Primeiramente vou traduzir uma letra do Dream Theather chamada The Spirit Carries On
O Espírito Segue
Nicholas:
De onde nós viemos?
Porque estamos aqui?
Para onde nós vamos quando morremos?
O que há além
E o que havia antes?
Alguma coisa é certa na vida?
Eles dizem, “A vida é curta”
“O aqui e o agora”
E “Você só tem uma chance”
Mas poderia haver mais,
Eu vivi antes?
Ou isso seria tudo que nós temos?
Se eu morresse amanhã
Eu estaria bem
Porque eu acredito
Que após nós morrermos
Que o espírito segue
Eu costumava ter medo da morte
Eu costumava achar que a morte era o fim
Mas isso foi antes
Eu não estou mais assustado
Eu sei que minha alma transcederá
Eu posso nunca encontrar as respostas
Eu posso nunca entender porque
Eu posso nunca provar
O que eu sei ser verdade
Mas eu sei que eu ainda tenho que tentar
Se eu morresse amanhã
Eu estaria bem
Porque eu acredito
Que após nós morrermos
Que o espírito segue
Victoria:
“Siga adiante, seja bravo
Não chore no meu túmulo
Porque eu não estou mais aqui
Mas por favor nunca deixe
Suas lembranças de mim desaparecer”
Nicholas:
Seguro na luz que me rodeia
Livre do medo e da dor
Minha mente questionadora
Tem me ajudado a achar
O significado na minha vida de novo
Victoria é real
Eu finalmente sinto
Em paz com a garota nos meus sonhos
E agora que eu estou aqui
Está perfeitamente claro
Eu descobri o que tudo isso significa
Se eu morresse amanhã
Eu estaria bem
Porque eu acredito
Que após nós morrermos
Que o espírito segue
Pimeiro ponto: não podemos dizer que essa letra é extremamente hegeliana? Para aqueles que ainda não tiveram a oportunidade de conhecer o pensamento de Hegel, peço licença para fazer uma breve explicação sob a forma do meu entendimento do que Hegel entende por Espírito (Geist): sucintamente é a substância como sujeito. Seu clássico Fenomenologia do Espírito é o primeiro livro que faz um julgamento filosófico da história - talvez aqui sua importancia inicial. Hegel situa o Espírito como algo impossível de conhcer-se diretamente. É necessário que exterioze a si mesmo tornando-se "estranho a si mesmo" produzindo dessa forma todas as formas da realidade - pensamento, natureza, história. Depois disso, é necessário reverter a origem para alcancar o conhecimento verdadeiro, a filosofia do espírito absoluto. Resumindo, afastando-se de si mesmo para depois a si mesmo é a forma da Idéia triunfa sob seus limites precedentes sob a forma de negações de negações. Essa é a determinação fundamental do espírito histórico: a de se reconciliar consigo mesmo, e de reconhecer-se a si mesmo na diversidade. Numa forte síntese, diria que para Hegel a evolução não somente faz aparecer o interior originário, exterioriza o concreto contido já no em si, e este concreto chega a ser por si através dela, impulsiona-se a si mesmo a este ser por si. O concreto é em si diferente, mas logo só em si, pela aptidão, pela potência, pela possibilidade. O diferente está posto ainda em unidade, ainda não como diferente. É em si distinto e, contudo, simples. É em si mesmo contraditório ou em termos mais atuais, antagonista. Bem, acho que estou começando a viajar demais... e a angústia entra aonde? Lembremos, com Lacan, que a angústia não é o medo pela perda de determinado objeto como pensava Freud, e sim a aproximação do objeto-causa do desejo. O que isso tem a ver com o tópico? A angústia signfica exatamente a posição existencial do sujeito onde a orientação de seu desejo se desorienta em relaçao a sua identidade/diferença. Como estar diante de um desejo sem mais forma... Como indica Safatle, se a consciência for capaz de compreender a angústia que ela sentiu a ver a fragilização de seu mundo e de sua sua linguagem como primeira manifestação do Espírito, deste Espírito que só se manifesta destruindo toda determinidade fixa, então ela poderá compreender que este "caminho de desespero" é, no fundo, internalização do negativo como determinação essencial do ser. Não podemos entender a morte dessa forma transcental, portanto? Passando pela angústia da existência, a morte tem um caráter estritamente simbólico de passagem. Não uma passagem corporal para uma outra esfera incognicível, mas como criação de memória para o mundo dos vivos. É claro que o Espírito segue, quer queiramos ou não, para além de nossas espectativas. A morte é negação da vida, estremamente necessária para o Espírito.
Neste blog regurgito minhas posições sobre diferentes aspectos da realidade/fantasia social, política e econômica do mundo atual.
segunda-feira, 29 de dezembro de 2008
domingo, 28 de dezembro de 2008
Sobre amor e Heidegger
Estou postando um comentário muito interessante de meu amigo Cristiano em relação a meu post "biopolítica da vida cotidiana" e uma resposta logo após.
Como se daria esse "arrancar o ser de seu lugar"? Porque, pensando sob um viés heideggeriano, o Ser-aí é o desde já aberto ao outro Ser-aí - o estar aberto é já estar-junto-a, e já ser-com como o a priori da existência - de modo que essa relação constitui o Ser-com-o-outro próprio de todo Ser-aí. O que eu quero dizer com isso é: como há a possibilidade de um Outro arrancar, pelo amor, o Ser de seu lugar (ou o Ser do Outro de seu lugar), sendo que é propriamente esse lugar (o 'aí' do Ser-aí) que permite a inter-relação entre ambos os sujeitos que compartilham um mundo em comum? Ou você tratou esse "arrancar" sob uma ordem metafórica, como se fosse abertura ou irrupção do sujeito anteriormente fechado à relação amorosa propriamente dita, e que daí entraria na idéia de "empatia" como a "porta por meio da qual um sujeito que se encontra fechado em uma couraça passa de certo modo para o outro lado.(Heidegger)"? Mas, ainda aqui, Heidegger opta pela interpretação de Leibniz, em contraposição a esta idéia de empatia que libertaria a essência do sujeito, quando diz que "os homens não precisam de nenhuma janela [a empatia seria a janela], não porque precisem ir pra fora, mas porque já estão essencialmente fora."
Talvez o arrancar pudesse entrar num terceiro momento, se é que estamos falando da mesma coisa: num primeiro o Ser é o desde já aberto (a priori); a posteriori, o sujeito pode se fechar à manifestação de Outrem [isso é afirmado por Heidegger, mas só num momento a posteriori], mantendo-se recluso; e, por último, este mesmo Outro que clama por resposta (já que a linguagem obriga), arranca o Ser deste Outro de seu casulo fazendo irromper toda a sua plenitude inicial.
Mas aqui, parece, surgiria um novo problema: é o amor uma relação de poder? há, nesse mesmo amor como abertura, uma pseudo-relação entre sujeito-objeto onde prevalece a vontade do primeiro? Caso seja sim a resposta, isso entraria em choque com a filosofia ontológica de Heidegger e a idéia de Ser elaborada por ele. Enfim, não sei se você se baseou em Heidegger (deduzi porque o Zizek parece que trabalha com ele, não?), mas são essas algumas dúvidas que surgiram.
Caro Cristiano, fico muito feliz com seu comentário, muito complexo por sinal. Vou tentar abordar a altura tentando estabelecer ligações sob um paradoxal elogio e uma crítica às posições heideggerianas.
Primeiro ponto: se para Heidegger o Ser é a caserna do ser, quando o ser se distancia do Ser é exatamente quando ele se distancia de outros seres e vice-versa. Parece-me que o Ser-aí esta relacionado com essa dinâmica: o homem é chamado pelo próprio ser e escolhido para sua guarda. Aqui se encontraria a linguagem que seria “a casa do ser. Ao morar nela o homem existe [ek-sistiert], à medida que compartilha a verdade do ser, guardando-a. O que importa, portanto, a definição da humanidade do ser humano enquanto existência [Ek- sistenz], é que o essencial não é o ser humano, mas o ser a dimensão do extático da existência”. Sob essa formulação, podemos dizer que para Heidegger entende que a tarefa do ser humano é guardar o Ser, e corresponder ao Ser. Aqui o ser humano por ser entendido como criatura que fracassou em seu ser-animal ou em seu permanecer-animal. Sob esse fracasso é que existe a virada ontológica... O que queremos dizer com isso? Que algo que Heidegger já havia notado desde 1946 quando clamada por um humanismo, além da sua época, que pudesse dar conta da tarefa de criar condições de estabelecer uma relação positiva entre o ser humano e o Ser, algo que o processo de desenvolvimento da técnica e da própria sociedade industrial tornava cada vez mais distante. É sob esse viés que o amor deve ser entendido, uma busca por uma relação transferêncial de linguagem que aproxime os seres. Aqui a importância do discurso do analista (que é o amor em movimento lingüístico) lacaniano no sentido de fundar uma forma de intercâmbio interhumano que possibilite o trabalho com o sujeito transcendental, o sujeito dividido sob sua falta-a-ser...
Segundo ponto: parece-me que trabalhas com o segundo Heidegger enquanto pessoalmente prefiro o terceiro. Em minha opinião ali existe uma ontologia congelada: vou explicar. Em o Ser e o Tempo Heidegger opta pela não existência de uma distinção entre o indivíduo e a humanidade de qual forma que é possível a existência de um sujeito dessocializado. Seu ponto é liberal no sentido de que, ao invés de afirmar que o indivíduo é “derretido” sob o processo de alienação especificando as condições sócio-históricas do capitalismo, ele “sublima” as relações construídas historicamente e as transforma em “dimensões ontológicas” da Existência. Seguindo nosso autor “a alienação não pode significar que o Dasein esteja facticamente afastado de si mesmo. Pelo contrário, essa alienação o leva a um tipo de Ser que se aproxima da mais exagerada autodissecação tentando a se mesmo com todas as possibilidades de explicação, de modo que as “caracterologias” e “tipologias” que o Dasein provocou já que estão tornando, elas mesmas, algo que não pode ser examinado de uma vez só. Essa alienação isola o Dasein de sua autenticidade e possibilidade, mesmo que seja apenas a possibilidade genuínas de falhar” (Ser e o Tempo, p.222). Aqui podemos ver que as características da alienação da sociedade capitalista são naturalizadas por intermédio de sua ontologia que glorifica a “condição inconsciente da humanidade” como a “estrutura existencial do próprio Dasein”. Heidegger está errado nesse ponto. A ontologia humana é uma ontologia social em constante mutação – lembremos Marx aqui para quem existem sim potencialidades reais de desenvolvimento muito além da “estrutura ontológica-existencial do Dasein” que é exatamente o processo de realização do “indivíduo realmente social” que quando mais se desenvolve menor é o conflito entre indivíduo e sociedade, indivíduo e humanidade, considerando que hoje a grande contradição que permeia o Mundo é, sem dívidas, entre o indivíduo e a Totalidade. Aqui a busca por estratégias socialista de criar mediações que estejam a par dessas contradições. O sonho anarquista é acabar com as mediações. Para Marx, o caminho encontra-se por meio da automediação, mediar-se a si mesmo ao invés de ser mediado por instituições reificadas...
