A morte sem narração perde-se no tempo. Mas como narrar algo hoje quando a experiência narrativa vem perdendo espaço? Walter Benjamin já notou esse processo da seguinte forma:
“Torna-se cada vez mais raro o encontro com pessoas que sabem narrar alguma coisa direito. É cada vez mais freqüente espalhar-se em volta o embaraço quando se anuncia o desejo de ouvir uma história. É como se uma faculdade, que nos parecia inalienável, a mais garantida entre as coisas seguras, nos fosse retirada. Ou seja: a de trocar experiências. Uma causa deste fenômeno é evidente: a experiência caiu na cotação. E a impressão é a de que prosseguirá na queda interminável”.
A quem ouve o narrador mergulha no que escuta em sua própria experiência e, mais tarde, pode transmiti-la de bom grado. Benjamin nota que esta capacidade de audição também estaria sendo destruída, porque ela depende de um relaxamento psíquico propiciado por atividades naturais, como o fiar e o tecer, que estariam desaparecendo. Com a perda destas atividades, desaparece a “comunidade dos que escutam”, e a narrativa sofre golpe de morte. Segundo as palavras de Walter Benjamin,
“Narrar histórias é sempre a arte de as continuar contando e esta se perde quando as histórias já não são mais retidas. Perde-se porque já não se tece e fia enquanto elas são escutadas. Quanto mais esquecido de si mesmo está quem escuta, tanto mais fundo se grava nele a coisa escutada. No momento em que o ritmo do trabalho o capturou, ele escuta as histórias de tal maneira que o dom de narrar lhe advém espontaneamente. Assim, portanto, está constituída a rede em que se assenta o dom de narrar. Hoje em dia ela se desfaz em todas as extremidades, depois de ter sido atada há milênios no âmbito das mais antigas formas de trabalho artesanal”.
Ocorre segundo Benjamin, “uma espécie de concorrência histórica entre as várias formas de comunicação”. Nesta concorrência, a narrativa leva a pior, perdendo para o romance e a informação. E se a existência da narrativa está relacionada com o aconselhamento, dependendo de sua conservação na memória do ouvinte, sua substituição pelo romance e pela informação coincide com o desaparecimento dessas faculdades.
Por narração Benjamin entende uma arte e também uma faculdade, ambas em vias de desaparecimento. Isso quer dizer, em outras palavras, que desaparece no mundo atual a “faculdade de intercambiar experiências”. Tanto é que, na figura de Nicolai Leskov, Benjamin vê o último representante de uma arte em particular, a narração. Benjamin considera Leskov um extemporâneo, alguém que se encontra distante de seu tempo. Ao apresentá-lo como narrador, caracteriza-o como produto de um outro tempo que não o seu. Sua narração comporta elementos que não se apresentam ao seu cotidiano. A experiência que adensa a narração já não se encontra por isso mesmo disponível na época moderna. Isso explica porque o filósofo afirma que o narrador “não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva”.
A matéria prima da narração é a própria vida humana, a experiência (Erfahrung), aquela que anteriormente foi associada à sabedoria, como sendo “inimiga da pressa e do imediatismo” próprios de uma vivência. A lentidão é, naturalmente, matéria da experiência, cujo ritmo apressado da modernidade subtraiu o indivíduo do universo da tradição. Se narrar é a faculdade de intercambiar experiências, é também a faculdade de que dispõem aqueles que sabem trabalhar com o tempo; aqui, uma outra faceta da narração, que obedece, por sua vez, ao modo de produção artesanal, qualitativamente distinto do modo de produção capitalista, ou seja, industrial. Na prática narrativa interagem, segundo Benjamin, a voz, a mão e a alma. É a partir da convergência destes termos que a narrativa acabou se desenvolvendo em torno das mais “antigas formas de trabalho manual”.
“A narrativa floresceu num meio de artesão, (...) é ela própria uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso”.
Para Benjamin, “na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito”. O saber de que dispõe o narrador não é meramente técnico e nem tampouco um saber de si auto-referencial. Sua sabedoria implica no conhecimento histórico de formação de si em meio a um coletivo, do conhecimento das práticas, dos ritos e valores compartilhados e transmitidos pela tradição aos indivíduos. Para Jeanne Marie Gagnebin, é justamente nesse contexto que a experiência, a Erfahrung, pode surgir, pois essa é a experiência que não reenvia o indivíduo à sua vida como um só, singular, solitário, mas como ser em meio a outros. “A história do si vai, [assim], pouco a pouco, preencher o papel deixado vago pela história comum...”. É exatamente sobre este sentido de comunitário que se sustentam, inclusive, a noção de trabalho, entre outras práticas sociais.
