quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Reflexôes sobre as potencialidades do capital

Peço desculpas ao leitos pela linguagem mais truncada.

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Costumamos subestimar a potencialidade do capital como metabolismo de exploração, dominação, opressão e controle social. Porém, o que queremos dizer com potencialidade do capital?

Potencialidade vem de uma força potencial. Para que exista e se reproduza, qualquer potencialidade necessita, assim, de leis próprias para conduzir diversas relações a determinadas potencialidades. Por exemplo, uma dinamite tem a potencialidade de explodir sobre o efeito de determinadas relações causais que dizem respeito a sua função primordial. Uma dinamite não foi feita para alimentar gado. Desde seu intuito inventivo a dinamite já tem a potencialidade de explodir mesmo que possa não o fazer. Essa é uma potencialidade. Algo que segundo suas regras lógicas têm uma tendência a ocorrer ou então seus próprios mecanismos para existência não conseguem ter funcionalidade e acabam por ser extintos. Se não explodir a dinamite em um determinado prazo, ela pode simplesmente estragar. Nessa lógica se não respeitar suas regras de funcionamento que, nesse caso, seria explodir, ela não respeita suas potencialidades e perde sentido.

O mesmo ocorre com o sistema do capital. Se ele não atender certas potencialidades que condizem com suas regras de funcionamento suas formas de reprodução perdem sentido. É possível, por exemplo, pensarmos em empresas que não busquem o lucro? As regras do sistema do capital como um metabolismo social é essa e suas potencialidades são aquelas que tentam possibilitar em diferentes tempos e espaços melhores formas para atender a essas demandas envolvendo assim, a totalidade da sociedade. István Meszáros escreve que

O capital não é simplesmente uma “entidade material” [...] mas é, em última análise, uma forma incontrolável de controle sociometabólico. A razão principal por que este sistema forçosamente escapa a um significativo grau de controle humano é precisamente o fato de ter, ele próprio, surgido no curso da história como uma poderosa – na verdade, até o presente, de longe, a mais poderosa – estrutura “totalizante” de controle à qual tudo o mais, inclusive seres humanos, deve se ajustar, e assim provar sua “viabilidade produtiva”, ou perecer, caso não consiga se adaptar. Não se pode imaginar um sistema de controle mais inexoravelmente absorvente – e, neste importante sentido, “totalitário” – do que o sistema do capital globalmente dominante, que sujeita cegamente aos mesmos imperativos a questão da saúde e a do comércio, a educação e a agricultura, a arte e a indústria manufatureira, que implacavelmente sobrepõe a tudo seus próprios critérios de viabilidade, desde as menos unidades de seu “microcosmo” até as mais gigantescas empresas transnacionais, desde as mais íntimas relações pessoais aos mais complexos processos de tomada de decisão dos vastos monopólios industriais, sempre a favor dos fortes e contra os fracos

Por esse poder, pode-se dizer assim que o capital tornar-se o sujeito da criação das novas possibilidades sistêmicas a partir de conflitos sociais e dentro de sua própria dinâmica contraditória. Por ter potencialidades para atender as necessidades de seu sistema, o capital pode se reproduzir até determinados limites que transgridem as próprias lógicas de existência quando as aplicabilidades dessas necessidades pelas potencialidades não são atendidas devidas à intensidade e potencialidade de contra-tendências sistêmicas e as próprias crises internas.
O sistema do capital tem necessidades que precisa atender: acumulação e expansão. O sistema do capital também necessita de aplicabilidade de suas medidas que envolvem diretamente a legitimidade, a alienação, o desenvolvimento da luta de classes, as possibilidades materiais, métodos de fragmentação social, as mediações culturais, as demandas por igualdade e cada vez mais sustentabilidade ecológica. Mesmo que muitas vezes contraditórias, o sistema do capital consegue para sua reprodutibilidade aplicar mecanismos que vão contra essas especificações de forma a transformar tais limites em sua própria valorização, como é o caso da ecologia. Slavoj Zizek aponta que

o capitalismo tem uma incrível capacidade de transformar a catástrofe numa nova forma de acesso. O capitalismo é capaz de transformar todos os limites externos a seu desenvolvimento num desafio para novos investimentos capitalistas. Por exemplo, vamos presumir que ocorra uma grande catástrofe ecológica. Creio que o capitalismo pode simplesmente transformar a própria ecologia num novo campo de concorrência do mercado, algo assim como quem produzirá o melhor produto, qual deles será ecologicamente melhor