Como se daria esse "arrancar o ser de seu lugar"? Porque, pensando sob um viés heideggeriano, o Ser-aí é o desde já aberto ao outro Ser-aí - o estar aberto é já estar-junto-a, e já ser-com como o a priori da existência - de modo que essa relação constitui o Ser-com-o-outro próprio de todo Ser-aí. O que eu quero dizer com isso é: como há a possibilidade de um Outro arrancar, pelo amor, o Ser de seu lugar (ou o Ser do Outro de seu lugar), sendo que é propriamente esse lugar (o 'aí' do Ser-aí) que permite a inter-relação entre ambos os sujeitos que compartilham um mundo em comum? Ou você tratou esse "arrancar" sob uma ordem metafórica, como se fosse abertura ou irrupção do sujeito anteriormente fechado à relação amorosa propriamente dita, e que daí entraria na idéia de "empatia" como a "porta por meio da qual um sujeito que se encontra fechado em uma couraça passa de certo modo para o outro lado.(Heidegger)"? Mas, ainda aqui, Heidegger opta pela interpretação de Leibniz, em contraposição a esta idéia de empatia que libertaria a essência do sujeito, quando diz que "os homens não precisam de nenhuma janela [a empatia seria a janela], não porque precisem ir pra fora, mas porque já estão essencialmente fora."
Talvez o arrancar pudesse entrar num terceiro momento, se é que estamos falando da mesma coisa: num primeiro o Ser é o desde já aberto (a priori); a posteriori, o sujeito pode se fechar à manifestação de Outrem [isso é afirmado por Heidegger, mas só num momento a posteriori], mantendo-se recluso; e, por último, este mesmo Outro que clama por resposta (já que a linguagem obriga), arranca o Ser deste Outro de seu casulo fazendo irromper toda a sua plenitude inicial.
Mas aqui, parece, surgiria um novo problema: é o amor uma relação de poder? há, nesse mesmo amor como abertura, uma pseudo-relação entre sujeito-objeto onde prevalece a vontade do primeiro? Caso seja sim a resposta, isso entraria em choque com a filosofia ontológica de Heidegger e a idéia de Ser elaborada por ele. Enfim, não sei se você se baseou em Heidegger (deduzi porque o Zizek parece que trabalha com ele, não?), mas são essas algumas dúvidas que surgiram.
Caro Cristiano, fico muito feliz com seu comentário, muito complexo por sinal. Vou tentar abordar a altura tentando estabelecer ligações sob um paradoxal elogio e uma crítica às posições heideggerianas.
Primeiro ponto: se para Heidegger o Ser é a caserna do ser, quando o ser se distancia do Ser é exatamente quando ele se distancia de outros seres e vice-versa. Parece-me que o Ser-aí esta relacionado com essa dinâmica: o homem é chamado pelo próprio ser e escolhido para sua guarda. Aqui se encontraria a linguagem que seria “a casa do ser. Ao morar nela o homem existe [ek-sistiert], à medida que compartilha a verdade do ser, guardando-a. O que importa, portanto, a definição da humanidade do ser humano enquanto existência [Ek- sistenz], é que o essencial não é o ser humano, mas o ser a dimensão do extático da existência”. Sob essa formulação, podemos dizer que para Heidegger entende que a tarefa do ser humano é guardar o Ser, e corresponder ao Ser. Aqui o ser humano por ser entendido como criatura que fracassou em seu ser-animal ou em seu permanecer-animal. Sob esse fracasso é que existe a virada ontológica... O que queremos dizer com isso? Que algo que Heidegger já havia notado desde 1946 quando clamada por um humanismo, além da sua época, que pudesse dar conta da tarefa de criar condições de estabelecer uma relação positiva entre o ser humano e o Ser, algo que o processo de desenvolvimento da técnica e da própria sociedade industrial tornava cada vez mais distante. É sob esse viés que o amor deve ser entendido, uma busca por uma relação transferêncial de linguagem que aproxime os seres. Aqui a importância do discurso do analista (que é o amor em movimento lingüístico) lacaniano no sentido de fundar uma forma de intercâmbio interhumano que possibilite o trabalho com o sujeito transcendental, o sujeito dividido sob sua falta-a-ser...
Segundo ponto: parece-me que trabalhas com o segundo Heidegger enquanto pessoalmente prefiro o terceiro. Em minha opinião ali existe uma ontologia congelada: vou explicar. Em o Ser e o Tempo Heidegger opta pela não existência de uma distinção entre o indivíduo e a humanidade de qual forma que é possível a existência de um sujeito dessocializado. Seu ponto é liberal no sentido de que, ao invés de afirmar que o indivíduo é “derretido” sob o processo de alienação especificando as condições sócio-históricas do capitalismo, ele “sublima” as relações construídas historicamente e as transforma em “dimensões ontológicas” da Existência. Seguindo nosso autor “a alienação não pode significar que o Dasein esteja facticamente afastado de si mesmo. Pelo contrário, essa alienação o leva a um tipo de Ser que se aproxima da mais exagerada autodissecação tentando a se mesmo com todas as possibilidades de explicação, de modo que as “caracterologias” e “tipologias” que o Dasein provocou já que estão tornando, elas mesmas, algo que não pode ser examinado de uma vez só. Essa alienação isola o Dasein de sua autenticidade e possibilidade, mesmo que seja apenas a possibilidade genuínas de falhar” (Ser e o Tempo, p.222). Aqui podemos ver que as características da alienação da sociedade capitalista são naturalizadas por intermédio de sua ontologia que glorifica a “condição inconsciente da humanidade” como a “estrutura existencial do próprio Dasein”. Heidegger está errado nesse ponto. A ontologia humana é uma ontologia social em constante mutação – lembremos Marx aqui para quem existem sim potencialidades reais de desenvolvimento muito além da “estrutura ontológica-existencial do Dasein” que é exatamente o processo de realização do “indivíduo realmente social” que quando mais se desenvolve menor é o conflito entre indivíduo e sociedade, indivíduo e humanidade, considerando que hoje a grande contradição que permeia o Mundo é, sem dívidas, entre o indivíduo e a Totalidade. Aqui a busca por estratégias socialista de criar mediações que estejam a par dessas contradições. O sonho anarquista é acabar com as mediações. Para Marx, o caminho encontra-se por meio da automediação, mediar-se a si mesmo ao invés de ser mediado por instituições reificadas...
sábado, 27 de dezembro de 2008
A História, por Walmor Marcellino
Tem homem que quer saber
história de outro Homem
Não ouve quando lhe dizem
que Homem é feito de homem
Não ouve nem quer saber
que homem nenhum está só
não faz nem fez história.
Máximo que fez é ter
dum escriba a memória.
História que se escreve
todo dia em qauqluer parte
contém o triste fermento
de cair no esquecimento:
assim se cante de novo
toda história do povo
contra qualquer resistência
Mesmo sendo uma história
que começa só num homem
agarra força e expande
no homem que tem do homem
e todos vemos o mistério
de nossa face no espelho.
Mesmo sendo um episódio
de sangue terra e saque
ele se esende e alcança
em nós o saqueado.
Em nós ampla revolta
cresce levanta e explode
contra todas as bestas.
Esta história que contamos
tem terra esperança e gente.
Terra de lavrar úmida
de intercalar sob as unhas
terra que todos temos
de trsitezas e sonhos.
Uma só mão
rostos variados
vai construindo a vida
com a mesma persistência
ante qualquer resistência.
Com amor e trabalho florece a vida
Sem pedra feijão e sal
não há coisa acontecida.
Com pedra areia e cal
feijão arroz e sal
e trigo no seu moinho
é que o homem faz o mundo
Com pedra trigo e sal
é que o homem faz o mundo
Com pedra trigo e sal
e a justa mira da arma
é que o homem faz a história.
história de outro Homem
Não ouve quando lhe dizem
que Homem é feito de homem
Não ouve nem quer saber
que homem nenhum está só
não faz nem fez história.
Máximo que fez é ter
dum escriba a memória.
História que se escreve
todo dia em qauqluer parte
contém o triste fermento
de cair no esquecimento:
assim se cante de novo
toda história do povo
contra qualquer resistência
Mesmo sendo uma história
que começa só num homem
agarra força e expande
no homem que tem do homem
e todos vemos o mistério
de nossa face no espelho.
Mesmo sendo um episódio
de sangue terra e saque
ele se esende e alcança
em nós o saqueado.
Em nós ampla revolta
cresce levanta e explode
contra todas as bestas.
Esta história que contamos
tem terra esperança e gente.
Terra de lavrar úmida
de intercalar sob as unhas
terra que todos temos
de trsitezas e sonhos.
Uma só mão
rostos variados
vai construindo a vida
com a mesma persistência
ante qualquer resistência.
Com amor e trabalho florece a vida
Sem pedra feijão e sal
não há coisa acontecida.
Com pedra areia e cal
feijão arroz e sal
e trigo no seu moinho
é que o homem faz o mundo
Com pedra trigo e sal
é que o homem faz o mundo
Com pedra trigo e sal
e a justa mira da arma
é que o homem faz a história.
quinta-feira, 25 de dezembro de 2008
A biopolítica da vida cotidiana
Esse post é uma tentativa de aprofundar algumas questões sobre a biopolítica. Todas essas reflexões tem dívidas que espero que um dia sejam pagas. Agradeço profundamente todos que tem a disponiabilidade de ler esses textos que estão sendo produzidos sob traumáticas perguntas ao Real que causam, com certeza, alguma instabilidade filosófica. Usei aqui, para conseguir melhor expressar os últimos desenvolvimentos filosóficos de ontem, uma conceitualização mais precisa mas, exatamente nesse ponto, que pode possibilitar reflexão mais profunda mas mais inacessível. Resolvi sintetizar o texto e aconcelho a ler com calma.
A biopolítica não é exatamente a redução do sujeito barrado a vida nua, a pura imanência? Ou ainda, a impossibilidade do sujeito se relacionar com o Significante-Mestre não se relaciona com a “crise de investidura” (Eric Santner) onde a identificação existe uma perda da eficácia do sujeito assumir seu mandado simbólico? Nesse sentido, não seria esse exatamente o discurso da Universidade e sua posição “neutra” em relação ao conhecimento dominante hoje? A expansão dos Homo Sacer (Giorgio Agamben) pelo mundo hoje não é legitimado exatamente pelo discurso da Universidade ou, em termos mais precisos, o Homo Sacer não é o sujeito do discurso da universidade? Não seria nesse processo que a interpassividade pode reinar transferindo ao Outro nossa passividade? É aqui, e não em outro lugar, que deve ser colocada a questão da crescente ineficácia do amor hoje, a liquefação dos laços sociais: se amor é violência, pois revoluciona as coordenadas simbólicas desestruturando a realidade entre o sujeito e o objeto pequeno a (fantasia), sob essa crise de investidura que tem como necessidade estrutural a tentativa de legitimar a biopolítica do Homo Sacer hoje sob o discurso da universidade, o fardo da transferência amorosa é renegada. O amor, assim com a revolução autêntica, detém sua violência legitimada por si mesmo, sem precisar da aprovação do Outro. O amor arranca o ser de seu lugar. Portanto, como amar em não-lugares?