Outro ponto crucial é a capacidade do narrador de dar conselhos. “o narrador é [sempre] um homem que sabe dar conselhos” escreve Benjamin. Em termos quase lacanianos, “aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada”. Ao narrador cabe deixar a história em aberto, intentando com isso de multiplicar as possibilidades de reconstrução do que se encontra perdido, esquecido ou destruído. Nesta perspectiva, o desejo comum projeta o futuro no presente obrigando a remontar o passado:
“Na vida, quanto mais cedo se formula um desejo, tanto maiores são as suas perspectivas de realização. Quanto mais um desejo remonta no tempo, tanto mais se pode esperar a sua concretização. Mas aquilo que reporta ao tempo passado é a experiência, é o que o preenche e articula. Por isso, o desejo realizado é a coroa destinada à experiência”
Quem formula e concretiza um desejo vive um “tempo que realiza”, antítese do “tempo infernal” experimentado por aqueles que, como o jogador e o trabalhador assalariado, se dobram sob um eterno presente, pois têm que “recomeçar sempre de novo”, não lhes sendo dado “realizar nada daquilo que começaram”. A marca do narrador firma-se no modo como este traduz a sua experiência, a tradição e os seus conselhos em sua narrativa, de forma única e peculiar.
“O narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poder deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida”.
Em Benjamin, tempo e linguagem se co-pertencem. A narração, ao restaurar o passado, atualiza o presente, presentifica a ausência do tempo. Sem narração a morte perde-se no tempo. Quando a linguagem sobre a morte também morre, a própria “condição de possibilidade” da experiência se mortifica. A experiência da morte se iguala assim a “vivência” da vida no capitalismo contemporâneo, sem paixão a uma causa que a cada morte ressuscita para dar sentido à vida comum que pode ser narrada. Nesta era de “banalidade da morte” a própria vida encontra um caminho limite de ruptura no campo do Ser. O encontro com esse limite ainda é um tema a desdobrar em outro texto cotidiano.
Neste blog regurgito minhas posições sobre diferentes aspectos da realidade/fantasia social, política e econômica do mundo atual.
segunda-feira, 30 de agosto de 2010
domingo, 29 de agosto de 2010
Fracasso: a chave do amor
Continuemos nossa recuperação filosófica do amor. Numa era marcada pelo medo como afeto central de nossas sociedades contemporâneas em conjunto com as demandas por segurança como motor da ação política, em que pé estão as relações intersubjetivas amorosas? O que será do amor nesta época de transformação da relação entre sexos?
Para Alain Badiou o amor é a invenção da verdade acerca da diferença, da diferença absoluta entre a posição masculina e feminina. Como disse certas vezes Lacan, a relação sexual não existe. Existe uma ilusão acerca da pura liberdade sexual: a ilusão de que podemos encontrar por ali uma experiência de conexão com o outro. Aí se compromete com a repetição e não com a criação. Entretanto, o que é verdade acerca da diferença? É a experiência da diferença mediante a construção de um novo ponto de vista sobre o mundo. É uma nova experiência do mundo do ponto de vista do Dois. O começo de qualquer experiência coletiva é a experiência do Dois. A amizade também detém a experiência do Dois, mas é uma experiência muito mais débil que o amor. Na bela síntese de Badiou, “a amizade é um amor calmo; o amor uma amizade excessiva”. Entrementes a amizade também é uma dimensão do amor. Sua distinção encontra-se não na intensidade ou nos afetos e sim no projeto. De qualquer forma são mais tensões que diferenças qualitativas que se encontram entre amor e amizade.
Em suma o amor é corajosa aventura, mas que precisa ser obstinada. Como escreve Badiou “abandonar a empreitada ao primeiro obstáculo, à primeira divergência séria ou aos primeiros problemas é desfiguração do amor. Amor verdadeiro é o que triunfa duravelmente, às vezes duramente, dos obstáculos que o espaço, o mundo e o tempo lhe propõem”. Badiou lembra como a sociabilidade contemporânea parece fascinada pelo "amor seguro contra todos os riscos". Busca se medir a relação a partir de custos e benefícios, algo como "um arranjo prévio que evita todo acaso, todo encontro e finalmente toda poesia existencial, isto em nome da ausência de risco". É o amor descafeínado típico de nossa era pós-política.
O amor é uma construção de verdade. O sentido do amor é uma experimentação radical da diferença e sua construção singular. No amor se trata de saber “o que é ser dois?”, enfrentar a questão sobre como se vê o mundo sendo dois. Tudo começa com um encontro. Depois vem o compromisso, a construção de algo novo que se poderá descobrir algo de verdade, algo sobre a própria construção. Para isso é necessário tempo. Diante dessa empreitada, renunciar é mais fácil. O imperativo é continuar sem renunciar, manter a confiança diante dos obstáculos, fracassos e impossibilidades. A fidelidade vem depois da confiança.
Para Alain Badiou o amor é a invenção da verdade acerca da diferença, da diferença absoluta entre a posição masculina e feminina. Como disse certas vezes Lacan, a relação sexual não existe. Existe uma ilusão acerca da pura liberdade sexual: a ilusão de que podemos encontrar por ali uma experiência de conexão com o outro. Aí se compromete com a repetição e não com a criação. Entretanto, o que é verdade acerca da diferença? É a experiência da diferença mediante a construção de um novo ponto de vista sobre o mundo. É uma nova experiência do mundo do ponto de vista do Dois. O começo de qualquer experiência coletiva é a experiência do Dois. A amizade também detém a experiência do Dois, mas é uma experiência muito mais débil que o amor. Na bela síntese de Badiou, “a amizade é um amor calmo; o amor uma amizade excessiva”. Entrementes a amizade também é uma dimensão do amor. Sua distinção encontra-se não na intensidade ou nos afetos e sim no projeto. De qualquer forma são mais tensões que diferenças qualitativas que se encontram entre amor e amizade.