Não é exatamente isso o que o Mercado de Créditos de Carbono propõe? Um site especializado explica que

as empresas poluidoras compram em bolsa ou diretamente das empresas empreendedoras as toneladas de carbono seqüestradas ou não emitidas através de um bônus chamado Certificado de Redução de Emissões (CER). Cada tonelada de carbono está cotada hoje (agosto/2006) entre $15 e $18 euros (há um ano eram $5 euros), valor que deve ir a $30 ou $40 Euros entre 2008 e 2012, quando a economia de 5,2% tornar-se obrigatória... As quantidades de toneladas de CO2 ou outros gases economizadas ou seqüestradas da atmosfera, são calculadas por empresas especializadas de acordo com determinações de órgãos técnicos da ONU. Por exemplo, uma tonelada de óleo diesel trocado por biodiesel gera o direito a 3,5 toneladas de créditos. Um hectare de floresta de eucalipto absorve por hectare, por ano, 12 toneladas de gás carbônico. Um grande aterro sanitário que capte o metano e o transforme em eletricidade, pode ter o direito a milhões de toneladas de créditos por ano


Essa é uma potencialidade do capital: transformar para sua necessidade de valorização tendências que são a priori impossíveis de ser valorizadas pelo mercado. Continuando no exemplo da ecologia, Ulrich Beck escreve sobre a incalculabilidade das conseqüências e danos sobre o meio-ambiente. Ele cita o exemplo do processo legal contra a fábrica de cristal de chumbo no município de Altenstadt na Alemanha.

Manchas de chumbo e arsênico do tamanho de uma moeda tinham caído sobre a cidade; vapores de flúor tinham manchado as folhas e corroído as janelas e desintegrando tijolos. Os residentes sofriam erupções cutâneas, náuseas e dores de cabeça. Não cabia duvidar sobre a origem de tudo aquilo. O pó branco saia desde as chaminés das fábricas. Um caso claro. Um caso claro? No décimo dia de ter encontrado o processo, o Juiz que presidia a sala ofereceu retirar os cargos em troca de uma multa de 10 000 marcos, uma solução típica aos crimes ambientais na República Federal da Alemanha (em 1996, de 21.000 casos, houve 49 condenações a pena de cárcere, 31 das quais foram suspensas. No resto foram retirados os cargos).

