura e em relação ao preenchimento do espaço vazio é excessiva, dessa forma não tendo lugar na estrutura. Em termos lacanianos essa é a relação entre o sujeito barrado e o objeto a, que formam dois lados de uma faixa de Moebius. Enquanto o sujeito ocupa um vazio na estrutura, o objeto a é seu excesso que sempre falta à estrutura, um resto deslizante que possibilita a mobilidade dos significantes – o objeto a é “aquele X insondável que sempre escapa a compreensão simbólica e, portanto, causa a multiplicidade de pontos de vista simbólicos”, como escreve Zizek.



Não devemos concluir que, no ordenamento jurídico, o estado de exceção tem a mesma caracterização do objeto a, aquele X vazio que sustenta seu funcionamento “normal”? O estado de exceção não é o +1 “mais que si mesmo” do ordenamento jurídico que tem como função constituir e fazer funcionar todo o sistema já que, ao se retirar, todos seus elementos se individualizariam completamente perdendo radicalmente a dinâmica do poder e seu inerente excesso? Não será por isso que, normalmente, quando se fala sobre democracia em sua divisão entre os poderes executivo (Real), legislativo (Simbólico) e judiciário (Imaginário) não se exclua o estado de exceção, esse excesso constitutivo? Nesse sentido, não é esse excesso que sustenta a fantasia da naturalização eterna do capitalismo e seu sistema normativo?



Em termos lacanianos, o estado de exceção é o objeto-causa do ordenamento político moderno. Sempre resistindo à simbolização jurídica, é esse excesso que dá a dinâmica das atividades políticas que, quando são transbordadas pela luta de classes, pode ser acessado diretamente causando um curto-circuito na tríade (executivo, legislativo e judiciário) em que é fundado o Estado constitucional fundando uma não-lei. Esse +1 tem uma funcionalidade transcendental já que possibilita suspender a normatividade e assegura o “bem agir” politicamente correto que assegura a ordem pública. Qualquer distúrbio na ordem pública se torna um artifício para que a normalidade da lei seja suspensa, principalmente em temos de crise – normalmente buscando legitimar uma guerra. Como encarar isso quando milhares de pessoas são desempregadas e jogadas no lixo social já que são supérfluas para a reprodução ampliada do capital? Como lidar com isso numa sociedade que é estruturalmente dividida e progressivamente destrutiva pela necessidade imperiosa de expansão do valor de troca, polarização de renda, concentração e centralização de capital, precarização do trabalho, desemprego estrutural? Buscando assegurar que essas condições objetivas de crise não se tornem faíscas para a mobilização política, o fetiche da representação democrática é atravessado pelo “não dito” do estado de exceção – a verdade da modernidade política. Dessa forma, a democracia é a ficção que sustenta a contingência do estado de exceção.



Se o estado de exceção não se encontra nem dentro e nem fora da lei, sua posição topológica se encontra na lacuna que excede a capacidade de simbolização democrática constantemente na interface entre dentro e fora, interior e exterior. Sua dinâmica não para já que, sendo a interface entre dentro e fora da lei, se encontra num processo de transformação constante sob a modificação de seu objeto – a representação democrática. Dessa forma, qualquer tipo de análise sobre o estado de exceção hoje não pode nem considerar a hipótese, por exemplo, de que vamos enfrentar os mesmos dilemas ocorridos na ascensão do fascismo na década de 1930 – podemos fazer apenas uma comparação de princípios que demonstrem o caráter repetitivo da história, mesmo que os mecanismos de suspensão da lei se transformem historicamente.