Em suma o amor é corajosa aventura, mas que precisa ser obstinada. Como escreve Badiou “abandonar a empreitada ao primeiro obstáculo, à primeira divergência séria ou aos primeiros problemas é desfiguração do amor. Amor verdadeiro é o que triunfa duravelmente, às vezes duramente, dos obstáculos que o espaço, o mundo e o tempo lhe propõem”. Badiou lembra como a sociabilidade contemporânea parece fascinada pelo "amor seguro contra todos os riscos". Busca se medir a relação a partir de custos e benefícios, algo como "um arranjo prévio que evita todo acaso, todo encontro e finalmente toda poesia existencial, isto em nome da ausência de risco". É o amor descafeínado típico de nossa era pós-política.
O amor é uma construção de verdade. O sentido do amor é uma experimentação radical da diferença e sua construção singular. No amor se trata de saber “o que é ser dois?”, enfrentar a questão sobre como se vê o mundo sendo dois. Tudo começa com um encontro. Depois vem o compromisso, a construção de algo novo que se poderá descobrir algo de verdade, algo sobre a própria construção. Para isso é necessário tempo. Diante dessa empreitada, renunciar é mais fácil. O imperativo é continuar sem renunciar, manter a confiança diante dos obstáculos, fracassos e impossibilidades. A fidelidade vem depois da confiança.
quinta-feira, 19 de agosto de 2010
Ideologia e comida verde
Ideologia é certa experiência única do universo e o lugar que cada sujeito se encontra nele, servindo como produção das relações de poder existentes e tudo mais... O mínimo necessário para se estruturar a ideologia é a distancia de si mesmo perante outra ideologia, de denunciá-la como ideologia. Toda ideologia faz isso. Por isso que, em nossa era “pós-ideológica”, se clama que não existem mais projetos ideológicos e sim apenas pragmatismo, negociações, interesses plurais e por aí vai. É a ideologia que nega a si mesma como se houvesse algo mais ideológico do que postula vivermos numa era "pós-ideológica". Assim ideologia pode ser definida por como as coordenadas do sentido da experiência do mundo, como seu lugar na sociedade, estão relacionado com as tensões e antagonismos básicos da ordem social.
Como ideologia não é apenas um campo de idéias, mas regula também a prática social material numa espécie de suplemento necessário a própria realidade, vemos no capitalismo uma capacidade plástica infinita historicamente única de apropriação ideológica da ideologia. O capitalismo tem uma marca inigualável: consegue transformar o que era originalmente subversivo ou crítico em itens apropriados pelo mercado e vende-los para consumo. Comida ecológica, orgânica, produtos verdes e tudo mais – esse é um dos nichos de mercado centrais hoje. A capacidade do capitalismo de se apropriar de forma totalizante em torno das pessoas e das coisas envolve o esvaziamento do que poderia colocar em jogo algum eixo fundamental do sistema. Vamos pegar uma típica pessoa que come comida orgânica: ele não a compra porque quer realmente ser saudável. Ele a compra por algum tipo de solidariedade em relação a natureza. Ele compra certa instância ideológica, certa imagem de identificação social. Então não se está comprando um produto, mas certo status social, ideologia e por ai vai. O mesmo acontece com o budismo no ocidente... que escreverei num eventual próximo post.
Como ideologia não é apenas um campo de idéias, mas regula também a prática social material numa espécie de suplemento necessário a própria realidade, vemos no capitalismo uma capacidade plástica infinita historicamente única de apropriação ideológica da ideologia. O capitalismo tem uma marca inigualável: consegue transformar o que era originalmente subversivo ou crítico em itens apropriados pelo mercado e vende-los para consumo. Comida ecológica, orgânica, produtos verdes e tudo mais – esse é um dos nichos de mercado centrais hoje. A capacidade do capitalismo de se apropriar de forma totalizante em torno das pessoas e das coisas envolve o esvaziamento do que poderia colocar em jogo algum eixo fundamental do sistema. Vamos pegar uma típica pessoa que come comida orgânica: ele não a compra porque quer realmente ser saudável. Ele a compra por algum tipo de solidariedade em relação a natureza. Ele compra certa instância ideológica, certa imagem de identificação social. Então não se está comprando um produto, mas certo status social, ideologia e por ai vai. O mesmo acontece com o budismo no ocidente... que escreverei num eventual próximo post.
sexta-feira, 13 de agosto de 2010
A paixão da voz (como um objeto que é motor do pensamento)
Ao escutar uma bela voz na tarde desta sexta-feira sentei rapidamente e resolvi escrever sobre a voz em geral. São sínteses. Melhor, é um mini-texto-carta lacaniano resultado da famosa mutilação operada pelo "objeto a voz".
---------
Lacan escolhe o nó borrromeano como a configuração que articula os três registros da experiência humana no psiquismo: o real, o simbólico e o imaginário. Desse modo, na superposição da junção borromeana, o real fica sobre o simbólico, que fica sobre o imaginário, que tem, ele próprio, ascendência sobre o real. Os três registros se articulam de forma que há um espaço, um vazio no centro, um lugar de interseção, onde Lacan coloca o objeto a. Logo, como objeto a, a voz está entre as três dimensões do nó que surgem entrelaçadas, mas que podem ser pensadas, teoricamente, em separado.
A voz que chega aos ouvidos, fundida ao enunciado vocal sonoro, é apenas uma dimensão resultante de toda uma complexa trama imaginária (submetida ao simbólico) na qual o som veste a voz como objeto a, dando-lhe alguma consistência. Embora o real escape ao simbólico, o imaginário tem ascendência sobre ele, por isso, jamais o real se apresenta ao sujeito despido de alguma figuração. Como todo objeto a, a voz porta um excedente humano de força, de vigor, a rebeldia da energia vital: a libido, por onde se expressa essa exigência de um a “mais de gozar”. A voz é um sopro de vida que impulsiona, puxa as nossas enunciações, pois, como objeto a, nos provoca pela libido a tecer vigorosamente sobre o furo do real. Por isso, no seu cunho de objeto a, a voz está para além do tempo, onde habita um não simbolizável e um não imaginável e tende a mostrar-se como objeto ambíguo, fonte da angústia e causa do desejo. Tanto a voz como o olhar, ambos, não são visíveis ao sujeito em seu campo perceptivo.
Jacques-Alain Miller comenta, em seu ensaio intitulado “Jacques Lacan e a voz”, que o ato de cantar é uma forma de fazer calar o que tem o valor de voz enquanto objeto pequeno a. A tese de Lacan é de que a voz não pertence ao registro sonoro, nesse sentido, ela é afônica, por isso, ela poderá encarnar o furo, ela então, ordenar-se-á ao sujeito do significante, ou melhor, ao sujeito do inconsciente a partir do lugar vazio da castração da qual a voz exercerá sua função de objeto não-substancial.
Não é a toa que o grito, para Lacan, é a ponte para entender o universal de toda linguagem. É o que, do discurso, desemboca no ponto para além da significação.
Mas a voz também tem uma implicação no nível do desejo. Lacan, em seu seminário 13, O objeto da psicanálise nos diz que “Se o desejo do sujeito se funda no desejo do Outro, este desejo como tal se manifesta a nível da voz. A voz não é somente o objeto causal, mas o instrumento de onde se manifesta o desejo do Outro”. A voz é a borda entre a angústia e o desejo. Não é fácil lidar com a voz. A voz se revela não apenas pelo fato de desaparecer no ar, sem deixar pistas. Como escreve o esloveno Mladen Dolar, é precisamente a voz que mantém corpos e línguas unidos. Entretanto, a voz não pertence a nenhum dos dois. Essa é a propriedade que divide com todos os objetos de pulsão: encontra-se situados num âmbito que excede o corpo, prolongam o corpo como uma excrescência. A voz é localizada como intervalo entre corpo e linguagem, entre sujeito e Outro, entre som e palavra, escapando a qualquer atribuição de papel unívoca. A risada é diferente de outros fenômenos porque parece exceder a linguagem tanto na direção pré-simbólica quanto mais além do simbólico. Já a música é uma tentativa de domesticar este objeto, transformá-lo em prazer estético, de erguer uma barreira contra o que dele é insuportável.
Assim a voz é um instrumento vivo capaz de mobilizar os sorrisos da escuta. A dificuldade continua a mesma: ouvir outra coisa além do simples significado das palavras que estão sendo pronunciadas.
---------
Lacan escolhe o nó borrromeano como a configuração que articula os três registros da experiência humana no psiquismo: o real, o simbólico e o imaginário. Desse modo, na superposição da junção borromeana, o real fica sobre o simbólico, que fica sobre o imaginário, que tem, ele próprio, ascendência sobre o real. Os três registros se articulam de forma que há um espaço, um vazio no centro, um lugar de interseção, onde Lacan coloca o objeto a. Logo, como objeto a, a voz está entre as três dimensões do nó que surgem entrelaçadas, mas que podem ser pensadas, teoricamente, em separado.
A voz que chega aos ouvidos, fundida ao enunciado vocal sonoro, é apenas uma dimensão resultante de toda uma complexa trama imaginária (submetida ao simbólico) na qual o som veste a voz como objeto a, dando-lhe alguma consistência. Embora o real escape ao simbólico, o imaginário tem ascendência sobre ele, por isso, jamais o real se apresenta ao sujeito despido de alguma figuração. Como todo objeto a, a voz porta um excedente humano de força, de vigor, a rebeldia da energia vital: a libido, por onde se expressa essa exigência de um a “mais de gozar”. A voz é um sopro de vida que impulsiona, puxa as nossas enunciações, pois, como objeto a, nos provoca pela libido a tecer vigorosamente sobre o furo do real. Por isso, no seu cunho de objeto a, a voz está para além do tempo, onde habita um não simbolizável e um não imaginável e tende a mostrar-se como objeto ambíguo, fonte da angústia e causa do desejo. Tanto a voz como o olhar, ambos, não são visíveis ao sujeito em seu campo perceptivo.