A biopolítica não é exatamente a redução do sujeito barrado a vida nua, a pura imanência? Ou ainda, a impossibilidade do sujeito se relacionar com o Significante-Mestre não se relaciona com a “crise de investidura” (Eric Santner) onde a identificação existe uma perda da eficácia do sujeito assumir seu mandado simbólico? Nesse sentido, não seria esse exatamente o discurso da Universidade e sua posição “neutra” em relação ao conhecimento dominante hoje? A expansão dos Homo Sacer (Giorgio Agamben) pelo mundo hoje não é legitimado exatamente pelo discurso da Universidade ou, em termos mais precisos, o Homo Sacer não é o sujeito do discurso da universidade? Não seria nesse processo que a interpassividade pode reinar transferindo ao Outro nossa passividade? É aqui, e não em outro lugar, que deve ser colocada a questão da crescente ineficácia do amor hoje, a liquefação dos laços sociais: se amor é violência, pois revoluciona as coordenadas simbólicas desestruturando a realidade entre o sujeito e o objeto pequeno a (fantasia), sob essa crise de investidura que tem como necessidade estrutural a tentativa de legitimar a biopolítica do Homo Sacer hoje sob o discurso da universidade, o fardo da transferência amorosa é renegada. O amor, assim com a revolução autêntica, detém sua violência legitimada por si mesmo, sem precisar da aprovação do Outro. O amor arranca o ser de seu lugar. Portanto, como amar em não-lugares?
Zizek
Aqui está a palestra proferida por Slajov Zizek para o Google. Assim como arroz marroquino, imperdível. Só clicar na palavra Zizek!
quinta-feira, 18 de dezembro de 2008
3 Teses sobre o Mundo
Esse texto se deve em parte por discussões com meu amigo filósofo Chrysantho ( www.oeventuario.blogspot.com ), mesmo desconhecendo suas críticas e aprovações em relação ao o que está escrito aqui.
I -A inconsistência do mundo se mostra pela lógica da fantasia. O plano da fantasia que estrutura a realidade do sujeito barrado funciona em relação ao Real – nesse sentido o 0 é o Real para o 1 imaginário e o 2 simbólico. Lacan enfatiza que “O Real suporta a fantasia, e a fantasia protege o Real” (Seminário 11, p. 47). Para a psicanálise lacaniana, a fantasia tem origem na falta de um relacionamento positivo entre o objeto pequeno a (causa-objeto do desejo) de nosso âmago e sua correspondência imediata na realidade fazendo com que se crie uma fantasia onde os desejos sejam realizados e, assim, a tensão seja descarregada. A fantasia é a encenação dada satisfação de um desejo imperioso que não pode ser saciado na realidade por uma impossibilidade tendo como função substituir uma satisfação real impossível por uma satisfação fantasiada possível. Dessa forma, o desejo é então parcialmente saciado sob a forma de uma fantasia criada em sua imaginação. Esse caráter inconsistente da estruturação do sujeito é correlato a estruturação do mundo.
Quando o desejo é reprimido por alguma barreira, existem duas formas de defesa do eu: o recalcamento ou a fantasia. O que ambas levam como resultado é um processo de não saciar a constante inconstante do desejo. Considerando que a transição ao modo de produção capitalista trouxe um recalque das relações de dominação e exploração já que, formalmente, parece que todos os sujeitos são livres, o que restou foram formas de fantasia para sustentar os imperativos existenciais do capital de constante expansão da experiência mercadológica na vida social dando o norte do conteúdo das relações sociais e criando nelas um fetiche primordial onde a mercadoria se torna uma escapatória do sujeito diante da sua falta a ser constituinte derivada de um trauma, de um antagonismo. Essas fantasias que se transformam historicamente pela necessidade de legitimação/ordenamento. Essa a ideologia que estrutura a realidade social, mesmo que muitos queiram denominar os tempos atuais como tempos “pós-ideológicos”.
II - Se, como entende Alain Badiou, o século XX foi baseado numa Paixão pelo Real entre a subtração (isolamento das diferenças mínimas que torna possível a emergência de sintomas que existem na ordem da realidade) e a purificação (desacordos violentos em defesa de falsas realidades), não podemos fechar sua análise a partir do triangulo lacaniano? Se entendermos o Imaginário como a subtração e o Real como a purificação violenta, o Simbólico não estaria na formalização non-sense da realidade? Ou ainda, isso não nos mostra que o Evento está inexoravelmente dentro da ordem do Ser? Nesse sentido, a política radical hoje deve ser uma política do amor por necessariamente imaginar o simbólico do Real. Arrisco dizer que temos como entender o que vou denominar de Real do Mundo pelo uso lógico da natureza do sinthoma apreendendo sua ex-sistência: o Real do mundo é potencial destrutivo que o desenvolvimento industrial-bélico construiu historicamente sob o antagonismo estrutural do capital. É nesse sentido que deve ser entendido o imperativo “socialismo ou extinção” de István Mészáros. O Real hoje é a extinção humana, pois é o impossível que devemos imaginar hoje em relação aos limites do processo de simbolização e desenvolvimento da sociedade capitalista global. Daquilo que se anuncia no simbólico como impossível é que surge o Real.
Devemos nos escandalizar com essa verdade. Se não nos escandalizamos é porque o que sustenta a reprodução dessa tríade global (trabalho – capital – Estado) é o Nome-do-Pai (o significante-mestre) da ideologia liberal tolerante multiculturalista democrática que sustenta a estrutura do desejo com a da Lei.
III - O Evento não pode ser reduzido a uma ordem positiva do Ser que transcende suas causas positivas. Aqui o Evento deve ser entendido como uma quebra radical na ordem do Ser, mesmo que seja interna a sua lógica já que deve estar localizada exatamente na mínima diferença. O Ser nasce no nível da causa do desejo. Aqui colocar-se a ética da psicanálise da qual é descentralizada em relação ao Sentido, pois no discurso do analista o agente pequeno a trabalha com o sujeito barrado a produção de significantes-mestres em busca do saber impossível. Como podemos entender isso em termos de uma política radical hoje? Parece-me que temos apenas uma opção válida hoje: ir além do Real - por uma política do semblante.
I -A inconsistência do mundo se mostra pela lógica da fantasia. O plano da fantasia que estrutura a realidade do sujeito barrado funciona em relação ao Real – nesse sentido o 0 é o Real para o 1 imaginário e o 2 simbólico. Lacan enfatiza que “O Real suporta a fantasia, e a fantasia protege o Real” (Seminário 11, p. 47). Para a psicanálise lacaniana, a fantasia tem origem na falta de um relacionamento positivo entre o objeto pequeno a (causa-objeto do desejo) de nosso âmago e sua correspondência imediata na realidade fazendo com que se crie uma fantasia onde os desejos sejam realizados e, assim, a tensão seja descarregada. A fantasia é a encenação dada satisfação de um desejo imperioso que não pode ser saciado na realidade por uma impossibilidade tendo como função substituir uma satisfação real impossível por uma satisfação fantasiada possível. Dessa forma, o desejo é então parcialmente saciado sob a forma de uma fantasia criada em sua imaginação. Esse caráter inconsistente da estruturação do sujeito é correlato a estruturação do mundo.
Quando o desejo é reprimido por alguma barreira, existem duas formas de defesa do eu: o recalcamento ou a fantasia. O que ambas levam como resultado é um processo de não saciar a constante inconstante do desejo. Considerando que a transição ao modo de produção capitalista trouxe um recalque das relações de dominação e exploração já que, formalmente, parece que todos os sujeitos são livres, o que restou foram formas de fantasia para sustentar os imperativos existenciais do capital de constante expansão da experiência mercadológica na vida social dando o norte do conteúdo das relações sociais e criando nelas um fetiche primordial onde a mercadoria se torna uma escapatória do sujeito diante da sua falta a ser constituinte derivada de um trauma, de um antagonismo. Essas fantasias que se transformam historicamente pela necessidade de legitimação/ordenamento. Essa a ideologia que estrutura a realidade social, mesmo que muitos queiram denominar os tempos atuais como tempos “pós-ideológicos”.
II - Se, como entende Alain Badiou, o século XX foi baseado numa Paixão pelo Real entre a subtração (isolamento das diferenças mínimas que torna possível a emergência de sintomas que existem na ordem da realidade) e a purificação (desacordos violentos em defesa de falsas realidades), não podemos fechar sua análise a partir do triangulo lacaniano? Se entendermos o Imaginário como a subtração e o Real como a purificação violenta, o Simbólico não estaria na formalização non-sense da realidade? Ou ainda, isso não nos mostra que o Evento está inexoravelmente dentro da ordem do Ser? Nesse sentido, a política radical hoje deve ser uma política do amor por necessariamente imaginar o simbólico do Real. Arrisco dizer que temos como entender o que vou denominar de Real do Mundo pelo uso lógico da natureza do sinthoma apreendendo sua ex-sistência: o Real do mundo é potencial destrutivo que o desenvolvimento industrial-bélico construiu historicamente sob o antagonismo estrutural do capital. É nesse sentido que deve ser entendido o imperativo “socialismo ou extinção” de István Mészáros. O Real hoje é a extinção humana, pois é o impossível que devemos imaginar hoje em relação aos limites do processo de simbolização e desenvolvimento da sociedade capitalista global. Daquilo que se anuncia no simbólico como impossível é que surge o Real.
Devemos nos escandalizar com essa verdade. Se não nos escandalizamos é porque o que sustenta a reprodução dessa tríade global (trabalho – capital – Estado) é o Nome-do-Pai (o significante-mestre) da ideologia liberal tolerante multiculturalista democrática que sustenta a estrutura do desejo com a da Lei.
III - O Evento não pode ser reduzido a uma ordem positiva do Ser que transcende suas causas positivas. Aqui o Evento deve ser entendido como uma quebra radical na ordem do Ser, mesmo que seja interna a sua lógica já que deve estar localizada exatamente na mínima diferença. O Ser nasce no nível da causa do desejo. Aqui colocar-se a ética da psicanálise da qual é descentralizada em relação ao Sentido, pois no discurso do analista o agente pequeno a trabalha com o sujeito barrado a produção de significantes-mestres em busca do saber impossível. Como podemos entender isso em termos de uma política radical hoje? Parece-me que temos apenas uma opção válida hoje: ir além do Real - por uma política do semblante.
sexta-feira, 12 de dezembro de 2008
Elogio a revolta contra o pacote de ajuda as montadoras
"A Casa Branca anunciou nesta sexta-feira que está considerando a possibilidade de usar parte dos fundos do plano de resgate financeiro, de US$ 700 bilhões, para impedir a quebra dos fabricantes de automóveis em crise, depois que os congressistas não conseguiram acordo para um projeto alternativo". O governo de São Paulo também anunciou uma linha de crédito de R$ 1,2 bilhão para financiar empresas de máquinas e autopeças. Os golpes cleptocratas continuam...