Com sua existência sempre atualizada, esse resto excessivo não é descartável para o ordenamento jurídico – é ele que sustenta estrategicamente o próprio ordenamento jurídico sob a possibilidade de sua suspensão radical da lei. Sem esse excesso da qual o ordenamento pode se sustentar para se reproduzir, a própria ordem é impensável. A segurança do ordenamento jurídico é, portanto, dependente estrutural do estado de exceção – não existe possibilidade de sua existência sem esse excesso constitutivo, esse resíduo impossível. Em outra terminologia, poderíamos dizer que o estado de exceção é o avesso da democracia representativa ou que o estado de exceção é o segredo fundante do ordenamento jurídico moderno. É dessa forma que se busca garantir que nenhuma mudança substancial que possibilite modificar as estruturas de poder dentro dessa mesma estrutura seja manifestada ou desenvolvida. Lembremos do caso chileno: Salvador Allende esboçava possibilidades de mudança real dentro da estrutura de poder da sociedade chilena após sua vitória via democracia[2]. Em 1973, depois do conluio com Henry Kessinger, aviões militares bombardearam o palácio de La Moneda[3]. A resposta da elite foi, portanto, à construção, depois de assassinar o presidente, de um estado de exceção que durou por mais de quinze anos. Durante o período Pinochet, o Chile foi um laboratório para os experimentos neoliberais onde o dito liberal que liberdade econômica trás liberdade política se fez mais certo: para sustentar seus experimentos de liberalização radical da economia a violência do Estado autoritário não era um capricho, mas uma necessidade.



Sobre as profundezas da força da lei, Jacques Derrida apontou que no pensamento de Pascal e Montaigne existe o que poderia ser chamado de fundamento místico da autoridade: um silêncio murado na estrutura violenta do ato fundador. Uma forma de pecado original que sustenta a autoridade das leis (que repousa no crédito que lhes concedemos). Esse ato de fé não tem caráter ontológico e nem racional, mas sim da própria exigência da crença na justiça para legitimar seu recurso a força – “a necessidade da força está pois implicada no justo da justiça” (2007, p. 19). A autoridade, dessa forma, depende de sua “força performativa” que dá significação para a força como sustentáculo de um poder legítimo. Ela dá a dinâmica da relação entre forma e força que sustenta a legitimação do ordenamento jurídico. Sob essa dinâmica é que se crê que a justiça é feita sob suas leis específicas – “as leis não são justas como leis. Não obedecemos a elas porque são justas, mas porque tem autoridade. A palavra ‘crédito’ porta toda a carga de proposição e justifica a alusão ao caráter ‘místico’ da autoridade” (idem, p. 21). O crédito dado a lei é a sua legitimação na aplicação pela força. É sua força performativa que articula sua violência constitutiva para “fazer a lei”.



"O próprio surgimento da justiça e do direito, o momento instituidor, fundador e justificante do direito, implica uma força performativa, isto é, sempre um força interpretadora e um apelo à crença: desta vez, não no sentido de que o direito estaria a serviço da força, instrumento dócil, servil e portanto exterior do poder dominante, mas no sentido de que ele manteria, com aquilo que chamamos de força, poder ou violência, uma relação mais interna e complexa. A justiça – no sentido do direito – não estaria simplesmente a serviço de uma força ou de um poder social, por exemplo econômico, político, ideológico, que existiria fora dela ou antes dela, e ao qual ela deveria se submeter ou se ajustar, segundo a utilidade. Se momento de fundação ou mesmo de instituição jamais é, aliás, um momento inscrito no tecido homogêneo de uma história, por ele o rasga por uma decisão. Ora, a operação de fundar, inaugurar, justificar o direito, fazer a lei, consistiria num golpe de força, numa violência performativa e portanto interpretativa que, nela mesma, não é nem justa nem injusta, e que nenhuma justiça, nenhum direito prévio e anteriormente fundador, nenhuma fundação pré-existente, por definição, poder nem garantir nem contradizer ou invalidar".



Como já frisei anteriormente, agora em termos derridadianos, o estado de exceção é esse momento que jamais é inscrito no tecido homogêneo de uma história. O segredo fundante do ordenamento jurídico que pelo seu poder performático, personificado no soberano, possibilita suspender a lei quando esse fundamento místico da lei se deteriora.



