Por que a teologia está emergindo novamente como um ponto de referencia das políticas radicais? Está emergindo não para suprir o “grande Outro” divino, mas, ao contrário, para ser uma escala de liberdade radical em que o grande outro “não existe”. Sabemos que a ponta da lança tanto da psicanálise como do “marxismo” é o ateísmo, obviamente diferente daquele “Deus está morto” sobre o qual não se questiona o que realmente está em jogo, isso é, a lei.
Segundo Lacan, invertendo a clássica frase do pai Karamazov de Fyodor Dostoievsky “Deus está morto então tudo é permitido” nos diz, no seminário 17, que “a conclusão que se impõem no texto de nossa experiência é que Deus está morto tem como resposta nada mais é permitido”. A morte de Deus não nos salvou, mas, ao contrário, deixou todos culpados sobre sua morte.
Como ensina a psicanálise, a verdadeira fórmula do ateísmo não é Deus está morto e sim Deus é inconsciente. Os ateístas modernos pensam que sabem que Deus está morto; o que eles não sabem é que inconscientemente eles acreditam em Deus. O que caracteriza a modernidade não é mais a figura do crente. Hoje nós temos, ao contrário, um sujeito que se apresenta a si mesmo como um tolerante hedonista dedicado a busca da felicidade. Em outras palavras, “se Deus está morto, tudo é proibido” quer dizer que quanto mais nós nos percebemos como ateus, mais o inconsciente é dominando pelas proibições que sabotam nosso engajamento.
Mas que Deus a esquerda precisa então? Segundo Zizek, o tipo de Deus necessário a uma esquerda autêntica é um Deus que se torna homem, um camarada entre nós que não apenas “não existe”, mas também sabe disso aceitando seu apagamento passando inteiramente ao amor, blindando os membros do Espírito Santo (o partido, coletivo emancipatório, etc.). Esse amor é o amor igualitário incondicional que serve como fundação de uma nova ordem.
A forma de aparição desse amor pode ser chamada também comunismo: a urgência de criação de uma ordem social igualitária baseada na solidariedade. Amor é a “força sem força” dessa relação social universal que, num coletivo emancipatório, conecta as pessoas diretamente na sua singularidade ultrapassando suas posições particulares na hierarquia social. Foi São Paulo quem nos deu uma definição surpreendente de luta emancipatória: “nossa luta não é contra carne e sangue, mas contra líderes, contra autoridades, contra os comandantes do mundo [kosmokratoras] dessa escuridão, contra a fraqueza espiritual nos céus”. Como acentua Zizek na linguagem de hoje, “nossa luta não é contra indivíduos concretos corruptos, mas contra aqueles no pode em geral, contra sua autoridade, contra a ordem global e a mistificação ideológica que o sustenta”.
No capítulo 13 da epístola de Coríntios, Paulo escreve o seguinte sobre o amor (ágape em grego) que, erroneamente, em algumas traduções aparece como caridade:
Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse Amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. E ainda que tivesse o dom da profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse Amor, nada seria. E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tivesse Amor, nada disso me aproveitaria. O Amor é paciente, é benigno; o Amor não é invejoso, não trata com leviandade, não se ensoberbece, não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal, não folga com a injustiça, mas folga com a verdade. Tudo tolera, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O Amor nunca falha. Havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá; porque, em parte conhecemos, e em parte profetizamos; mas quando vier o que é perfeito, então o que o é em parte será aniquilado. Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino. Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; mas o maior destes é o Amor.
Assim como “o amor é um caminho que ultrapassa tudo”, o comunismo é o caminho que deve ser trilhado para ultrapassar o capitalismo.
A vida explosiva de Paulo coloca-se como referencia de uma nova figura militante no século XXI. É isso que Alain Badiou aborda em seu livro recentemente lançado no Brasil: a conexão paradoxal feita por Paulo entre um sujeito sem identidade e uma lei sem suporte, que funda a possibilidade de uma predicação universal na história. Nas palavras do filósofo francês: “Se, hoje, quero retraçar em poucas páginas a singularidade dessa conexão é porque trabalho por todos os ângulos, até com a negação de sua possibilidade, a busca de uma nova figura militante, demandada para suceder àquela cujo lugar Lênin e os bolcheviques ocuparam, no início do século passado, e que se pode dizer ter sido a do militante de partido”. Como o evento-Cristo foi basicamente a abolição da lei, a questão para Paulo era: como quebrar o ciclo vicioso entre lei e desejo, proibição e transgressão? Aqui a importância do estado de emergência paulino que suspende não apenas a Lei que regula nossa vida cotidiana, mas suspende precisamente as leis obscenas não escritas. Numa série de prescrições Paulo diz "obedeça a lei como se você não estivesse obedecendo ela". Isso quer dizer que não devemos suspender a dimensão obscena do investimento libidinal na Lei, o investimento que gera a Lei e solicita sua própria transgressão. O amor paulino não produz a suspensão da lei, mas sim seu suplemente superegóico e suas prescrições obscenas.
Em síntese diria que Paulo foi um grande institucionalizador revolucionário leninista organizando um novo partido chamado “comunidade cristã”. O desafio que temos hoje é homologo – reconstruir os instrumentos politicos necessarios para a construção de uma comunidade comunista.
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