O setor de produção automobilística é um dos grandes motores da reprodução do capital historicamente desde o início do século XX. Apenas a necessidade objetiva e estrutural de uso dos fundos públicos para o salvamento das gigantes General Motors, Ford e Chrysler já não é sintomático em relação aos novos padrões que estão se estabelecendo sob a hibridização do Estado com o capital diante de sua crise estrutural hoje? Se de 1945 a 1968 foram os anos glorisos do capitalismo, a fase que iniciou em meados de 1970 e se fecha em 2008/2009 demonstra os limites historicos do capitalismo que, inevitavelmente por sua lógica de expansão e acumulação, buscará novas saídas de reprodução ALÉM do capital financeiro e do neoliberalismo, dominantes sob a etapa de desenvovimento durante os últimos 40 anos. Uma volta é impossível. Usando do reducionismo, não existe volta das forças produtivas. Qual será a nova tentativa de buscar novos nichos de reprodução? Ou ainda, mais importante, as rebeliões do devir conseguiram dar respostas satisfatórias rumo a superação radical do metabolismo global do capital diante da atual crise que mostrase apenas nas primeiras etapas? Arrisco até dizer que estão voltando os fantasmas das rebeliões e das revoluções diante da crescente intensidade da violência objetiva que (des)estrutura a realidade global hoje.
O setor de produção automobilística é um dos grandes motores da reprodução do capital historicamente desde o início do século XX. Apenas a necessidade objetiva e estrutural de uso dos fundos públicos para o salvamento das gigantes General Motors, Ford e Chrysler já não é sintomático em relação aos novos padrões que estão se estabelecendo sob a hibridização do Estado com o capital diante de sua crise estrutural hoje? Se de 1945 a 1968 foram os anos glorisos do capitalismo, a fase que iniciou em meados de 1970 e se fecha em 2008/2009 demonstra os limites historicos do capitalismo que, inevitavelmente por sua lógica de expansão e acumulação, buscará novas saídas de reprodução ALÉM do capital financeiro e do neoliberalismo, dominantes sob a etapa de desenvovimento durante os últimos 40 anos. Uma volta é impossível. Usando do reducionismo, não existe volta das forças produtivas. Qual será a nova tentativa de buscar novos nichos de reprodução? Ou ainda, mais importante, as rebeliões do devir conseguiram dar respostas satisfatórias rumo a superação radical do metabolismo global do capital diante da atual crise que mostrase apenas nas primeiras etapas? Arrisco até dizer que estão voltando os fantasmas das rebeliões e das revoluções diante da crescente intensidade da violência objetiva que (des)estrutura a realidade global hoje.
quarta-feira, 3 de dezembro de 2008
Entrevista com Giorgio Agamben
A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é, na verdade, regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade." Esta afirmação programática de Walter Benjamin resume bem o que anima o projeto intelectual de Giorgio Agamben nos últimos anos.
Responsável pela edição italiana das obras completas de Benjamin, ex-aluno de Heidegger, autor, juntamente com Deleuze, de trabalhos sobre teoria literária e filosofia, este professor da Universidade de Verona, nascido em 1942, é atualmente um dos filósofos mais importantes de sua geração.
Uma das razões para tanto é, para além da multiplicidade de seus objetos de interesse, sua capacidade em fornecer um quadro de análises para a situação sócio-jurídica que marca a política contemporânea.
Partindo das vias abertas por Michel Foucault [1926-1984] por meio das análises dos mecanismos de normatização da vida na sociedade contemporânea, Agamben vem desenvolvendo um amplo estudo sobre os desdobramentos dos dispositivos do poder em vários livros que compõem a série "Homo Sacer".
No cerne de tal projeto está a compreensão da centralidade do estado de exceção enquanto paradigma de funcionamento das estruturas jurídicas que procuram normatizar o campo da política e da ação social. Que o espectro da "suspensão legal" da lei, que este reconhecimento da lei que pode conviver com sua própria suspensão seja o "motor imóvel" das democracias contemporâneas: eis algo que Benjamin indicara, mas que Agamben soube explorar como ninguém antes dele.
Contribuiu para isso o estado atual do mundo, onde os governos são cada vez mais marcados pela lógica da segurança e da guerra infinita. O mesmo curso que levou Agamben a recusar-se a lecionar nos EUA a fim de protestar contra a política de segurança norte-americana.
Para ele, os Estados contemporâneos -especialmente os EUA-, mais do que garantidores e administradores da ordem, são máquinas de produção e gestão da desordem -que permitem intervenções que lhes dão legitimidade e poder. Agamben compara o mecanismo ao princípio teológico da Providência -segundo ele, a teoria do "governo divino" do mundo.
"O que define a ação providencial é que, na verdade, ela não se impõe do exterior, mas funciona deixando agir a natureza mesma das criaturas que, desta forma, continuam responsáveis pelos seus pecados", ele afirma.
Mas ao analisar o problema do estado de exceção, o filósofo italiano não procura apenas dar conta de uma situação jurídico-política que parece se impor como regra cada vez mais universal para as sociedades contemporâneas. O que ele tem em mente é, na verdade, a crítica a uma tendência hegemônica na modernidade em vincular razão e norma, racionalidade e normatização da vida. Com isto, abre-se um amplo quadro de questões vinculadas à reorientação das expectativas da razão moderna e de seus modos de racionalização. É neste quadro que Giorgio Agamben se move. No Brasil já foi traduzida uma grande parte de obra que envolve Estâncias onde decorre sobre a cultura ocidental e poesia a partir de Marx, Baudelaire, Freud etc; Infância e História onde o autor tenta criar uma conceitualização de sujeito transcendetal a partir das contribuições da filosofia da linguagem no século XX apontando a ligação direta entre infancia, história, verdade e linguagem (ainda não terminei esse livro); Homo Sacer onde começa a delinear seu último projeto de entender a morfologia do poder e da violência hoje; Estado de exceção que desenvolve e aprofunda as linhas já escritas em Homo Sacer; Linguagem e morte que não li; O que resta de Auschwitz que busca narrar o inarrável da Shoah a partir do inumano, o "muçulmano"; e profanações onde busca, a partir de 10 breves ensaios, fazer indagações sobre a filosofia contemporânea a partir do sagrado, do profano, dos processos de subjetivação e desubjetivação etc. Por ser um dos norteadores do pensamento hoje, tudo isso já diz por si só o tamanho da importância do pensamento desse italisno. Aqui será postado uma entrevista dele com Vladimir Safatle:
Safatle - O senhor possui atualmente um vasto campo de trabalho no interior do qual se cruzam estética, teoria da literatura, filosofia política, psicanálise, história e filosofia do direito. O senhor é também o responsável pela edição italiana da obra de Walter Benjamin. Há questões comuns que orientam sua incursão nestes múltiplos campos de interesse?
Giorgio Agamben - A lógica que guia minha pesquisa não é a lógica da substância e do território separado com fronteiras bem definidas. Ela está mais próxima do que, na ciência física, chamamos de um "campo", onde todo ponto pode a um certo momento carregar-se de uma tensão elétrica e de uma intensidade determinada. Filosofia, política, filologia, literatura, teologia, direito não representam disciplinas e territórios separados, mas são apenas nomes que damos a esta intensidade.
A configuração do que você chama de meus "múltiplos campos de interesse" depende pois da contingência capaz de determinar uma tensão na situação histórica concreta em que me encontro. De resto, trata-se do que, há um tempo atrás, era o mínimo esperado de uma pessoa culta -este a quem Nietzsche chamava "um bom europeu".
Não devemos esquecer, por exemplo, que é impossível haver filosofia sem filologia, da mesma forma como é impossível teoria sem história. Para mim, assim como para Foucault, a investigação histórica do passado é apenas a sombra da interrogação histórica sobre o presente. E atualmente, mais do que nunca, a arqueologia é a única via de acesso ao presente.
Safatle - Qual é a trajetória de pesquisa que o levou a identificar, no estado de exceção, o fenômeno jurídico maior na compreensão da normatização da vida contemporânea?
Agamben - Primeiramente, gostaria de lembrar que, atualmente, o direito é, de fato, um dos meus principais canteiros de trabalho. O outro é a teologia. Qual a razão desta escolha? Eu poderia responder -e isto não seria necessariamente uma brincadeira- que o direito e a teologia são os dois únicos domínios nos quais Foucault não trabalhou realmente, o que me dava uma certa liberdade.
Mas a verdade é que não é possível atualmente pensar a política e sua história sem se engajar em pesquisas arqueológicas que articulam o direito e a teologia. Não digo isto por acreditar em alguma espécie de primado destas disciplinas. O fato é que no interior dos mecanismos e relações de poder, conceitos jurídicos e teológicos continuam a agir de maneira mais ou menos consciente, e são seus funcionamentos e efeitos que me interessam.
Creio que Foucault tinha razão ao dizer que queria deixar de lado os ditos "universais" (o Estado, a Lei, a Soberania, o Poder), a fim de analisar o processo concreto e os dispositivos que realizam as relações de poder. Desta forma, ao trabalhar sobre o estado de exceção, não se tratava para mim de responder a questões como: "O que é o direito?", "o que é o Estado?", mas de procurar compreender o modo por meio do qual a máquina político-jurídica funciona.
Ou seja, não parto de questões como: "O que é e o que não é legal?", ou mesmo "o que é e o que não é justo?", mas "como se realiza a relação entre violência e direito?", "como é possível desativar tal relação?". Descobrir que o estado de exceção era, por assim dizer, o motor imóvel da máquina jurídica ocidental foi para mim muito instrutivo.
Safatle - O senhor diz, em "Estado de Exceção", que devemos pensar a política para além do jurídico. Mas, se em nossas sociedades democráticas, como o senhor afirma, o estado de exceção é a regra, isto significaria que não há mais espaço político no interior do sistema parlamentar de representação? E, se devemos pensar a política para além do jurídico, devemos então abandonar a aspiração moderna de constituição de um Estado Justo?
Agamben - Veja, sua pergunta sobre qual seria a constituição de um Estado Justo me parece abstrata e, como tal, realmente não me interessa. Não se trata mais, como era ainda legítimo na época de Rousseau, de escrever a Constituição da Polônia ou da Córsega. Deixo esta questão para os juristas criminais que acreditam poder escrever a Constituição democrática do Iraque. Ou aos tecnocratas ingênuos que acreditaram poder escrever a Constituição européia sem se perguntar se havia, em algum lugar, um poder constituinte que os autorizava. Pois é a própria relação entre política e direito que deve ser questionada. Problema este que a tradição marxista sempre negligenciou por acreditar que o direito, em última instância, era um instrumento neutro do qual poderíamos nos servir sem problemas.
De fato, nossa concepção de democracia ainda está muito dominada pelo paradigma do Estado de Direito, ou seja, pela idéia de que podemos estabelecer um quadro constitucional e normativo a partir do qual uma sociedade justa advém possível. Mas minhas pesquisas me mostraram que o problema fundamental não diz respeito à Constituição ou à lei; diz respeito ao governo.
Rousseau ainda acreditava ser capaz de liquidar o problema do governo ao vê-lo como poder executivo, como potência que "executa" o que a vontade geral estabeleceu. Trata-se de uma ingenuidade imperdoável. O verdadeiro ponto misterioso da política ocidental não é o Estado, não é a Constituição, não é a soberania, mas o governo. Não o soberano, mas o ministro. Não o legislador, mas o funcionário.