Jacques-Alain Miller comenta, em seu ensaio intitulado “Jacques Lacan e a voz”, que o ato de cantar é uma forma de fazer calar o que tem o valor de voz enquanto objeto pequeno a. A tese de Lacan é de que a voz não pertence ao registro sonoro, nesse sentido, ela é afônica, por isso, ela poderá encarnar o furo, ela então, ordenar-se-á ao sujeito do significante, ou melhor, ao sujeito do inconsciente a partir do lugar vazio da castração da qual a voz exercerá sua função de objeto não-substancial.
Não é a toa que o grito, para Lacan, é a ponte para entender o universal de toda linguagem. É o que, do discurso, desemboca no ponto para além da significação.
Mas a voz também tem uma implicação no nível do desejo. Lacan, em seu seminário 13, O objeto da psicanálise nos diz que “Se o desejo do sujeito se funda no desejo do Outro, este desejo como tal se manifesta a nível da voz. A voz não é somente o objeto causal, mas o instrumento de onde se manifesta o desejo do Outro”. A voz é a borda entre a angústia e o desejo. Não é fácil lidar com a voz. A voz se revela não apenas pelo fato de desaparecer no ar, sem deixar pistas. Como escreve o esloveno Mladen Dolar, é precisamente a voz que mantém corpos e línguas unidos. Entretanto, a voz não pertence a nenhum dos dois. Essa é a propriedade que divide com todos os objetos de pulsão: encontra-se situados num âmbito que excede o corpo, prolongam o corpo como uma excrescência. A voz é localizada como intervalo entre corpo e linguagem, entre sujeito e Outro, entre som e palavra, escapando a qualquer atribuição de papel unívoca. A risada é diferente de outros fenômenos porque parece exceder a linguagem tanto na direção pré-simbólica quanto mais além do simbólico. Já a música é uma tentativa de domesticar este objeto, transformá-lo em prazer estético, de erguer uma barreira contra o que dele é insuportável.
Assim a voz é um instrumento vivo capaz de mobilizar os sorrisos da escuta. A dificuldade continua a mesma: ouvir outra coisa além do simples significado das palavras que estão sendo pronunciadas.
História, revolução e amor
Essas notas fazem parte de devaneios que estão saltitando mas também complementam algumas reflexões anteriores, principalmente sobre história, revolução e amor.
------------------
A cerca de duas décadas atrás Francis Fukuyama lançou a tese do “fim da história”. De certo modo ele está correto: o capitalismo global é o fim da história. Na medida em que o oposto da história é a natureza, o “fim da história” significa que o próprio processo social é cada vez mais “naturalizado”, vivenciado como uma forma de destino, uma força cega e sem controle. O capitalismo vem se universalizando de tal forma que sua aceitação está o tornando invencível e indestrutível, Sem dúvida o que está em jogo aqui é o fim da uma concepção de história, agora baseada num tempo desorientado.
Zizek está certo com a pergunta: não estamos hoje todos divididos entre a lembrança do passado histórico e o presente pós-histórico que não somos capazes de inserir na mesma narrativa com o passado, de modo que o presente é vivenciando como uma confusa sucessão de fragmentos que se evaporam rapidamente em nossa memória? Em suma, o problema de nossa era não é que não conseguimos nos lembrar do passado, de nossa própria história, mas sim que não conseguimos nos recordar do próprio presente – não conseguimos historitizá-lo – narrá-lo apropriadamente, ou seja, adquirir um mapeamento cognitivo adequado com relação a ele. Não é a toda que, do ponto de vista da esquerda, estamos experimentando não é apenas um déficit de ação ou a ausência de meios e da organização necessário à luta. Não sabemos como agir contra o capitalismo e estamos penando para redescobrir como pensar contra ele.
Em parte isso se dá porque nossa vida cotidiana no capitalismo tardio envolve uma rejeição sem precedentes da experiência do outro com o qual se aprende sobre os sintomas da história. Numa memorável interpretação das teses “Sobre o conceito de história” de Walter Benjamin, Eric Santner desenvolve a noção benjaminiana de que uma intervenção revolucionária presente repete/redime as tentativas fracassadas no passado. Os “sintomas” – traços do passado que são “redimidos” pela intervenção revolucionária – “não são exatamente feitos esquecidos, mas inações, tentativas fracassadas de suspender a força do tecido social que inibe gestos de solidariedade em relações aos ‘outros’ de uma dada sociedade”.
“Sintomas marcam não só tentativas revolucionárias fracassadas, mas, mais modestamente, respostas não-dadas a chamados para a acao ou mesmo por empatia em relacao àqueles cujo sofrimento de certo modo faz parte de nossa forma de vida. Eles guardam o lugar de algo que está lá, que insiste em nossa vida, mesmo que não tenha atingido consistência ontológica completa. Sintomas são, portanto, em certo sentido, os arquivos virtuais de vazios – ou, melhor dizendo, defesas contra vazis – que persistem na experiência histórica”.
É nesta “defesa contra vazis” que encontramos a singularidade universal do sujeito. A universalidade emerge onde a ordem “normal” que liga a cadeia de particulares é rompida. Por isso que não há, por exemplo, revolução “normal”. Toda explosão revolucionária é fundada numa exceção, num curto-circuito de “tarde demais” e “cedo demais”. Existe, simultaneamente, falta e excesso. A revolução, assim como o amor, nunca tem condições objetivas perfeitas para acontecer.
