quinta-feira, 22 de abril de 2010

Lacan e a militância

O que é militância no sentido lacaniano? Difícil resposta já que Lacan nunca se preocupou com essas questões. Será mesmo?



É bem conhecida a frase na qual Lacan diz a seus seguidores: “Vocês são lacanianos, eu sou freudiano”. Não ocorreria o mesmo em relação a Marx e Lênin ou Jesus e Paulo? O próprio Lacan para ser fiel a Freud era um militante freudiano assim como para ser fiel a Marx Lênin foi um militante marxista. Ok. Mas o que poderia se tratar a militância a partir da teoria lacaniana?



Segundo Lacan a “realidade” é regulada por ficções simbólicas que ocultam o Real de um antagonismo foracluído da ficção simbólica com regressos em formas de aparições espectrais. Como o Real não é impossível no sentido vulgar que o entende como algo inacessível e que nunca se aproxima, o meio do militante de “elucidar” o Real é via Simbólico. O real é o que fica excluído pela instituição do simbólico, mas, ao mesmo tempo, é pressuposto como a exceção que retorna para descosturar o simbólico pelo estilhaçamento do imaginário. O real é o falso pelo qual se deduz o verdadeiro, é o lugar do gozo impossível, a condição para que o corpo não despedaçado seja antecipado pelo simbólico, onde a relação sexual nos foi impossibilitada pela castração e cujo sintoma nos faz sofrer no imaginário. No caso da teoria lacaniana, deriva-se o verdadeiro do falso, o que é logicamente correto. O simbólico institui-se pela perda do real. Seu sistema permite a operação de uma totalidade negativa. Uma totalidade que nunca se dá, mas que se confronta com a particularidade do sujeito, a qual, portanto, está sempre suposta como o falso do qual a pretensão de completude se deriva.



Mas o que isso tem a ver com a figura militante? O militante, ao se identificar com a causa que a movimenta de tal forma, às vezes representa a própria causa. O efeito desses deslocamentos, entretanto, foi um buraco cavado na estrutura a fim de que naquele vazio se acomodasse um objeto suposto no desejo do Outro. Pelo que, vê-se, a estrutura não é mais consistente – apenas aparenta sê-lo. Nesse vazio estrutural, o sujeito pode acomodar-se e fazer as vezes de objeto do desejo do outro, ou pode desalojar-se e deixar cair a posse desse objeto e assumir o papel de sujeito. Assim, abre-se uma nova forma de vínculo entre o sujeito e a estrutura: a coalescência pelo vazio. O sujeito é, ele mesmo, também estruturalmente divido, já que constitucionalmente o desejo lhe vem do Outro e o gozo vem da Coisa. A própria pulsão o divide com relação ao desejo, e essa estrutura, agora denominada como “fantasia”, ficou consignada na fórmula “sujeito barrado punção de a”.



A fórmula lacaniana do fantasma $<> a (leia-se “S” barrado punção de pequeno a) liga a existência do sujeito ($) à perda da coisa (a), o que a teoria também refere como castração. Para Lacan o sujeito é vazio, ele está no real, e a sua manifestação é uma subjetividade dividida por uma cisão causada pela lógica da linguagem. O sujeito, por isso, não é nada senão uma diferença empenhada em ocupar lugares vazios. O objeto a, brevemente conceituando, é um elemento heterogêneo à linguagem, um resíduo da operação de simbolização que é irredutível ao significante e que cai como objeto perdido. Ao discurso é, então, impossível conferir uma consistência, pois todo discurso porta um fracasso, uma perda de gozo e, no lugar dessa perda, surge a função do objeto perdido: objeto a. O objeto a é o excedente que arrasta o sujeito a modificar sua existência.



Axioma 1: a figura do militante sempre oscila entre a falta e o excesso: sempre há “demasiado” e “não o suficiente”.



Faz parte da militância ocupar o lugar do objeto-causa do desejo do Outro. Ao ser fundamentalmente indiferente ao enigma do desejo do Outro, a subjetividade do militante não está organizada pelo excesso traumático do gozo. Em termos lacanianos a militância é a lacuna entre o S¹ e o objeto a, o que de encontrar o Real que desestabiliza a ordem simbólica. A militância “como tal”, no sentido que não há um modo “correto” de fazer-lo, na medida que a forma com que fazemos é sempre uma questão de aprendizagem, de regras que imitamos de outros e, assim, uma questão de tempo. O tempo de Lacan segue o mesmo modelo estrutural. Ele não é o tempo cronológico, puramente objetivo, mas o que chama de “tempo lógico”, dessubjetivado por duas escansões e subjetivado numa asserção de certeza antecipada. Esse tempo e esse espaço são, naturalmente, efeitos da estrutura, que, sendo impessoal e, portanto, não-subjetiva, dá ocasião teórica para conceituar a subjetividade, seu espaço e seu tempo.



Na lição de 19/06/1957 do seminário sobre As relações de objeto, Lacan, de fato, declara que a lógica do inconsciente não deve ser tomada como a lógica habitual, ela seria como uma “lógica de borracha”, assim como a topologia seria como uma “geometria de borracha” (1957). Nada disso quer dizer, porém, que a teoria tenha que ser conformada, também ela, por uma lógica distorcida. A teoria, como teoria do inconsciente, não é o inconsciente, é um discurso de segunda ordem e trata dele obedecendo à lógica habitual. Por isso é que fórmulas tais como “A mulher não existe”, “não há relação sexual”, “o significante representa o sujeito para outro significante” ou as “fórmulas da sexuação” que aparecem no Seminário XX, pertencem à lógica da subjetividade ou representam a estrutura segundo a qual age o sujeito. A teoria, porém, faz com que tais fórmulas sejam perfeitamente inteligíveis à luz do fundo de racionalidade sobre o qual estão constituídas.



Sobretudo na última etapa dos seus ensinamentos, isto é, na lógica do não-todo – principalmente a partir do seminário 17 a meu ver - e na ênfase colocada no real e na falta do Outro, Lacan propicia alguns ensinamentos sobre a figura militante. Como a lógica do não-todo diz que “o universal se funda pela exceção e não pelo atributo comum”, não seria essa a figura do militante?



Axioma 2 - O Militante não existe, pois o militante tem um estatuto ontológico de excrescência do Real que se desprende de nossa realidade comum. Para Lacan “existência” é sinônimo de “simbolização”, integração na ordem simbólica. Assim como A Mulher, a militância tem significantes próprios que não podem se inscrever na cadeia simbólica sendo, sem exceção, um excesso. Assim, não existe militante ideal.



Para finalizar em lacanês, o militante só existe com respeito à noção de ex-sistência. Isso quer dizer que sempre se persiste como um resto de gozo para além do sentido, resistente a simbolização. Assim concluímos que o militante emerge ao se identificar com o sinthome correlato ao atravessamento do fantasma. Assim como o amor que sempre demanda mais amor, militar demanda mais militância. Milito porque há algo nessa causa que é mais que essa causa, o objeto a pela qual nos mutilamos.

Nenhum comentário: