O lema “sejamos realistas, exijamos o impossível” mostra bem os limites do movimento de 1968. Lacan captou muito bem esse limite quando disse “Como revolucionários, vocês são histéricos que exigem um novo mestre. Vocês vão ganhar um”. No lema, o “exijamos” é direcionado para quem? Fazer exigências impossíveis que sabemos que, a priori não podem ser atendidas faz parte da lógica histérica por um Mestre. A pergunta que fica é: hoje, a herança dos anos 1960 do hedonismo tolerante não a prática dominante da esquerda pós-moderna? Considerando que hoje essas demandas histéricas não são produtivas no campo da esquerda, talvez seja hora de outro lema: “sejamos realistas, arrisquemos o impossível”. Depender do Outro para assegurar o Ato é o sonho liberal, um Ato sem Ato.
O espantoso resultado ideológico de 1968 é que, desde lá, a conhecida “globalização capitalista” trouxe como resultado a naturalização radical do sistema-regime capitalista impondo-se como limite ontológico do desenvolvimento humano na história. O que a esquerda pós-moderna faz é exatamente aceitar esse prognóstico. Entretanto, teríamos chegado mesmo ao fim da história? Talvez, mas não da forma com que Francis Fukuyama a apresentou.
Fukuyama estava certo num ponto: a utopia liberal é o fim da história numa transformação conjuntural infinita. Diante dessa crise, entretanto, essa utopia liberal (que articula muito dos movimentos emancipatórios hoje) entra em parafuso diante da impossibilidade estrutural de dar uma resposta minimamente plausível diante do tsunami econômico e político global. Diante disso, é possível esperar da conduta liberal de hoje apenas uma forma semelhante da sua relação com o fascismo: a neutralidade estéril. Fazendo um simples exercício intelectual, pensemos: é possível ficar neutro em relação a Hitler, por exemplo? A posição liberal de neutralidade diante da atual crise só abre portas mais radicais para a extrema direita. Esse não é um desvio de conduta, mas o cerne mais profundo da posição liberal diante das calamidades sociais e ecológicas que presenciamos. Sua visão de mundo baseada num Todo orgânico que precisa só de “melhoramentos empíricos” já que o capitalismo é o pressuposto para liberdade, democracia, tolerância etc claro que não está do lado da luta política de esquerda que enfatiza a irredutibilidade de um antagonismo que corta esse Todo e trazendo, assim, a necessidade de repensar radicalmente as políticas de emancipação e sua forma.
É trágico que a esquerda hoje detenha sua esterilidade nas políticas de emancipação que se estruturam na prática estritamente dentro do jogo democrático. Portanto, diante desse panorama, concordo com Zizek quando escreve que “fidelidade ao consenso democrático” significa a aceitação do atual consenso liberal-parlamentar já que impede qualquer questionamento sério da forma como essa ordem democrático-liberal é cúmplice nos fenômenos que ela condena além de oficialmente condenar qualquer tentativa séria de imaginar uma ordem sociopolítica diferente.
Em suma, significa: diga e escreva o que quiser – desde que não se questione ou perturbe, na prática, o consenso político dominante. [...] No momento em que questionamos seriamente o consenso liberal existente, somos acusados de abandonar a objetividade científica em troca de posições ideológicas ultrapassadas. Esse é o ponto “leninista” do qual não se pode nem se deve abrir mão: hoje, a verdadeira liberdade de pensamento significa liberdade para questionar o consenso democrático-liberal “pós-ideológico” dominante – ou não significa nada (Zizek, 2005, p. 173, 174).
Nesse ponto não podemos mais nos enganar sobre o caráter estrutural que a democracia desempenha na sustentação da ordem simbólica capitalista global. Hoje, o inimigo não é o Império e sim a democracia: “o que impede o questionamento radical do próprio capitalismo é exatamente a crença na forma democrática da luta contra o capitalismo” (Zizek, 2008, p. 420). O mesmo ponto é enfatizado por Badiou em sua 15º tese sobre arte contemporânea: “É melhor não fazer nada do que contribuir para a invenção de maneiras formais de tornar visível o que o Império já reconhece como existente”. É sob a crença na forma democrática de transformação social que a noção de ato político radical (com excessos) para ir além desse impasse democrático é piamente reprovada pelos liberais.
Podemos refletir sobre esses limites da ação de resistência que, sob a democracia-liberal, desconsideram a possibilidade de uma transformação radical em completa conformidade com a situação política contemporânea, isso é, o centramento da esquerda e direitização da direita. Em termos zizekianos, a linha divisória já não é mais entre a esquerda e a direita, mas entre o campo “moderado” da pós-política e a repolitização da extrema direita que dá corda para o movimento político. Em outras palavras, a esquerda foi incapaz de se repetir ou, em termos dialéticos, voltar a si mesma, de estar de acordo com sua atualidade histórica. O resultado mais claro é o vácuo ideológico e político que foi apropriado pela agenda liberal que reduz a luta por emancipação para além do capital a lutas por tolerância e multiculturalismo na era do capitalismo global. Hoje, entretanto, essa despolitização mostra uma ironia histórica quando percebemos que a agenda liberal de centro não se diferencia radicalmente da agenda da extrema-direita.
No Brasil esse processo de transformação da esquerda é dramático. Assim como os Estados Unidos que acabaram por polarizar a disputa política entre dois partidos que, no final de contas, são farinha do mesmo saco, no Brasil o PT cria uma unidade dialética com o PSDB. Um não funciona sem o outro já que o condicionamento é mútuo. Criado como uma força extraparlamentar, hoje o PT encontra-se afundado na ideologia do “lulismo” enquanto presenciamos uma repolitização da direita e seus queridos Aécio Neves, Geraldo Alckmin, José Serra, Fernando Henrique (que, por hora, é o excluído da vez). A ofensiva da direita encontra seu estado embrionário na América Latina com o exemplo vivo de Honduras que, desde o golpe de estado da canalha fascista, matou mais de cem pessoas. Atentemo-nos.
2 comentários:
“É melhor não fazer nada do que contribuir para a invenção de maneiras formais de tornar visível o que o Império já reconhece como existente” é, de certa forma, exatamente o que dizia Glauber Rocha, muito antes de Badiou! E é por estas e muitas outras que sim, ele é o maior cineasta brasileiro e não cabe na lista escrita anteriormente (a baixo)!
Ótimo texto, eu pergunto se essa "centrização da esquerda" não é a realização da reforma como atenuação das contradições do capital... quer dizer, para os fukuyamistas, não é que não haja contradições no capitalismo, elas existem e são visíveis cotidianamente; o que não mais existiria, contudo, são as alternativas à democracia liberal como campo de solução dessas contradições. Ora, por "solução", é óbvio que os liberais fukuyamistas não entendem "superação", mas sim "atenuação" das contradições, exatamente como Bernstein. Às vezes eu penso se a base material da reforma e do fim da história no sentido de fukuyama não é a criação de uma estrutura política - a democracia - capaz de cooptar indefinidamente as lideranças proletárias em projetos como o do PT ou do Partido Democrata, ou dos socialistas europeus (em sua maioria). Assim, o fim da história seria a alternância, até agora insuperada, entre partidos pró-mercado, adeptos da expansão nua e crua do Capital (direita) e partidos reformistas pró-Estado, que seguram a barra nos momentos de crise... temos visto isso com Obama e Lula... o q acha?
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