O estado de exceção é o “primeiro instante” – assim como Pascal dizia que a justiça sem força é impotente, o ordenamento jurídico sem o estado de exceção é igualmente impotente para se reproduzir diante dos desafios históricos enfrentados na busca por transformação radical do ordenamento econômico-social. Para manter assegurada a “força performativa” da lei é necessário esse excesso: todos sabem que existem limites e saber da existência desses limites é onde se assenta a legitimação da ordem. Quando se perde esse “fundamento místico” da autoridade, isso é a violência constitutiva do estado de exceção que possibilita suspender a lei, se “rasga por uma decisão” a ideologia jurídica. A abertura do estado de exceção demonstra a necessidade de separação da norma e sua aplicação (sendo essencialmente um espaço vazio, o estado de exceção suspende a aplicação do próprio direito)[4]. Vemos, dessa forma, o caráter excessivo que é constitutivo para a reprodução do poder da lei.



Badiou enfatiza que a representação do Estado em relação à sociedade, por exemplo, sempre envolve um excesso. Dessa forma, a idealização liberal da transparência do Estado não passa de um sonho já que a própria lógica do Estado é de intervenção excessiva sobre aquilo que representa. Slavoj Zizek ainda acrescenta que não existe apenas o excesso do Estado em relação à multidão que ele representa, mas também existe um excesso do próprio Estado em relação a si mesmo. Para seu funcionamento “normal” o Estado excede a si mesmo, mesmo que esse imperativo deva permanecer ignorado – o fetiche da democracia é que o processo democrático pode controlar esse excesso. Dessa forma, resumidamente, o estado de exceção é o excesso político constitutivo necessário para que se torne possível reproduzir a estrutura capitalista de poder democrático historicamente – é a representação por excelência da política moderna. A pergunta que fica é: quando o estado de exceção é um imperativo?



O estado de exceção é um imperativo necessário para assegurar as relações de poder existentes quando existe uma “crise performática” da autoridade ou o que Eric Santner chamou de “crise de investidura”. Seguindo Santner, essa “crise de investidura” consiste numa perda generalizada da eficácia simbólica por parte da autoridade (que se constitui por reprodução dos mitos). Em outras palavras, o estado de exceção é uma resposta aos impasses e conflitos que dizem respeito às mudanças na matriz fundamental da relação do indivíduo com a autoridade social e institucional, aos modos como a ele se dirigem e como ele responde aos chamamentos do poder e da autoridade “oficiais”. Esses chamamentos são processos de investidura simbólica pelo qual o indivíduo passa a ter um novo status social que modifica sua identidade perante a comunidade – nesses processos os indivíduos “se tornam quem são”. Como a estabilidade política e social (assim como a “saúde” psicológica dos indivíduos) se relaciona com a eficácia das operações simbólicas, uma “crise de investidura” tem o potencial de criar sentimentos de extrema alienação, anomia e angústias associadas ao colapso do espaço social e dos ritos da instituição no núcleo mais íntimo do sujeito (Santner, 1997). Essa crise tem conseqüências de ordem “psicotizante” devida à incapacidade de o sujeito ser exigido pelo Outro[5]. Os efeitos da recusa da dívida simbólica são mostrados, portanto, em tempos-limite em que, em termos psicanalíticos, significa que sob a falha no ideal de eu do progresso se tem como resposta a agressividade normatizada. Em outras palavras, em tempos-limite a potencialidade do estado de exceção é um imperativo.[6]Pela desintegração dos laços sociais (desconsideração radical com a experiência do outro, enfraquecimento da comunidade, perda da representação social), as dívidas simbólicas do sujeito se tornam mais difíceis de serem pagas. Dessas falhas nos processos de inserção simbólica do sujeito (anomia) é que emerge a aceitação social dos mecanismos de exceção que são instaurados progressivamente na vida política. Para Vladimir Safatle, a disposição do sujeito para estabilizar e integrar nessa situação de anomia é efeituado pelo cinismo. Como se o cinismo fosse capaz de transformar o “sofrimento de indeterminação” normativa em motivo de gozo. Alain Badiou chama essa quebra da intervenção do Significante-Mestre numa confusa multiplicidade da realidade sem-sentido de mundo “atonal”[7]. A pergunta que fica é: quando um discurso hegemônico paranóico se apropria dessa desintegração/desagregação que se insere como elemento normal do próprio ordenamento democrático sob as transformações na forma de racionalização sobre esse mesmo processo, onde estamos exatamente? Poderíamos notar, com Santner, que as perturbadoras manifestações paranóicas nos Estados Unidos pós-11 de setembro fazem parte de uma cristalização de uma cultura que não está muito longe de algum tipo de fascismo onde o medo se espalha e o pânico floresce. A questão do antraz é altamente sintomática.



Como atenta Susan Willis, logo após o 11 de setembro, quando a nação estadunidense ainda se recuperava dos ataques ao World Trade Center e ao Pentágono, os meios de comunicação, aparentemente insatisfeitos com a catástrofe ocorrida, espalharam o medo de que terroristas, tendo fechado o tráfego aéreo e a Bolsa de Valores iriam continuar sua empreitada usando armas químicas e biológicas. Os temores se concretizaram com as correspondências com antraz, cinco verdadeiras e outras milhares fraudentas. A histeria se espalhou pelo país desde as áreas afastadas da zona rural até as grandes metrópoles – lugares que, até então, eram considerados de baixo risco como alvos terroristas em potencial. Agências de correio das faculdades mandaram para quarentena pacotes de biscoitos caseiros que recebiam; milhares de correspondências foram lacradas e armazenadas para testes futuros; diversos vôos comerciais foram redirecionados e forçados a pousar quando qualquer tipo de pó branco (na maioria das vezes, adoçante) era encontrado nas bandejas.



"Substâncias triviais da vida cotidiana – pó para pudim de baunilha, açúcar, farinha, talco – conseguiram fechar escolas e fábricas, reter correspondências e emperrar o ritmo usual dos negócios. O país entrou em pânico. O pó branco aparecia e todo tudo. Os cidadãos tinham medo de receber e, sobretudo, de abrir suas correspondências. Órgãos governamentais, o serviço postal e os centros para controle de doenças demoraram em emitir recomendações preventivas. E quando a recomendação era feita, intensificava a preocupação pública. Ordenaram que procurássemos envelopes suspeitos: cartas sem remetente, combinações estranhas de selos, volumes injustificados, embrulhos inusitados e, sobretudo, o pó branco. Fomos avisados para lacrar a carta suspeita num saco plástico, bem como nossas roupas, e tomarmos banho imediatamente. Acompanhando o aviso, vieram centenas de outros trotes e alarmes falsos. As pessoas começaram a encomendar e estocar Cipro, o antibiótico então recomendado. Algumas pessoas, que nunca haviam sido expostas, começaram a tomar o remédio antecipadamente, apesar da advertência médica de que a droga produziria efeitos colaterais indesejados"



A busca pela sensação de segurança é patente no mapa imaginário da proximidade do “terror”. Não é toa que essa histeria se espalhou rapidamente. Somente em Londres, no fim da terceira semana de outubro de 2001, os aliados ingleses já haviam recebido mais de quinhentas ameaças de contaminação por antraz. Não seria por isso que poderia se reconhecer no antraz o retorno do reprimido (idem, p. 37)?

Nesse sentido, é tão estranho que, logo após os ataques de 11 de setembro, a aprovação presidencial de Bush tenha ficado em torno de 90%? Não seria esse um exemplo de como uma violência horrorosa nos impede de pensar de forma séria sobre essa mesma violência? Não foi essa falta de reflexão que possibilitou a calamitosa resposta da esquerda norte-americana logo após os ataques entre as posições “essa violência é inadmissível e deve ter uma resposta clara”, “os ataques foram horrorosos, mas o que isso significa enquanto o desastre constante nos países pobres mata milhões?” ou ainda “foi um ataque aos valores democráticos ocidentais e precisa de troco”. Essa política da paranóia não se dá em períodos de crise que se abrem sob a forma de uma deslegitimação generalizada das formas de obrigação política e de repasse de autoridade? Além disso, essa forma cínica em que se sustenta a retórica das democracias-liberais não é exatamente o que sustenta a prática democrática de invasão ao Iraque, por exemplo? Não é pela forma democrática que os Estados Unidos se tornam a polícia mundial?