Como é possível encontrar parâmetros de pagamento para algo que está além de qualquer noção de troca e que com o desenvolvimento de novas tecnologias tende a ser aplicável muito além de alguma localidade específica e estar inserida em um processo global? Isso significa que é estritamente impossível resolver os problemas crescentes acerca a deterioração do meio ambiente por intermédio do mercado. O capital não tem necessidade de salvar o planeta de sua destruição e por ser um sistema que aliena dos homens o poder de intervenção livre sobre a realidade. A destruição estrutural do meio ambiente não pode ser resolvida com aplicações conjunturais de solução discutível. Mesmo que a tendência do capital de mercatilizar tudo e todos sejam aplicáveis ao meio ambiente, sua resposta não pode ser favorável as tendências atuais de destruição já que não existe possibilidade de frear o sistema de que para existir necessita se expandir mesmo que o custo disso seja a extinção da vida sobre a terra ou, em menor grau, a destruição da biodiversidade.
Com o desenvolvimento do capitalismo, as tecnologias como instrumental mediador entre homem e natureza se desenvolveram enormemente. Tornou-se visível que a tecnologia é um empreendimento com que o capital consegue se desprender de outros dispêndios para melhorar suas formas de reprodução (vale lembrar, porém, que por ser mediador essa dissociação a autonomia da tecnologia nunca pode ser total). Contra o aumento da competição cada vez mais com caráter global e dispersa no tecido internacional, a tecnologia como valor agregado torna-se um investimento seminal para a constante revolução nos modos de produzir, na construção de novas necessidades e de controle e fragmentação social pela tecnologização da vida social. Laymert Garcia dos Santos estabelece essa ligação entre as novas tecnologias, principalmente em relação à manipulação da vida, dentro do quadro das potencialidades do capital. Ele escreve que “a biotecnologia é precisamente a possibilidade de converter algo que não tinha de direito valor ambiental em algo que pode ter de fato um valor econômico. Em suma, talvez a biotecnologia não opere uma conexão entre tais valores, mas sim uma conversão de um no outro. A biotecnologia vem sendo um modo especial de destacar a biodiversidade dela mesma e transforma-la em ‘capital artificial!’” .

De forma embrionária podemos dizer então que existem alguns fatores que não são sustentavelmente mercantilizáveis, isso é, podem ser inseridas no processo de valorização do capital, porém não podem resolver de maneira nenhuma os problemas ocasionados por essa mesma dinâmica ou então trocam de valores para poderem se inserir em meio de reprodução do capital. Criam-se novas formas de matérias-primas para que o capital consiga se valorizar. O meio ambiente pode ser um fator em que o capital consiga se valorizar mas, mesmo assim, é impossível resolver os problemas que essa mesma lógica produz pois é estruturalmente inconcebível para a industria capitalista pare sua base material de produção de valor e lucro para melhorar as condições do meio ambiente pois isso acarretaria um colapso no sistema como um todo. É como dar insulina com açúcar para uma pessoa com diabetes. Tenta-se criar maneiras de curar mesmo que nisso esteja envolvido o fator principal de destruição que não pode ser removido, no caso da crise ecológica, a sua inserção no sistema do capital como fator de sua valorização.

Um exemplo similar a essa lógica de criar soluções dentro da lógica que produz determinadas condições é a política de aliviar a dívida dos países pobres e muito endividados (PPME). Para acabar com os atrasos nos pagamentos desses países, o FMI e o Banco Mundial (grandes personificações do capital) criaram mecanismos para que fossem criadas condições para a possibilidade desses pagamentos fazendo algo muito lógico: diminuir a dívida desses países. Como explicam Eric Toussaint e Damien Millet,

A iniciativa não visa propiciar o desenvolvimento dos PPMEs, mas sim tornar a sua dívida sustentável. A diferença é considerável: anula-se o que for necessário para obrigar os PEDs [países em desenvolvimento] a pagar no máximo das suas possibilidades. Anulam-se essencialmente os créditos impagáveis. A iniciativa PPME tem como principal objetivo garantir a perenidade dos reembolsos e dissimular o reforço do ajuste estrutural sob uma aparência generosa. Em 2000, quatro anos após a iniciativa, os 42 PPMEs transferiram quantias consideráveis para o Norte: a transferência líquida sobre a dívida foi negativa para eles em cerca de US$ 2,3 bilhões.

Paradoxal, hein?

II -


O capital tem a potencialidade de transformar dos padrões simbólicos em valor vazio. Valor vazio são os valores que atendem as necessidades do capital como sistema ou, em outras palavras, a subordinação do valor de troca em relação ao valor de uso. O consumo é um exemplo seminal: sobre o padrão fordista existia um ímpeto para o consumo de massa como escoamento da produção de mercadorias sob o espectro de grandes empresas com produtos homogeneizados, de longa durabilidade; sobre o padrão flexível se relativiza os modos de consumo a fim de criar formas intensivas de rotatividade de mercadorias mais heterogêneas com crescente tempo de giro fazendo com o tempo de vida se diminua cada vez mais sob uma roupagem de nova identidade. Marx ensina que o capital não é uma coisa e sim uma relação social. Relação essa que se estabelece pela dinâmica das necessidades do capital a partir do desenvolvimento de suas potencialidades.