Aqui devemos entender as ligações entre o capitalismo contemporâneo e as possibilidades de amar. Hoje a busca patológica pela normalidade não é contrária ao culto pela diferença colorida da tolerância multicultural pós-moderna. Ambas recusam a possibilidade do Ato amoroso que reconfigura as coordenadas simbólicas. É uma postura que busca amor e segurança ao mesmo tempo ou, nos termos de Badiou, um “amor securitário”. Ambas são as posições ideológicas par excellence da pós-modernidade ideologicamente “pós-ideológica”. Ambas têm medo de serem pegas sob uma identificação com o Outro.
O desejo de amar não é sustentado por pressões superegóicas. Por isso que entre sexo e amor não existe metalinguagem (enquanto o sexo é baseado em pressões do supereu obviamente não existe amor!). O amor é o desejo de ser Um – e claro que o amor ignora a impossibilidade dessa empreitada.
Fico me perguntando: não é evidente que há alvo horrivelmente violento ao mostrarmos nossa paixão por outro ser humano – seja ele homem ou mulher? A paixão fere seu objeto, mutila-o. Até mesmo se seu objeto alegremente concorda em ocupar esse lugar, ele ou ela nunca podem fazê-lo sem um momento de espanto ou surpresa. A essa “imperfeição” constitutiva da paixão Lacan deu o nome de objet petit a: o tique “patológico” que torna alguém singular - o "objeto perdido da história de cada sujeito". No amor autêntico, eu amo o outro não apenas por estar vivo, mas por causa do excesso perturbador de vida nele ou nela.
Comumente existem algumas opções diante de um convite amoroso: 1) há os que recusam convites porque, “de qualquer forma”, já sabem que não vai ser o grande amor; 2) Há os que não querem perder tempo com conhecidos, só “com grandes amigos mesmo”; 3) Há os que recusam convites porque, se for o grande amor, vai ser o fim de seus hábitos solitários consolidados (não está disposto a aprender a amar); 4) há os que recusam convites porque, se o grande amor acontecer, vão ter que parar de se preparar para o grande amor futuro. Essas quatro posturas têm algo em comum: excluem a materialização de um amor impossível. Esse Ato Impossível não é irracional. Longe disso, ele cria sua própria (e nova) racionalidade. Temos que correr o risco, um passo no vazio, sem um grande Outro para aprovar. Esse Ato impossível é o que acontece em qualquer processo revolucionário e amoroso autêntico.
Há uma vergonha em todo amor, uma "desadaptação", uma quebra na harmonia do conjunto. As relações entre os que se amam seguem regras próprias que atemorizam os que estão à volta. Não é a toa que o medo de amar é o medo de construir uma história conjunta no que se há de traumático (e não harmonioso a priori) entre os amantes. O amor, tanto quanto o desejo, começa da falta. Mas como sentir amor hoje quando nos manifestamos como pessoas sem faltas?
------------------
A cerca de duas décadas atrás Francis Fukuyama lançou a tese do “fim da história”. De certo modo ele está correto: o capitalismo global é o fim da história. Na medida em que o oposto da história é a natureza, o “fim da história” significa que o próprio processo social é cada vez mais “naturalizado”, vivenciado como uma forma de destino, uma força cega e sem controle. O capitalismo vem se universalizando de tal forma que sua aceitação está o tornando invencível e indestrutível, Sem dúvida o que está em jogo aqui é o fim da uma concepção de história, agora baseada num tempo desorientado.
Zizek está certo com a pergunta: não estamos hoje todos divididos entre a lembrança do passado histórico e o presente pós-histórico que não somos capazes de inserir na mesma narrativa com o passado, de modo que o presente é vivenciando como uma confusa sucessão de fragmentos que se evaporam rapidamente em nossa memória? Em suma, o problema de nossa era não é que não conseguimos nos lembrar do passado, de nossa própria história, mas sim que não conseguimos nos recordar do próprio presente – não conseguimos historitizá-lo – narrá-lo apropriadamente, ou seja, adquirir um mapeamento cognitivo adequado com relação a ele. Não é a toda que, do ponto de vista da esquerda, estamos experimentando não é apenas um déficit de ação ou a ausência de meios e da organização necessário à luta. Não sabemos como agir contra o capitalismo e estamos penando para redescobrir como pensar contra ele.
Em parte isso se dá porque nossa vida cotidiana no capitalismo tardio envolve uma rejeição sem precedentes da experiência do outro com o qual se aprende sobre os sintomas da história. Numa memorável interpretação das teses “Sobre o conceito de história” de Walter Benjamin, Eric Santner desenvolve a noção benjaminiana de que uma intervenção revolucionária presente repete/redime as tentativas fracassadas no passado. Os “sintomas” – traços do passado que são “redimidos” pela intervenção revolucionária – “não são exatamente feitos esquecidos, mas inações, tentativas fracassadas de suspender a força do tecido social que inibe gestos de solidariedade em relações aos ‘outros’ de uma dada sociedade”.
“Sintomas marcam não só tentativas revolucionárias fracassadas, mas, mais modestamente, respostas não-dadas a chamados para a acao ou mesmo por empatia em relacao àqueles cujo sofrimento de certo modo faz parte de nossa forma de vida. Eles guardam o lugar de algo que está lá, que insiste em nossa vida, mesmo que não tenha atingido consistência ontológica completa. Sintomas são, portanto, em certo sentido, os arquivos virtuais de vazios – ou, melhor dizendo, defesas contra vazis – que persistem na experiência histórica”.
É nesta “defesa contra vazis” que encontramos a singularidade universal do sujeito. A universalidade emerge onde a ordem “normal” que liga a cadeia de particulares é rompida. Por isso que não há, por exemplo, revolução “normal”. Toda explosão revolucionária é fundada numa exceção, num curto-circuito de “tarde demais” e “cedo demais”. Existe, simultaneamente, falta e excesso. A revolução, assim como o amor, nunca tem condições objetivas perfeitas para acontecer.
Aqui devemos entender as ligações entre o capitalismo contemporâneo e as possibilidades de amar. Hoje a busca patológica pela normalidade não é contrária ao culto pela diferença colorida da tolerância multicultural pós-moderna. Ambas recusam a possibilidade do Ato amoroso que reconfigura as coordenadas simbólicas. É uma postura que busca amor e segurança ao mesmo tempo ou, nos termos de Badiou, um “amor securitário”. Ambas são as posições ideológicas par excellence da pós-modernidade ideologicamente “pós-ideológica”. Ambas têm medo de serem pegas sob uma identificação com o Outro.
O desejo de amar não é sustentado por pressões superegóicas. Por isso que entre sexo e amor não existe metalinguagem (enquanto o sexo é baseado em pressões do supereu obviamente não existe amor!). O amor é o desejo de ser Um – e claro que o amor ignora a impossibilidade dessa empreitada.
Fico me perguntando: não é evidente que há alvo horrivelmente violento ao mostrarmos nossa paixão por outro ser humano – seja ele homem ou mulher? A paixão fere seu objeto, mutila-o. Até mesmo se seu objeto alegremente concorda em ocupar esse lugar, ele ou ela nunca podem fazê-lo sem um momento de espanto ou surpresa. A essa “imperfeição” constitutiva da paixão Lacan deu o nome de objet petit a: o tique “patológico” que torna alguém singular - o "objeto perdido da história de cada sujeito". No amor autêntico, eu amo o outro não apenas por estar vivo, mas por causa do excesso perturbador de vida nele ou nela.
Comumente existem algumas opções diante de um convite amoroso: 1) há os que recusam convites porque, “de qualquer forma”, já sabem que não vai ser o grande amor; 2) Há os que não querem perder tempo com conhecidos, só “com grandes amigos mesmo”; 3) Há os que recusam convites porque, se for o grande amor, vai ser o fim de seus hábitos solitários consolidados (não está disposto a aprender a amar); 4) há os que recusam convites porque, se o grande amor acontecer, vão ter que parar de se preparar para o grande amor futuro. Essas quatro posturas têm algo em comum: excluem a materialização de um amor impossível. Esse Ato Impossível não é irracional. Longe disso, ele cria sua própria (e nova) racionalidade. Temos que correr o risco, um passo no vazio, sem um grande Outro para aprovar. Esse Ato impossível é o que acontece em qualquer processo revolucionário e amoroso autêntico.
Há uma vergonha em todo amor, uma "desadaptação", uma quebra na harmonia do conjunto. As relações entre os que se amam seguem regras próprias que atemorizam os que estão à volta. Não é a toa que o medo de amar é o medo de construir uma história conjunta no que se há de traumático (e não harmonioso a priori) entre os amantes. O amor, tanto quanto o desejo, começa da falta. Mas como sentir amor hoje quando nos manifestamos como pessoas sem faltas?
segunda-feira, 9 de agosto de 2010
Amor a quem?
Por Bertold Brecht
Dizia-se da atriz Z. que ela tinha se suicidado devido a um amor infeliz. O Sr. Keuner disse: “Ela se suicidou por amor a si mesma. De todo modo, ela não pode ter amado X. Senao ela não lhe teria feito isso. Amor é o desejo de dar algo, não de receber. Amor é a arte de produzir algo com as capacidades do outro. Para isso precisa-se de atenção e dedicação do outro. Isto sempre se pode arranjar. O desejo exagerado de ser amado tem pouco a ver com amor genuíno. O amor a si tem sempre algo de suicida”.
Dizia-se da atriz Z. que ela tinha se suicidado devido a um amor infeliz. O Sr. Keuner disse: “Ela se suicidou por amor a si mesma. De todo modo, ela não pode ter amado X. Senao ela não lhe teria feito isso. Amor é o desejo de dar algo, não de receber. Amor é a arte de produzir algo com as capacidades do outro. Para isso precisa-se de atenção e dedicação do outro. Isto sempre se pode arranjar. O desejo exagerado de ser amado tem pouco a ver com amor genuíno. O amor a si tem sempre algo de suicida”.