Diante desse panorama, podemos dizer que o estado de exceção tem uma funcionalidade específica dentro do campo moderno da política: assegurar que nenhuma mudança radical na relação entre lei e violência ultrapasse os limites da própria lei – exatamente em nome da lei que ela é suspensa articulando um tipo de relação com a violência baseada na não-lei. A regra do estado de exceção está no subsolo da gramática política moderna – ela é conveniente a estrutura ficcional do ordenamento jurídico. É por isso que a tarefa revolucionária é simbolizar o estado de exceção, nomear esse inaudito que assegura o antagonismo Real.



Se sob o estado de exceção se busca assegurar a impossibilidade de uma possível suspensão ainda mais radical e qualitativamente diferente seja construída, ele é, portanto, o assegurador último que o Ato revolucionário falhe – é por isso que num estado de exceção a direita silencia a esquerda a força. O estado de exceção é o elemento não-castrado do ordenamento jurídico que mostra a ligação material constitutiva entre capital e estado[8]. Por isso, o estado de exceção persiste a finitude democrática que, principalmente em tempos de crise, perde a capacidade de se sustentar econômica e politicamente. O lembrete de Walter Benjamin sobre a necessidade de criação de um verdadeiro estado de emergência revolucionário remete a suspender esse excesso não-castrado que é constitutivo da estrutura da lei[9].



A opção colocada por Rosa Luxemburgo e Lênin no início do século XX, entre voltar às armas contra as forças de opressão de classe ou lutar contra outros proletários de países diferentes em nome da “pátria”, se mostra como uma situação limite para a criação de um estado de exceção. Hoje o que mistifica essa situação é a concepção de “guerra de civilizações” criada por Samuel Huntington – que Edward Said chamou acertadamente de choque de ignorâncias. Ele traduz os conflitos políticos e econômicos dentro da totalidade do globo em conflitos culturais que são caracterizados em tipos ideais, em identidades culturais fechadas e lacradas em si mesmo. Nessa categorização conservadora a democracia recebe o mesmo significado que a “liberdade” que é exercida no ocidente. No outro lado o fundamentalismo islâmico é ligado a seres retrógados que estão indo contra a ordem natural do progresso humano e, dessa forma, são os obstáculos contra a globalização capitalista. Aqui Huntington não se distancia de Francis Fukuyama, o teórico do fim da história, para quem após o declínio da URSS a fórmula da democracia liberal é insuperável e só é possível fazer progressos dentro desse campo[10]. Como escreve Zizek, ambos concordam que o Islã fundamentalista é hoje a maior ameaça. É possível, então, que suas visões não sejam opostas, e que a verdade seja encontrada quando lemos os dois em conjunto: o “choque de civilizações” é o “fim da história”. Conflitos étnico-religiosos pseudonaturalizados são a forma de luta que se ajusta ao capitalismo global: nessa era da “pós-política”, em que a política propriamente dita é substituída pela administração social especializada, a única fonte legítima de conflito que resta é a tensão cultural (étnica e religiosa)[11].



Muitos esquerdistas aceitam implicitamente o fim da história da democracia-liberal como limite ontológico da história. Isso se sustenta pela tradução simultânea de conflitos da economia política mundial hoje em choques culturais e religiosos. Esse desaparecimento das opções políticas autênticas se dá sob uma ascensão de plataformas pós-políticas que reduzem o antagonismo que corta verticalmente a sociedade numa multiplicidade de agentes pastiches e lutas desconexas, fragmentadas e incoerentes. Por isso é possível enfatizar que o modo predominante da política hoje é pós-político onde se clama deixar para trás as velhas lutas ideológicas do passado se focando numa técnica administrativa especializada que lide melhor com as questões culturais e de identidade. O objetivo dessa pós-política é a regulação da seguridade da vida humana. Isso quer dizer que diante da despolitização social, o único modo de inserir paixão nesse campo, para mobilizar atividades sociais, é pelo medo (medo de imigrantes, medo da intolerância, medo da catástrofe ecológica, medo da depravação sexual, medo do estado excessivo), o constituinte básico da subjetividade contemporânea. Hoje, portanto, vivemos numa política do medo que se baseia na defesa de uma potencial vitimização (Zizek, 2008, p. 40). Talvez essa seja a melhor forma de assinar em baixo o dito de Margareth Thatcher de que “não há alternativa” sob uma aceitação tácita da hegemonia do capitalismo global. Não é exatamente isso que os partidos da “terceira via” fazem? Essa posição defensiva da esquerda tem como resultado a impossibilidade de articular políticas emancipatórias de acordo com a atualidade histórica posta. E sob essa renuncia ao universal, diria Badiou, é o horror universal triunfa.