O capital coloniza a riqueza das subjetividades para criar um ambiente social correto e sem restrições para suas lógicas de existência mesmo que entre elas estejam a destruição do meio ambiente, do próprio corpo, uma crescente polarização e exploração material e intelectual do ser social entre classes e Estados para assim construir e legitimar formas de dominação e controle. Como as potencialidades do capital são contrárias ao ser social, a crescente liberdade do capital é uma redução da liberdade do ser social. Uma das características da alienação é a falta de controle sobre as condições de existência e com o alargamento das esferas de atuação do capital o ser social perde espaço e necessita integrar-se a essa ordem mesmo que seja à custa de processos de triagem e exclusão atualmente já presentes no sistema do capital global.


III –

Aceleração existencial – não é um processo em que a formação existencial do ser social se constitui aceleradamente com as constantes inovações tecnológicas disponíveis no mercado de objetos tangíveis e simbólicos. A formação existencial não tem fim. O que ocorre é uma aceleração constante nos meios em que o ser social necessita atender suas demandas econômicas, políticas, culturais, simbólicas e imaginárias fazendo com que não consiga construir sua existência de forma complementar e sim com retalhos das diversas modas e costumes que andam no mesmo ritmo. Cria-se instabilidade e inconstância existencial assentada sobre frágeis relacionamentos humanos que tendem a andar sobre o mesmo ritmo de aceleração. O capital tem a potencialidade de crescente intervenção nos níveis de existência social. Sua lógica persegue a totalização de seus imperativos para a fragmentação do ser social de tal forma com que as demandas existenciais possam ser adquiridas sob o signo do capital em suas diversas mediações pós-modernas como os shoppings centers e os fast-foods de forma mais explícita. O capital torna-se um grande aglutinador de impossibilidades anteriores para novas possibilidades recheadas com o teor da liberdade de escolha criando lucro às custas do ser social e da sociedade como um todo.

A rede de fast-food SubWay é um ótimo exemplo em nível mais micro da sociedade. Ali se vendem sanduíches com uma cara natureba. Diversos pães e inúmeras combinações de recheios fazem com que no final da preparação pareça que a empresa foi feita apenas para atender os seus desejos mais profundos em relação a seus gostos. Você é quem determinou as possibilidades da produção de seu sanduíche, só precisa pegar seu refrigerante light (para combinar com o sentido pseudo-hippie do fast-food que proporciona comidas politicamente corretas) e pagar.

2 comentários:

Felipe disse...

Incomodou-me um pouco a terminologia potencialidade. Toda potência é - e por ser potência TEM de ser - potência também do não; e no entanto as potencialidades do capital tais como descritas me soam como necessidades do capital - sem as quais o capital deixa de ser capital. Não que não exista potência do não, mas ao contrário da dinamite que se não explodir não deixa de ser dinamite (apenas um modo defeituoso de ser, digamos irrefletidamente), o capital se não atender suas necessidades de expansão e de transformação dos padrões simbólicos deixará de ser capital. De novo, não que deixe de existir a potência do não, mas que houve um evento instaurador do capital que deu a ele tais potências como necessidade - e que nos faz acreditar serem necessidade.

Fernando Marcellino disse...

Felipe, concordo contigo sobre a ambiguidade entre potencialidade e necessidade. Mas, talvez, exatamente essa ambiguidade é que seja a criadora do espaço simbólico que naturaliza o capitalismo. Se os imperativos de 1968 foram esvaziados isso se deu por uma potencialidade do capital que, por final, se torna hoje uma necessidade social. É a ascensão desse permissivismo pós-moderno a lá Dalai Lama.