sábado, 7 de agosto de 2010
Dilma - “Nós não somos o MST”
“Quem somos nós?” pergunta a filosofia. Como pode “certas alas” do PT vangloriar a centralização política sem precedentes que está ocorrendo hoje, principalmente numa campanha eleitoral que está cogitando uma “anti-socialista de esquerda” para a presidência na Nação? Sabemos que Dilma não é Lula e nunca vai ser. Sua mediação política não é carismática e sim pragmática tanto em forma e como em conteúdo. O melhor exemplo é sua relação com o MST. Dilma é anti-MST na essência. Sabemos que a o método da luta pela terra no Brasil tem como centralidade as ocupações de terra. Sem elas não existe reforma agrária. Paremos de brincadeira. Dilma disse o seguinte numa recente entrevista: “E não condeno (as invasões) de hoje não. Condeno desde o início do governo Lula. Ele condenou também explicitamente. Nós não concordamos com invasão de prédio, invasão de terra. Não achamos que esse é o método correto”. E daí que “nós não achamos que esse é o método correto”? O que Dilma sabe sobre a práxis da luta de classes no campo? Ela não sabe nem a diferença de uma invasão e de uma ocupação e quer pautar o movimento sem-terra a partir de uma “ligações políticas históricas” entre PT e MST? Dilma que não é uma liderança popular quer impor ao movimento os métodos que podem e devem ser usados? A partir de qual parâmetro? Naturalmente daqueles que enfraquecem a luta social, que expande a pós-política petista existente numa institucionalização estéril ao próprio movimento. Dilma recentemente abriu o jogo: “fizemos uma política que tirou as principais bandeiras deles. Não foi porque a gente reprimiu. Tem coisa mais eficaz que atender o movimento?”. Em outras palavras, quando o Estado compra o movimento estaria existindo um avanço para a esquerda, ou seja lá o que ela quer dizer com “esquerda”. É a Terceira Internacional correndo nas veias de Dilma. Contra o reacionarismo de Dilma que disse que “Nós não somos o MST”, o real desafio é o lema do MST ser levado a cabo pelo MST e pelo que resta da esquerda: “Todos somos sem-terra”. Nesta contradição a dialética perdura os pensamentos mais insistentes contra a pós-política petista.
quarta-feira, 4 de agosto de 2010
Nota sobre a pós-política petista - parte 6
Como diz Paulo Arantes, “brilha no céu o inspirador ponto final lulista”. O governo Lula re-configurou o capitalismo, as relações de classe, a esquerda, a política e a história do Brasil. Suspendeu-se a ordem política democrática com um metalúrgico na presidência que acabou por avançar um “capitalismo de crédito para pobres”. É um fenômeno de proporções internacionais! Essa superação contraditória da via prussiana se deu tanto por condições externas propícias como um interdito proibitório contra a esquerda numa declarada vitória do pragmatismo centrista como "condição de governabilidade". Como bem disse Arantes, “foi o grande negócio – seja ele qual for, a lógica financeira é a mesma – que aderiu ao lulismo e não o contrário. Simplesmente entregou a uma camada de gestores e operadores políticos, na qual a grande massa dos pobres enfim se reconheceu, o governo de uma sociedade em que a pobreza assistida ganhou uma identidade moral própria e superior. Encontrou-se afinal, para um país periférico finalmente alojado no capitalismo energético, uma forma de dominação inédita, exercida não só em nome, mas pelos próprios dominados. É uma espécie de auto-gestão da miséria, mas que como tais devem no entanto permanecer para ter voz, forrada agora pelo estofo da auto-estima reencontrada – capital político sem preço”. É a instalação da pós-política democrática pluriclassista “fukuyamista” como discurso nacional oficial numa estranha mistura de gestão dos interesses privados (nacionais e internacionais) com o fim da história política sob a figura do PT no poder. Como resultado a esquerda está hibernando. Talvez quando acordar (se acordar) seja tarde demais.
segunda-feira, 2 de agosto de 2010
Nota sobre a pós-política petista - parte 5
Para Alain Badiou, a palavra “democracia” é hoje em dia a organizadora principal do consenso. É uma “opinião autoritária” sendo assim proibido não ser democrata. Como diz o filósofo, “É evidente que a humanidade aspira à democracia, e toda a subjetividade suposta não ser democrata é tida por patológica”. A democracia é hoje considerada espontaneamente como natural. Existe uma idéia reguladora que postula a democracia como horizonte último de qualquer transformação possível na realidade social. Nestas penosas condições é que se encontra a esquerda, postulando um novo neoliberalismo baseado num capitalismo sem excessos, mais ecológico, tolerante e democrático - cujo melhor exemplo é o governo Lula no Brasil. As massas continuam fora da política porque um líder operário está gerindo o Estado. O governo Lula transformou a esquerda mundial. É a maior e mais complexa estabilização do capitalismo histórico numa periferia. Um líder operário na presidência: tem algum feito maior que esse na democracia-liberal? Provavelmente não. Como bem disse Lula “como o Brasil era uma economia capitalista se não tinha crédito? Precisou entrar um metalúrgico socialista para transformar esse país num país capitalista”. Enquanto isso nestas eleições fica claro como isso ocorreu: num esvaziamento simbólico do PT sem precedentes. A legenda está literalmente podre. Os filiados são mais numerosos do que nunca, somando 1,4 milhão de pessoas. Neste “Grande Partido” até Osmar Dias é quadro integrante, é base aliada. O resultado é claro: a política pragmática do PT perdeu parte do eleitorado que tradicionalmente votada na legenda que ainda se encontra desnorteado.
Assinar:
Postagens (Atom)