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[1] Essa distinção entre público e privado não está sendo radicalmente desconstruída hoje também? Quando assistimos canais como E!, costuma-se lamentar que os detalhes mais íntimos dos sujeitos são expostos publicamente e que, conseqüentemente, a vida privada está em via de extinção. Entretanto, como aponta Zizek (2008, p. 497), a exibição pública dos detalhes íntimos extingue a própria vida pública já que a esfera pública, onde atua o agente simbólico, acaba sendo um amontuado de propriedades, desejos, traumas, indissiocrasias íntimas... O resultado é que todas as grandes questões públicas são (re)traduzidas em questões acerca da regulamentação das indissiocrasias íntimas “pessoais” e a postura diante delas. “É também por isso que, num nível mais geral, os conflitos étnico-religiosos pseudonaturalizados são a forma de luta que combina com o capitalismo global: em nossa época “pós-política”, em que a política propriamente dita é substituída cada vez mais pela administração social especializada, as únicas fontes legítimas de conflito que restam são as tensões culturais (religiosas) ou naturais (étnicas)”.

[2] Não é exatamente isso que está em curso na Bolívia e na Venezuela? Países que nunca tiveram nenhuma repercussão internacional, por elegerem democraticamente presidentes sob demandas sociais, obtiveram uma ascensão na mídia internacional buscando trazer suas debilidades e suas recaídas (naturais da esquerda) para um totalitarismo. Essa situação que beira o ridículo foi bem mostrada por um professor liberal que tive o desprazer de ter aula que, logo após a nacionalização do gás na Bolívia clamou prontamente por uma intervenção militar que se “aqueles índios” se colocassem no seu devido lugar (?). Sobre a questão na Venezuela, um documentário interessantíssimo sobre a tentativa de tirar do poder Hugo Chavez é “a revolução não será televisionada” onde se mostra a tentativa de golpe militar apoiado pelos Estados Unidos, pela mídia oficial e pela direita venezuelana. Se quisermos nos atentar para a história do estado de exceção imposto para se manter a ordem é só olhar mais de perto a história da América Latina.

[3] Será que ele recebeu o Prêmio Nobel da Paz por isso?

[4] No capital global a constituição de um Estado abertamente autoritário mantém uma ambigüidade: ao mesmo tempo em que defende a reprodução da ordem também pode romper com as formas de dominação estrutural da qual a democracia responde tão bem fazendo com que as forças sociais antagônicas encontrem-se diretamente no campo político e social.

[5] A falência da metáfora do Nome-do-Pai (o Significante-Mestre) tem duas conseqüências: as normas proibitivas simbólicas são cada vez mais substituídas por ideais imaginários (de sucesso social, beleza corporal...) e, pela ausência das proibições simbólicas são reforçadas as figuras do supereu – a lógica do capital não se assemelha ao supereu sancionando os deveres sociais no sujeito de forma a interiorizar as necessidades simbólicas sem fim? E a questão da virtualização da vida cotidiana não se coloca nesse processo como uma hiperidentificação primária do sujeito com as idealizações pré-corporais causando, dessa forma, uma crescente incidência de decepções e estranhamentos?

[6] Zizek chama de Isso-Mal a violência excessiva característica da vida contemporânea, a crueldade cujas imagens vão das matanças racistas/religiosas as explosões de violência “sem sentido” de adolescentes e sem-teto nas grandes megalópoles que não são fundadas em nenhuma razão utilitária ou ideológica. O Isso-Mal é motivado pelo desequilíbrio da relação entre Ego e jouissance, pelo curto-circuito entre o sujeito com o objeto-causa primordialmente faltante de seu desejo expondo um ódio cru a Alteridade (2008, p. 396). Essa violência que resiste a simbolização não mostra exatamente a redutibilidade do Significante-Mestre a outros significantes ordinários perdendo, dessa forma, sua eficácia simbólica? A lição lacaniana aqui não seria, para ódio mortal dos esquerdistas pós-modernos, que a multiplicidade é resultado da inconsistência do Um que não coincide consigo mesmo sendo um múltiplo de nada?

[7] Esse fato histórico do alheamento em relação ao outro faz parte sociedade brasileira. Se esse alheamento consiste numa atitude de distanciamento pela desclassificação do outro como sujeito moral onde não se enxerga o outro como um agente criador potencial de normas éticas, esse é dos grandes sustentáculos do processo de crescente violência banal (juntamente com o processo de democratização). Nesse estado de alheamento a consciência da qualidade de atos violentos desaparece já que o objeto da violência é insignificante sendo completamente reduzido em sua alteridade. Esse modelo de subjetivação, como diria Hannah Arendt, faz os homens aprenderem que são supérfluos através de um modo de vida em que o castigo nada tem a ver com o crime, que o trabalho é realizado sem proveito e, finalmente, em que a insensatez é diariamente renovada (Arendt, 1979, p. 221). Como enfatiza Jurandir Freire Costa, esse modo de subjetivação despolitiza radicalmente o mundo, reduzindo todo mal-estar cultural a questões de competência ou incompetência individual para viver. Paradoxalmente, com uma parafernália criada para curar espíritos amedrontados pela perda da juventude, pelo enfarte, pela Aids ou pelo terror do fracasso sexual e amoroso não consegue trazer o mínimo de serenidade necessária ao sentimento de satisfação individual. Pelo contrário, o ideal da “boa vida” burguesa paralisa os indivíduos num estado de ansiedade permanente, responsável, em grande parte, pela incapacidade que tem de olhar para outra coisa que não a si mesmos.

[8] E nesse sentido nele está contida historicamente a Verdade de todo o processo de representação política do antagonismo estrutural entre capital e trabalho. Considerando que para o marxismo não existe metalinguagem entre a economia e a política, o estado de exceção é a prova da singularidade da modernidade e sua capacidade de suspender a ordem em nome da reprodução da ordem.

[9] O Ato é puramente negativo, diferentemente da positividade de determinado Significante-Mestre que “harmoniza” o espaço social – o Ato não é baseado na obscenidade do supereu diria Zizek. Quando a esquerda vai ter a coragem necessária para abandonar a democracia como Significante-Mestre das lutas emancipatórias? A política do Real é feita em nome de seu antagonismo irredutível fundante da própria experiência política – hoje a resistência ao capitalismo da esquerda pós-moderna reduz o antagonismo que corta verticalmente o global em multiplicidades que reproduzem esse antagonismo historicamente sob o peso dos deslocamentos espaciais e a intensificação desse mesmo antagonismo. O próximo livro de Toni Negri e Michael Hardt, os grandes teóricos do capitalismo pós-capitalista das multidões deveria se chamar “em busca da multidão perdida”... A esquerda pós-moderna claramente não precisa ser silenciada já que aceita as coordenadas da luta pela democracia como limite de demanda e atuação.

[10] Francis Fukuyama é o teórico do TINA (“There is no alternative”) que foi elaborada por Margareth Thatcher e assinado em baixo por Ronald Reagan e Michael Gorbatchov. O que é sintomático na esquerda de hoje foi apontado por Zizek: muitos esquerdistas até tiram sarro de Fukuyama e suas alucinações pseudo-hegelianas sobre o fim da história, mas em sua prática são “fukuyamistas” já que o horizonte possível da condição humana é o capitalismo global e não existe além dele – se pode lutar, no máximo, por um capitalismo mais humano sem seus excessos. Claro que os limites de uma esquerda que tenha como pressuposto a própria limitação não está muito longe da completa esterilidade ou de jogar o jogo de que os problemas verdadeiros a serem lutados são de ordem da identidade, do gênero, etc. A conseqüência é que essa esquerda aceita acriticamente a tradução da luta política em tensões culturais – a forma pós-política por excelência de que hoje a esquerda não resolva seus fardos históricos!