A pesquisa na qual estou atualmente engajado diz respeito exatamente à tentativa de compreender o modo por meio do qual a máquina governamental ocidental funciona. Trata-se de olhar a política e o direito a partir de uma nova perspectiva na qual as hierarquias se invertem e o poder considerado executivo -a "polícia", no sentido lato- advém o problema central. Mas, mesmo aqui, não faço mais do que alargar o trabalho de Michel Foucault.
Safatle - O sr. diz ainda que a declaração clara do estado de exceção está sendo substituída paulatinamente pela generalização do paradigma de segurança como técnica normal de governo. Os EUA seriam, no seu ponto de vista, um caso exemplar?
Agamben - Em um de seus cursos no Collèqe de France, Michel Foucault mostrou como funciona a segurança enquanto paradigma de governo. Para Quesnay, Turgot e os ministros fisiocratas, que nesta matéria foram os primeiros, não se tratava, por exemplo, de prevenir as grandes penúrias, mas de deixá-las ocorrer para, em seguida, dirigi-las e orientar os modos de atravessá-las. A segurança como paradigma de governo não nasce para instaurar a ordem, mas para governar a desordem. É neste sentido que a segurança, juntamente com o estado de exceção, é o paradigma fundamental da política mundial. Como disse um funcionário da política italiana durante as investigações judiciárias que se seguiram às mortes na manifestação antiglobalização em Gênova: "O Estado não quer que imponhamos a ordem, mas que administremos a desordem".
Parece-me evidente que este é o princípio que guia, particularmente, a política exterior norte-americana, mas não apenas ela. Trata-se de criar zonas de desordem permanente ("zones of turmoil", como dizem os estrategistas) que permitem intervenções constantes orientadas na direção que se julgar útil. Ou seja, os Estados Unidos são hoje uma gigantesca máquina de produção e gestão da desordem.
É curioso como tudo isto se encontra em um dos paradigmas teológicos que tenho trabalhado: este que diz respeito à doutrina da Providência. Os conceitos de ordem e segurança foram elaborados como paradigmas de governo, pela primeira vez, no interior desta doutrina. Não devemos esquecer que a Providência ocupou a mente de filósofos e teólogos por quase 15 séculos, dos Estóicos até São Tomás, de Plutarco a Leibniz, de Boécio aos fisiocratas. A teoria da Providência não é outra coisa que a teoria do governo divino do mundo, ou seja, do melhor governo possível.
Por isto, a Providência não opera de modo violento ou miraculoso, mas, tal como nos governos democráticos, ela precisa do livre-arbítrio dos indivíduos. O que define a ação providencial é que, na verdade, ela não se impõe do exterior, mas funciona deixando agir a natureza mesma das criaturas que, desta forma, continuam responsáveis pelos seus pecados. A Providência é, neste sentido, um paradigma da democracia moderna e não é surpreendente que ela tenha influenciado profundamente um pensador como Rousseau. O Estado moderno, no que ele tem de melhor quanto de pior, provém deste Estado-Providência.
Safatle - O senhor fala, ao final de "Estado de Exceção", a respeito da necessidade de abrirmos espaço a uma "violência pura" capaz de expor e de cortar o vínculo entre violência e direito. Esta idéia de "violência pura" é algo como uma idéia reguladora ou o senhor tem em mente situações revolucionárias concretas que teriam o valor de paradigma?
Agamben - É importante precisar o que devemos entender por "pura" quando se fala de violência. Não se trata, em absoluto, de um caráter ou de uma propriedade substancial próprio a certos tipos de atos violentos, isto em detrimento de outros. Como Benjamin disse muito claramente, a pureza de um ser ou de uma coisa nunca reside neste próprio ser, nunca está na origem, mas depende da relação entre este ser e algo de externo. No nosso caso, trata-se do direito.
Benjamin definia como "pura" esta violência que quebra a relação entre violência e direito. Não se trata aqui de uma "violência criadora" (como é o caso, por exemplo, do poder constituinte que cria um novo direito), mas de uma violência que interrompe e depõe o direito. Por outro lado, não se trata de uma idéia reguladora.
O que está realmente em questão é, na verdade, a possibilidade de uma ação humana que se situe fora de toda relação com o direito, ação que não ponha, que não execute ou que não transgrida simplesmente o direito. Trata-se do que os franciscanos tinham em mente quando, em sua luta contra a hierarquia eclesiástica, reivindicavam a possibilidade de um uso de coisas que nunca advém direito, que nunca advém propriedade.
E talvez "política" seja o nome desta dimensão que se abre a partir de tal perspectiva, o nome de livre uso do mundo. Mas tal uso não é algo como uma condição natural originária que se trata de restaurar. Ela está mais perto de algo de novo, algo que é resultado de um corpo-a-corpo com os dispositivos do poder que procuram subjetivar, no direito, as ações humanas.
Por isto, tenho trabalhado recentemente sobre o conceito de "profanação" que, no direito romano, indicava o ato por meio do qual o que havia sido separado na esfera da religião e do sagrado voltava a ser restituído ao livre uso do homem.
Responsável pela edição italiana das obras completas de Benjamin, ex-aluno de Heidegger, autor, juntamente com Deleuze, de trabalhos sobre teoria literária e filosofia, este professor da Universidade de Verona, nascido em 1942, é atualmente um dos filósofos mais importantes de sua geração.
Uma das razões para tanto é, para além da multiplicidade de seus objetos de interesse, sua capacidade em fornecer um quadro de análises para a situação sócio-jurídica que marca a política contemporânea.
Partindo das vias abertas por Michel Foucault [1926-1984] por meio das análises dos mecanismos de normatização da vida na sociedade contemporânea, Agamben vem desenvolvendo um amplo estudo sobre os desdobramentos dos dispositivos do poder em vários livros que compõem a série "Homo Sacer".
No cerne de tal projeto está a compreensão da centralidade do estado de exceção enquanto paradigma de funcionamento das estruturas jurídicas que procuram normatizar o campo da política e da ação social. Que o espectro da "suspensão legal" da lei, que este reconhecimento da lei que pode conviver com sua própria suspensão seja o "motor imóvel" das democracias contemporâneas: eis algo que Benjamin indicara, mas que Agamben soube explorar como ninguém antes dele.
Contribuiu para isso o estado atual do mundo, onde os governos são cada vez mais marcados pela lógica da segurança e da guerra infinita. O mesmo curso que levou Agamben a recusar-se a lecionar nos EUA a fim de protestar contra a política de segurança norte-americana.
Para ele, os Estados contemporâneos -especialmente os EUA-, mais do que garantidores e administradores da ordem, são máquinas de produção e gestão da desordem -que permitem intervenções que lhes dão legitimidade e poder. Agamben compara o mecanismo ao princípio teológico da Providência -segundo ele, a teoria do "governo divino" do mundo.
"O que define a ação providencial é que, na verdade, ela não se impõe do exterior, mas funciona deixando agir a natureza mesma das criaturas que, desta forma, continuam responsáveis pelos seus pecados", ele afirma.
Mas ao analisar o problema do estado de exceção, o filósofo italiano não procura apenas dar conta de uma situação jurídico-política que parece se impor como regra cada vez mais universal para as sociedades contemporâneas. O que ele tem em mente é, na verdade, a crítica a uma tendência hegemônica na modernidade em vincular razão e norma, racionalidade e normatização da vida. Com isto, abre-se um amplo quadro de questões vinculadas à reorientação das expectativas da razão moderna e de seus modos de racionalização. É neste quadro que Giorgio Agamben se move. No Brasil já foi traduzida uma grande parte de obra que envolve Estâncias onde decorre sobre a cultura ocidental e poesia a partir de Marx, Baudelaire, Freud etc; Infância e História onde o autor tenta criar uma conceitualização de sujeito transcendetal a partir das contribuições da filosofia da linguagem no século XX apontando a ligação direta entre infancia, história, verdade e linguagem (ainda não terminei esse livro); Homo Sacer onde começa a delinear seu último projeto de entender a morfologia do poder e da violência hoje; Estado de exceção que desenvolve e aprofunda as linhas já escritas em Homo Sacer; Linguagem e morte que não li; O que resta de Auschwitz que busca narrar o inarrável da Shoah a partir do inumano, o "muçulmano"; e profanações onde busca, a partir de 10 breves ensaios, fazer indagações sobre a filosofia contemporânea a partir do sagrado, do profano, dos processos de subjetivação e desubjetivação etc. Por ser um dos norteadores do pensamento hoje, tudo isso já diz por si só o tamanho da importância do pensamento desse italisno. Aqui será postado uma entrevista dele com Vladimir Safatle:
Safatle - O senhor possui atualmente um vasto campo de trabalho no interior do qual se cruzam estética, teoria da literatura, filosofia política, psicanálise, história e filosofia do direito. O senhor é também o responsável pela edição italiana da obra de Walter Benjamin. Há questões comuns que orientam sua incursão nestes múltiplos campos de interesse?
Giorgio Agamben - A lógica que guia minha pesquisa não é a lógica da substância e do território separado com fronteiras bem definidas. Ela está mais próxima do que, na ciência física, chamamos de um "campo", onde todo ponto pode a um certo momento carregar-se de uma tensão elétrica e de uma intensidade determinada. Filosofia, política, filologia, literatura, teologia, direito não representam disciplinas e territórios separados, mas são apenas nomes que damos a esta intensidade.
A configuração do que você chama de meus "múltiplos campos de interesse" depende pois da contingência capaz de determinar uma tensão na situação histórica concreta em que me encontro. De resto, trata-se do que, há um tempo atrás, era o mínimo esperado de uma pessoa culta -este a quem Nietzsche chamava "um bom europeu".
Não devemos esquecer, por exemplo, que é impossível haver filosofia sem filologia, da mesma forma como é impossível teoria sem história. Para mim, assim como para Foucault, a investigação histórica do passado é apenas a sombra da interrogação histórica sobre o presente. E atualmente, mais do que nunca, a arqueologia é a única via de acesso ao presente.
Safatle - Qual é a trajetória de pesquisa que o levou a identificar, no estado de exceção, o fenômeno jurídico maior na compreensão da normatização da vida contemporânea?
Agamben - Primeiramente, gostaria de lembrar que, atualmente, o direito é, de fato, um dos meus principais canteiros de trabalho. O outro é a teologia. Qual a razão desta escolha? Eu poderia responder -e isto não seria necessariamente uma brincadeira- que o direito e a teologia são os dois únicos domínios nos quais Foucault não trabalhou realmente, o que me dava uma certa liberdade.
Mas a verdade é que não é possível atualmente pensar a política e sua história sem se engajar em pesquisas arqueológicas que articulam o direito e a teologia. Não digo isto por acreditar em alguma espécie de primado destas disciplinas. O fato é que no interior dos mecanismos e relações de poder, conceitos jurídicos e teológicos continuam a agir de maneira mais ou menos consciente, e são seus funcionamentos e efeitos que me interessam.
Creio que Foucault tinha razão ao dizer que queria deixar de lado os ditos "universais" (o Estado, a Lei, a Soberania, o Poder), a fim de analisar o processo concreto e os dispositivos que realizam as relações de poder. Desta forma, ao trabalhar sobre o estado de exceção, não se tratava para mim de responder a questões como: "O que é o direito?", "o que é o Estado?", mas de procurar compreender o modo por meio do qual a máquina político-jurídica funciona.
Ou seja, não parto de questões como: "O que é e o que não é legal?", ou mesmo "o que é e o que não é justo?", mas "como se realiza a relação entre violência e direito?", "como é possível desativar tal relação?". Descobrir que o estado de exceção era, por assim dizer, o motor imóvel da máquina jurídica ocidental foi para mim muito instrutivo.
Safatle - O senhor diz, em "Estado de Exceção", que devemos pensar a política para além do jurídico. Mas, se em nossas sociedades democráticas, como o senhor afirma, o estado de exceção é a regra, isto significaria que não há mais espaço político no interior do sistema parlamentar de representação? E, se devemos pensar a política para além do jurídico, devemos então abandonar a aspiração moderna de constituição de um Estado Justo?
Agamben - Veja, sua pergunta sobre qual seria a constituição de um Estado Justo me parece abstrata e, como tal, realmente não me interessa. Não se trata mais, como era ainda legítimo na época de Rousseau, de escrever a Constituição da Polônia ou da Córsega. Deixo esta questão para os juristas criminais que acreditam poder escrever a Constituição democrática do Iraque. Ou aos tecnocratas ingênuos que acreditaram poder escrever a Constituição européia sem se perguntar se havia, em algum lugar, um poder constituinte que os autorizava. Pois é a própria relação entre política e direito que deve ser questionada. Problema este que a tradição marxista sempre negligenciou por acreditar que o direito, em última instância, era um instrumento neutro do qual poderíamos nos servir sem problemas.
De fato, nossa concepção de democracia ainda está muito dominada pelo paradigma do Estado de Direito, ou seja, pela idéia de que podemos estabelecer um quadro constitucional e normativo a partir do qual uma sociedade justa advém possível. Mas minhas pesquisas me mostraram que o problema fundamental não diz respeito à Constituição ou à lei; diz respeito ao governo.
Rousseau ainda acreditava ser capaz de liquidar o problema do governo ao vê-lo como poder executivo, como potência que "executa" o que a vontade geral estabeleceu. Trata-se de uma ingenuidade imperdoável. O verdadeiro ponto misterioso da política ocidental não é o Estado, não é a Constituição, não é a soberania, mas o governo. Não o soberano, mas o ministro. Não o legislador, mas o funcionário.
A pesquisa na qual estou atualmente engajado diz respeito exatamente à tentativa de compreender o modo por meio do qual a máquina governamental ocidental funciona. Trata-se de olhar a política e o direito a partir de uma nova perspectiva na qual as hierarquias se invertem e o poder considerado executivo -a "polícia", no sentido lato- advém o problema central. Mas, mesmo aqui, não faço mais do que alargar o trabalho de Michel Foucault.
Safatle - O sr. diz ainda que a declaração clara do estado de exceção está sendo substituída paulatinamente pela generalização do paradigma de segurança como técnica normal de governo. Os EUA seriam, no seu ponto de vista, um caso exemplar?
Agamben - Em um de seus cursos no Collèqe de France, Michel Foucault mostrou como funciona a segurança enquanto paradigma de governo. Para Quesnay, Turgot e os ministros fisiocratas, que nesta matéria foram os primeiros, não se tratava, por exemplo, de prevenir as grandes penúrias, mas de deixá-las ocorrer para, em seguida, dirigi-las e orientar os modos de atravessá-las. A segurança como paradigma de governo não nasce para instaurar a ordem, mas para governar a desordem. É neste sentido que a segurança, juntamente com o estado de exceção, é o paradigma fundamental da política mundial. Como disse um funcionário da política italiana durante as investigações judiciárias que se seguiram às mortes na manifestação antiglobalização em Gênova: "O Estado não quer que imponhamos a ordem, mas que administremos a desordem".
Parece-me evidente que este é o princípio que guia, particularmente, a política exterior norte-americana, mas não apenas ela. Trata-se de criar zonas de desordem permanente ("zones of turmoil", como dizem os estrategistas) que permitem intervenções constantes orientadas na direção que se julgar útil. Ou seja, os Estados Unidos são hoje uma gigantesca máquina de produção e gestão da desordem.
É curioso como tudo isto se encontra em um dos paradigmas teológicos que tenho trabalhado: este que diz respeito à doutrina da Providência. Os conceitos de ordem e segurança foram elaborados como paradigmas de governo, pela primeira vez, no interior desta doutrina. Não devemos esquecer que a Providência ocupou a mente de filósofos e teólogos por quase 15 séculos, dos Estóicos até São Tomás, de Plutarco a Leibniz, de Boécio aos fisiocratas. A teoria da Providência não é outra coisa que a teoria do governo divino do mundo, ou seja, do melhor governo possível.
Por isto, a Providência não opera de modo violento ou miraculoso, mas, tal como nos governos democráticos, ela precisa do livre-arbítrio dos indivíduos. O que define a ação providencial é que, na verdade, ela não se impõe do exterior, mas funciona deixando agir a natureza mesma das criaturas que, desta forma, continuam responsáveis pelos seus pecados. A Providência é, neste sentido, um paradigma da democracia moderna e não é surpreendente que ela tenha influenciado profundamente um pensador como Rousseau. O Estado moderno, no que ele tem de melhor quanto de pior, provém deste Estado-Providência.
Safatle - O senhor fala, ao final de "Estado de Exceção", a respeito da necessidade de abrirmos espaço a uma "violência pura" capaz de expor e de cortar o vínculo entre violência e direito. Esta idéia de "violência pura" é algo como uma idéia reguladora ou o senhor tem em mente situações revolucionárias concretas que teriam o valor de paradigma?
Agamben - É importante precisar o que devemos entender por "pura" quando se fala de violência. Não se trata, em absoluto, de um caráter ou de uma propriedade substancial próprio a certos tipos de atos violentos, isto em detrimento de outros. Como Benjamin disse muito claramente, a pureza de um ser ou de uma coisa nunca reside neste próprio ser, nunca está na origem, mas depende da relação entre este ser e algo de externo. No nosso caso, trata-se do direito.
Benjamin definia como "pura" esta violência que quebra a relação entre violência e direito. Não se trata aqui de uma "violência criadora" (como é o caso, por exemplo, do poder constituinte que cria um novo direito), mas de uma violência que interrompe e depõe o direito. Por outro lado, não se trata de uma idéia reguladora.
O que está realmente em questão é, na verdade, a possibilidade de uma ação humana que se situe fora de toda relação com o direito, ação que não ponha, que não execute ou que não transgrida simplesmente o direito. Trata-se do que os franciscanos tinham em mente quando, em sua luta contra a hierarquia eclesiástica, reivindicavam a possibilidade de um uso de coisas que nunca advém direito, que nunca advém propriedade.
E talvez "política" seja o nome desta dimensão que se abre a partir de tal perspectiva, o nome de livre uso do mundo. Mas tal uso não é algo como uma condição natural originária que se trata de restaurar. Ela está mais perto de algo de novo, algo que é resultado de um corpo-a-corpo com os dispositivos do poder que procuram subjetivar, no direito, as ações humanas.
Por isto, tenho trabalhado recentemente sobre o conceito de "profanação" que, no direito romano, indicava o ato por meio do qual o que havia sido separado na esfera da religião e do sagrado voltava a ser restituído ao livre uso do homem.
Ninguém entendeu um Mod. Parte 1: o excesso da modernidade
Essa é uma postagem de meu amigo Chrisantho http://oeventuario.blogspot.com/ Como não me importo com a opinião dele sobre roubar postagem simplesmente roubei e postei aqui para todos verem esse primor da crítica hoje.
Foi Žižek quem afirmou que as figuras de Martin Luther King e dos episódios de maio de 68 foram cooptadas pela ideologia do liberalismo multiculturalista contemporâneo.
Para ele, Martin Luther King não teve um simples sonho de tolerância racial, mas um sólido projeto político de esquerda, utópico, que envolvia uma crítica político-econômica do capitalismo e da democracia liberal.
Assim como os episódios de maio de 68 não representaram uma simples revolução em nome do slogan "sexo, drogas e rock and roll", ou melhor, o próprio slogan continha nas entrelinhas um projeto político emancipatório crítico, de esquerda.
As imagens equivocadas destas figuras são produto de uma (des)apreensão, no sentido žižekiano do termo, dos fenômenos reais pela fantasia estruturante da ideologia multiculturalista e arrisco dizer que o mesmo se passa com a cena Mod.
Além de uma simples tribo urbana com gostos para roupas e músicas compartilhados por seus membros, existe uma mensagem política que precisa ser apreendida. Não creio que o termo Mod se refira à expressão modern rockers, mas, num sentido muito mais radical, penso estar ele relacionado ao termo modernists e aqui, os vínculos com a própria modernidade podem servir de rica matiére a pensére.
Žižek aponta, apoiado pela psicanálise, nos filmes de Hitchkock uma interessante transformação: a maneira como, nos anos 60, seus filmes deixam de lado a figura simbólica do pai e passam a se focar no superego materno. Para o filósofo esta transformação é crucial para a compreensão da crise da modernidade uma vez que ela se pauta na desintegração das famílias tradicionais burguesas bem como do Estado-Nação. O desaparecimento da figura paterna no espaço doméstico e a desintegração da figura paterna no espaço público.
Isto quer dizer que os sujeitos que surgem neste contexto têm grande dificuldade em lidar com mandados simbólicos, significantes mestres em seu não-senso. Não custa lembrar que Žižek aponta esta como a característica principal do sujeito "pós-moderno", que constantemente é chamado, desde criança, a se politizar no espaço doméstico e a se despolitizar, ou se infantilizar, no espaço público. Crianças têm a oportunidade de participar das decisões familiares, mas adultos não podem participar das decisões políticas cruciais aceitando cinicamente a democracia liberal como "verdade", ainda que saibam que ela não funciona.
Pois bem, minha hipótese é que este panorama está umbilicalmente ligado ao surgimento da cena (ou movimento?) Mod: os órfãos da guerra que não mais se identificam com sua nacionalidade, mas com o grupo de jovens que compartilham dos mesmos gostos e hábitos.
Quando o Estado-Nação, que como Žižek aponta, organiza a fantasia em torno dos nossos desejos pessoais por meio dos mitos nacionais, e portanto cria os nossos hábitos e gostos nacionais, se desintegra, rivalidades, violências e intolerâncias não se dão mais entre diferentes nacionalidades, mas entre diferentes grupos artificialmente formados. Não é o caso do fatídico episódio de 64 em que Mods e Rockers se confrontaram até a morte na praia de Brighton?
A estética e o comportamento Mod também tem íntima relação com a modernidade: uma aparência burguesa civilizada (e levemente subvertida, é verdade) conjugada com um comportamento agressivo e transgressor. Não é esta precisamente a cara da Modernidade? Uma empreitada aparentemente racionalizadora e civilizadora que esconde uma dinâmica violentíssima de subversão dos costumes tradicionais de todas as localidades ao redor do globo?
Parece, portanto, que a desintegração da figura paterna permitiu que este excesso constitutivo da modernidade viesse à tona personificado na cena Mod. E talvez esta dimensão deva ser resgatada para nos questionarmos o significado político desta aparição e inclusive da cultura que se forma nas duas últimas décadas na cidade em que vivo, Curitiba. Se é bem verdade que, ao menos nas músicas, houve pouca referência da cena Mod a posturas políticas abertamente de esquerda, a arte produzida foi extremamente transgressora, violenta e com a mesma pretensão universalizante. Não seria a hora de discutir o potencial universalizante desta cultura e porque e para que ela ressurge precisamente em São Paulo da década de oitenta e no sul do Brasil em meados da década de noventa?
Foi Žižek quem afirmou que as figuras de Martin Luther King e dos episódios de maio de 68 foram cooptadas pela ideologia do liberalismo multiculturalista contemporâneo.
Para ele, Martin Luther King não teve um simples sonho de tolerância racial, mas um sólido projeto político de esquerda, utópico, que envolvia uma crítica político-econômica do capitalismo e da democracia liberal.
Assim como os episódios de maio de 68 não representaram uma simples revolução em nome do slogan "sexo, drogas e rock and roll", ou melhor, o próprio slogan continha nas entrelinhas um projeto político emancipatório crítico, de esquerda.
As imagens equivocadas destas figuras são produto de uma (des)apreensão, no sentido žižekiano do termo, dos fenômenos reais pela fantasia estruturante da ideologia multiculturalista e arrisco dizer que o mesmo se passa com a cena Mod.
Além de uma simples tribo urbana com gostos para roupas e músicas compartilhados por seus membros, existe uma mensagem política que precisa ser apreendida. Não creio que o termo Mod se refira à expressão modern rockers, mas, num sentido muito mais radical, penso estar ele relacionado ao termo modernists e aqui, os vínculos com a própria modernidade podem servir de rica matiére a pensére.
Žižek aponta, apoiado pela psicanálise, nos filmes de Hitchkock uma interessante transformação: a maneira como, nos anos 60, seus filmes deixam de lado a figura simbólica do pai e passam a se focar no superego materno. Para o filósofo esta transformação é crucial para a compreensão da crise da modernidade uma vez que ela se pauta na desintegração das famílias tradicionais burguesas bem como do Estado-Nação. O desaparecimento da figura paterna no espaço doméstico e a desintegração da figura paterna no espaço público.
Isto quer dizer que os sujeitos que surgem neste contexto têm grande dificuldade em lidar com mandados simbólicos, significantes mestres em seu não-senso. Não custa lembrar que Žižek aponta esta como a característica principal do sujeito "pós-moderno", que constantemente é chamado, desde criança, a se politizar no espaço doméstico e a se despolitizar, ou se infantilizar, no espaço público. Crianças têm a oportunidade de participar das decisões familiares, mas adultos não podem participar das decisões políticas cruciais aceitando cinicamente a democracia liberal como "verdade", ainda que saibam que ela não funciona.
Pois bem, minha hipótese é que este panorama está umbilicalmente ligado ao surgimento da cena (ou movimento?) Mod: os órfãos da guerra que não mais se identificam com sua nacionalidade, mas com o grupo de jovens que compartilham dos mesmos gostos e hábitos.
Quando o Estado-Nação, que como Žižek aponta, organiza a fantasia em torno dos nossos desejos pessoais por meio dos mitos nacionais, e portanto cria os nossos hábitos e gostos nacionais, se desintegra, rivalidades, violências e intolerâncias não se dão mais entre diferentes nacionalidades, mas entre diferentes grupos artificialmente formados. Não é o caso do fatídico episódio de 64 em que Mods e Rockers se confrontaram até a morte na praia de Brighton?
A estética e o comportamento Mod também tem íntima relação com a modernidade: uma aparência burguesa civilizada (e levemente subvertida, é verdade) conjugada com um comportamento agressivo e transgressor. Não é esta precisamente a cara da Modernidade? Uma empreitada aparentemente racionalizadora e civilizadora que esconde uma dinâmica violentíssima de subversão dos costumes tradicionais de todas as localidades ao redor do globo?
Parece, portanto, que a desintegração da figura paterna permitiu que este excesso constitutivo da modernidade viesse à tona personificado na cena Mod. E talvez esta dimensão deva ser resgatada para nos questionarmos o significado político desta aparição e inclusive da cultura que se forma nas duas últimas décadas na cidade em que vivo, Curitiba. Se é bem verdade que, ao menos nas músicas, houve pouca referência da cena Mod a posturas políticas abertamente de esquerda, a arte produzida foi extremamente transgressora, violenta e com a mesma pretensão universalizante. Não seria a hora de discutir o potencial universalizante desta cultura e porque e para que ela ressurge precisamente em São Paulo da década de oitenta e no sul do Brasil em meados da década de noventa?
sexta-feira, 28 de novembro de 2008
O que resta da modernidade?
Voltando para casa hoje tirei algumas conclusões provisórias e instáveis. Hoje não temos o “mapeamento cognitivo" suficiente para lidar com nossos mandados simbólicos sobrecarregados da modernidade (a pós-modernidade seria, nesse sentido, uma resposta severa a essa incapacidade). As mudanças nos últimos anos, principalmente em relação a tecnicização da ciência e a precarização dos laços humanos, trouxe como resposta do sujeito uma incapacidade de lidar com a Verdade. Aqui Verdade não usava em qualquer tipo de contexto bíblico, mas sim o entendimento sobre o norteamento das coordenadas rumo à emancipação humana para além do capital hoje, se ainda pensamos nisso, é claro.
Em tempos sombrios de crise estrutural do metabolismo global temos que ter em mente alguns pontos cruciais:
1) O processo de hibridização entre capital e Estado (não seria esse o significado real da democracia-liberal de hoje? Enquanto nos EUA demoraram em torno de semana para “votarem” o plano de “salvamento” do sistema financeiro, na China, normalmente denominada uma ditadura foram necessárias algumas horas para que um plano de salvamento também fosse posto em prática) que envolve necessariamente uma maior violência social para reprimir os grupos que lutam contra a lógica de maximização de lucros a custa da classe-que-vive-do-trabalho. Em outras palavras, a necessária força do Estado para conter as contradições reais que se acirram no plano de reprodução ampliada do capital. Se o nazismo é impossível hoje, qual será a nova forma de legitimação para um processo praticamente transparente de maciça transferência de renda?
2) Considerando que o estado de exceção torna-se potencialmente a regra, qual será o fardo histórico para os movimentos emancipatórios que buscam a superação radical nesse metabolismo social que não tem limite para responder adequadamente a seus imperativos existenciais de acumulação e expansão constante e progressiva? Aqui parece que a ofensiva socialista torna-se um novo imperativo contra a posição par excellence defensiva em relação à superação radical do Real do Capital: a luta de classes.
3) Aprofundando ainda mais essa Idéia, em termos lacanianos, o que poderíamos pensar em relação à superação radical do Capital e seu antagonismo constituinte com uma necessidade estrutural do sujeito de superar o Real como dimensão incognisível de estruturação da realidade? Essa tese provavelmente não teria muitos adeptos pela contradição entre estrutura do sujeito (da modernidade) e sua superação radical, entretanto, com o desenvolvimento atual das tecno-ciências, quais poderiam ser os limites? Testes hoje já constatam a possibilidade de transformar o cérebro humano em um desejo instantâneo como um controle remoto se esvaindo a diferente entre desejo e realidade. Quais seriam os limites desse processo? A luta iluminista ainda não pode ser deixada de lado. Entretanto, a pergunta que fica é: essa mudança cognitiva não pode ser feita naturalmente? Minha posição é positiva aqui: se os limites do Ser são aqueles da ordem simbólica, da linguagem, do Outro, não estaria aqui a resposta para esse novo mapeamento cognitivo? Talvez.
4) Sobre o amor: considerando o atual processo de desenvolvimento das forças produtivas, a virtualidade no sentido deleuziano de fluxo livre de devires não mostra que a materialidade das relações é apenas um pressuposto ontológico das relações humanas? Apenas porque aqui se abre uma porta nova da interação humana a ser investida: a rede imaterial. Não de computadores (não poderia dar uma opinião muito firme em relação a isso, pois confesso que meu entendimento sobre o computador ainda é praticamente nulo), mas sim de trocas simbólicas que percorrem necessariamente da construção de alternativas a desestruturação radical do sujeito moderno. Se o velho torna-se cada vez mais velho e o novo não consegue desenvolver-se ainda, não poderia ser essa uma resposta plausível para um novo projeto coletivo de emancipação hoje?
Em tempos sombrios de crise estrutural do metabolismo global temos que ter em mente alguns pontos cruciais:
1) O processo de hibridização entre capital e Estado (não seria esse o significado real da democracia-liberal de hoje? Enquanto nos EUA demoraram em torno de semana para “votarem” o plano de “salvamento” do sistema financeiro, na China, normalmente denominada uma ditadura foram necessárias algumas horas para que um plano de salvamento também fosse posto em prática) que envolve necessariamente uma maior violência social para reprimir os grupos que lutam contra a lógica de maximização de lucros a custa da classe-que-vive-do-trabalho. Em outras palavras, a necessária força do Estado para conter as contradições reais que se acirram no plano de reprodução ampliada do capital. Se o nazismo é impossível hoje, qual será a nova forma de legitimação para um processo praticamente transparente de maciça transferência de renda?
2) Considerando que o estado de exceção torna-se potencialmente a regra, qual será o fardo histórico para os movimentos emancipatórios que buscam a superação radical nesse metabolismo social que não tem limite para responder adequadamente a seus imperativos existenciais de acumulação e expansão constante e progressiva? Aqui parece que a ofensiva socialista torna-se um novo imperativo contra a posição par excellence defensiva em relação à superação radical do Real do Capital: a luta de classes.
3) Aprofundando ainda mais essa Idéia, em termos lacanianos, o que poderíamos pensar em relação à superação radical do Capital e seu antagonismo constituinte com uma necessidade estrutural do sujeito de superar o Real como dimensão incognisível de estruturação da realidade? Essa tese provavelmente não teria muitos adeptos pela contradição entre estrutura do sujeito (da modernidade) e sua superação radical, entretanto, com o desenvolvimento atual das tecno-ciências, quais poderiam ser os limites? Testes hoje já constatam a possibilidade de transformar o cérebro humano em um desejo instantâneo como um controle remoto se esvaindo a diferente entre desejo e realidade. Quais seriam os limites desse processo? A luta iluminista ainda não pode ser deixada de lado. Entretanto, a pergunta que fica é: essa mudança cognitiva não pode ser feita naturalmente? Minha posição é positiva aqui: se os limites do Ser são aqueles da ordem simbólica, da linguagem, do Outro, não estaria aqui a resposta para esse novo mapeamento cognitivo? Talvez.