[11] Poderíamos dizer que na dupla Samuel Huntington e Francis Fukuyama falta um terceiro elemento: Jeremy Rifkin. Para ele, as bases da vida moderna estão começando a se desintegrar. Por isso, as batalhas ideológicas, as revoluções e a guerra estão esmorecendo lentamente na aurora de uma nova constelação de realidades econômicas que estariam nos levando a repensar os tipos de vínculos e limites que irão definir as relações humanas no século XXI. Os verdadeiros itens de valor de troca (sua força propulsora) passam a ser conceitos, idéias e imagens. Nessa realidade os mercados cedem lugar às redes e a propriedade é substituída rapidamente pelo acesso. A propriedade, mesmo continuando existindo, seria bem menos trocada em mercados. Para Rifkin, essa transformação da propriedade em acesso faz parte de um processo de transformação na natureza do sistema capitalista. Estamos passando da produção industrial para a produção cultural: “um comércio de ponta no futuro envolverá o marketing de um vasto arranjo de experiências culturais em vez de apenas tradicionais bens e serviços industriais. A viagem e turismo global, parques e cidades temáticos, centros de entretenimento, bem-estar, moda e culinária, esportes e jogos profissionais, música, filme, televisão e os mundos virtuais do cyberespaço e o entretenimento mediado eletronicamente de todo tipo estão se tornando rapidamente o centro de um novo hipercapitalismo que comercializa o acesso a experiências culturais” (2001, p. 6). Para quem é a era do acesso? Aonde nesse processo o capitalismo transformou sua natureza é uma pergunta que deve ser feita já que é exatamente o capitalismo que possibilita essa explosão onde economia e cultura não se diferenciam mais. Portanto, a visão de Rifkin não é a utopia liberal que liberta o capitalista da propriedade? Para Rifkin, o produto cultural representa o estágio final do estilo de vida capitalista. Aqui Rifkin deve ser entendido numa tríade com Fukuyama e Huntington: o choque de civilizações é o fim da história já que o capitalismo na era do acesso faz com que a produção cultural seja o estágio final da civilização humana. Nada mais de política. Ao invés disso, o traço definidor do comércio da era do acesso é medido pela idéia de que o que é meu é seu e o que é seu é meu. A forma de competição capitalista, portanto, se transformou qualitativamente sem nenhuma ruptura deixando para trás o processo de centralização e concentração de capital numa harmônica competitividade. É como o Império de Toni Negri e Michael Hardt. De qualquer forma, além de suas debilidades (principalmente na segunda parte de seu livro onde atesta embaixo a doxa pós-moderna), Rifkin nos trás uma importante reflexão: no estágio do “capitalismo cultural” a imagem não representa um produto. É o produto que representa a imagem. Se compra determinado produto pela representação da imagem de um estilo de vida. Essa mercadificação da experiência mostra uma característica fundamental do capitalismo hoje: compramos cada vez menos produtos e objetos materiais e cada vez mais experiências de vida – sexo, alimentação, consumo cultural, participação num estilo de vida, etc. Os objetos materiais só servem de suporte para a experiência. Como nota Zizek, aqui a lógica da troca de mercado é levada a uma espécie de identidade hegeliana auto-referente: não compramos mais objetos, compramos na verdade (o tempo de) nossa própria vida. A noção de Michel Foucault de transformação do Eu numa obra de arte encontra então uma inesperada confirmação: compro meu preparo físico indo a academias de ginástica; compro minha iluminação espiritual ao me matricular em cursos de meditação transcendental; compro minha persona pública indo a restaurantes freqüentados por pessoas às quais desejo ser associado (2005, p. 314). Essa lógica não quebra com a economia de mercado capitalista, mas leva sua lógica a um clímax conseqüente. Não transforma a natureza do capitalismo, mas aprofunda os antagonismos que sustentam sua natureza. A luta pelo acesso, portanto, é que determina a posição hierárquica das empresas transnacionais, é a luta intercapitalista do século XXI.