4) Sobre o amor: considerando o atual processo de desenvolvimento das forças produtivas, a virtualidade no sentido deleuziano de fluxo livre de devires não mostra que a materialidade das relações é apenas um pressuposto ontológico das relações humanas? Apenas porque aqui se abre uma porta nova da interação humana a ser investida: a rede imaterial. Não de computadores (não poderia dar uma opinião muito firme em relação a isso, pois confesso que meu entendimento sobre o computador ainda é praticamente nulo), mas sim de trocas simbólicas que percorrem necessariamente da construção de alternativas a desestruturação radical do sujeito moderno. Se o velho torna-se cada vez mais velho e o novo não consegue desenvolver-se ainda, não poderia ser essa uma resposta plausível para um novo projeto coletivo de emancipação hoje?
segunda-feira, 17 de novembro de 2008
On EVIL: An interview with Alain Badiou
In philosophy and psychoanalytic theory, evil is back. The question of evil is, of course, an old and venerable one in Western philosophy, having fascinated philosophers from Socrates and Augustine through Leibnitz and Kant. For much of this history, "the question of evil" was a theological one, namely: If God is beneficent and omnipotent, why does he allow there to be such evil in the world? After Kant, philosophy largely severed its ties with theology, and, with that, the question of evil receded. Evil seemed no longer to be a question for philosophy, but instead became a question for psychiatry, sociology, and biology. Yet, in the past few years, a loosely connected group of philosophers and theorists, influenced by the work of Immanuel Kant and Jacques Lacan, has returned to the question of evil.
In 1993, the philosopher Alain Badiou published Ethics: An Essay on the Understanding of Evil, an analysis, critique, and reformulation of the discourse of evil in contemporary thought. Rejecting both the theological and the scientific (psychological, sociological, etc.) interpretations of evil. he locates good and evil in the very structure of human subjectivity, agency, and freedom.
The editorial group of Cabinet first began planning this issue in the spring of 2001. We found ourselves repeatedly returning to the initial terms of our theme-more than one editorial meeting was dominated by discussions of its slipperiness and complexity, by long and sometimes contentious debates over definition and scope. Something that was of interest to us was that the proliferation of images of evil in contemporary popular culture in fact seemed to go hand in hand with a fundamental inability to confront the question of evil within its religious, philosophical, and metaphysical contexts. It seemed, as one writer has put, that Satan had died. Although the content of this issue is effectively the same one we planned almost 9 months ago, there can be no doubt, however, that the events of 11 September have changed the frame of reference around it. In August, the word evil was likely to draw a smile or even laughter. That is no longer true as we write this in November. On the other hand, it seems that the incessant rhetorical appeal to the word evil since September 11 has in no way made the possibility of real debate about the concept any more likely.
The interview with Alain Badiou was conducted via email in July-August 2001. Alain Badiou asked to add the final paragraphs of his interview after the events of 11 September. A small number of other authors also asked and were allowed to make slight amendments to pieces they had already submitted.
Q: You argue that in our philosophical and political discourses today, evil is "self-evident," and that both this "self-evidence" and this conception of "evil" are problematic. What is "our consensual representation of evil" and what is wrong with it?
A: The idea of the self-evidence of Evil is not, in our society, very old. It dates, in my opinion, from the end of the 1960s, when the big political movement of the 60s was finished. We then entered into a reactive period, a period that I call the Restoration. You know that, in France, "Restoration" refers to the period of the return of the King, in 1815, after the Revolution and Napoleon. We are in such a period. Today we see liberal capitalism and its political system, parlimentarianism, as the only natural and acceptable solutions. Every revolutionary idea is considered utopian and ultimately criminal. We are made to believe that the global spread of capitalism and what gets called "democracy" is the dream of all humanity. And also that the whole world wants the authority of the American Empire, and its military police, NATO.
In truth, our leaders and propagandists know very well that liberal capitalism is an inegalitarian regime, unjust, and unacceptable for the vast majority of humanity. And they know too that our "democracy" is an illusion: Where is the power of the people? Where is the political power for third world peasants, the European working class, the poor everywhere? We live in a contradiction: a brutal state of affairs, profoundly inegalitarian-where all existence is evaluated in terms of money alone-is presented to us as ideal. To justify their conservatism, the partisans of the established order cannot really call it ideal or wonderful. So instead, they have decided to say that all the rest is horrible. Sure, they say, we may not live in a condition of perfect Goodness. But we're lucky that we don't live in a condition of Evil. Our democracy is not perfect. But it's better than the bloody dictatorships. Capitalism is unjust. But it's not criminal like Stalinism. We let millions of Africans die of AIDS, but we don't make racist nationalist declarations like Milosevic. We kill Iraqis with our airplanes, but we don't cut their throats with machetes like they do in Rwanda, etc.
That's why the idea of Evil has become essential. No intellectual will actually defend the brutal power of money and the accompanying political disdain for the disenfranchised, or for manual laborers, but many agree to say that real Evil is elsewhere. Who indeed today would defend the Stalinist terror, the African genocides, the Latin American torturers? Nobody. It's there that the consensus concerning Evil is decisive. Under the pretext of not accepting Evil, we end up making believe that we have, if not the Good, at least the best possible state of affairs-even if this best is not so great. The refrain of "human rights" is nothing other than the ideology of modern liberal capitalism: We won't massacre you, we won't torture you in caves, so keep quiet and worship the golden calf. As for those who don't want to worship it or who don't believe in our superiority, there's always the American army and its European minions to make them be quiet.
Note that even Churchill said that democracy (that is to say the regime of liberal capitalism) was not at all the best of political regimes, but rather the least bad. Philosophy has always been critical of commonly held opinions and of what seems obvious. Accept what you've got because all the rest belongs to Evil is an obvious idea, which should therefore be immediately examined and critiqued. My personal position is the following: It is necessary to examine, in a detailed way, the contemporary theory of Evil, the ideology of human rights, the concept of democracy. It is necessary to show that nothing there leads in the direction of the real emancipation of humanity. It is necessary to reconstruct rights, in everyday life as in politics, of Truth and of the Good. Our ability to once again have real ideas and real projects depends on it.
Q: You say that, for liberal capitalism, evil is always elsewhere, the dreaded other, something that liberal capitalism believes it has thankfully banished and kept at bay. Yet isn't there also, in the contemporary imagination, a powerful idea of internal (social, psychological, domestic) evil? For decades, popular films and novels have been obsessed with the idea of evil lurking within (in the mind, in the house, in the neighborhood). The Timothy McVeigh affair in the US seems to have renewed political worries about "the evil within" (within each one of us, within the heart of the US). Just over a month ago, Andrea Yates, a Texas mother, systematically drowned her five children, prompting a national discussion about whether or not we are all capable of such evil. Philosophically, the new interest in Kant's conception of "radical evil" (and its Lacanian reinterpretation) would seem to fall in line with this idea of internal (rather than external, political) evil. Indeed, throughout most of the history of the West, it would seem that evil has been conceived as "internal," as something that morally haunts each one of us. So, my questions: In addition to the notion of "external" evil you propose, do you also recognize this notion of "internal" evil? Is this idea perennial, or does it tell us something peculiar about our historical moment? Do you see these two notions of evil (external and internal) as connected with one another in any way?
A: There is no contradiction between the affirmation that liberal capitalism and democracy are the Good and the affirmation that Evil is a permanent possibility for any individual. The second thesis (Evil inside of each of us) is simply the moral and religious complement to the first thesis, which is political (parliamentary capitalism as the Good). There is even a "logical" connection between the two affirmations, as follows:
1. History shows that democratic liberal capitalism is the only economic, political, and social regime that is truly humane, that truly conforms to the Good of humanity.
2. Every other political regime is a monstrous and bloody dictatorship, completely irrational. 3. The proof of this fact is that political regimes that have fought against liberalism and democracy all share the same face of Evil. Thus, Fascism and Communism, which appeared to be opposites, were actually very similar. They were both of the "totalitarian" family, which is the opposite of the democratic-capitalism family.
4. These monstrous regimes cannot produce a rational project, an idea of justice or something of that sort. Those who have led these regimes (Fascist or Communist) were necessarily pathological cases: One needs to study Hitler or Stalin with the tool of criminal psychology. As for those who have supported them, and there were thousands of them, they were alienated by the totalitarian mystique. They were finally directed by evil and destructive passions.
5. If thousands of people were able to participate in such ridiculous and criminal undertakings, it is obviously because the possibility of being fascinated by Evil exists in each of us. This possibility will be called "hatred of the Other." The conclusion will be, first, that we must support liberal democracy everywhere, and, second, that we must teach our children the ethical imperative of the love of the Other.
My position is obviously that this "reasoning" is purely illusory ideology. First, liberal capitalism is not at all the Good of humanity. Quite the contrary; it is the vehicle of savage, destructive nihilism. Second, the Communist revolutions of the 20th century have represented grandiose efforts to create a completely different historical and political universe. Politics is not the management of the power of the State. Politics is first the invention and the exercise of an absolutely new and concrete reality. Politics is the creation of thought. The Lenin who wrote What is to be Done?, the Trotsky who wrote History of the Russian Revolution, and the Mao Zedong who wrote On the Correct Handling of Contradictions Among the People are intellectual geniuses, comparable to Freud or Einstein. Certainly, the politics of emancipation, or egalitarian politics, have not, thus far, been able to resolve the problem of the power of the State. They have exercised a terror that is finally useless. But that should encourage us to pick up the question where they left it off, rather than to rally to the capitalist, imperialist enemy. Third, the category "totalitarianism" is intellectually very weak. There is, on the side of Communism, a universal desire for emancipation, while on the side of Fascism, there is a national and racial desire. These are two radically opposed projects. The war between the two has indeed been the war between the idea of a universal politics and the idea of racial domination. Fourth, the use of terror in revolutionary circumstances or civil war does not at all mean that the leaders and militants are insane, or that they express the possibility of internal Evil. Terror is a political tool that has been in use as long as human societies have existed. It should therefore be judged as a political tool, and not submitted to infantilizing moral judgment. It should be added that there are different types of terror. Our liberal countries know how to use it perfectly. The colossal American army exerts terrorist blackmail on a global scale, and prisons and executions exert an interior blackmail no less violent. Fifth, the only coherent theory of the subject (mine, I might add, in jest!) does not recognize in it any particular disposition toward Evil. Even Freud's death drive is not particularly tied to Evil. The death drive is a necessary component of sublimation and creation, just as it is of murder and suicide. As for the love of the Other, or, worse, "the recognition of the Other," these are nothing but Christian confections. There is never "the Other" as such. There are projects of thought, or of actions, on the basis of which we distinguish between those who are friends, those who are enemies, and those who can be considered neutral. The question of knowing how to treat enemies or neutrals depends entirely on the project concerned, the thought that constitutes it, and the concrete circumstances (is the project in an escalating phase? is it very dangerous? etc.).
Q: Given what you have said, one might expect you to turn the tables, to assert that, contrary to the prevailing view, liberal capitalism is itself "evil." But you don't do that. Instead, you offer an alternative theory of evil.
A: Were I to reverse the tables, as you suggest, I would leave everything in place. To say that liberal capitalism is Evil would not change anything. I would still be subordinating politics to humanistic and Christian morality: I would say: "Let's fight against Evil." But I've had enough of "fighting against," of "deconstructing," of "surpassing," of "putting an end to," etc. My philosophy desires affirmation. I want to fight for; I want to know what I have for the Good and to put it to work. I refuse to be content with the "least evil." It is very fashionable right now to be modest, not to think big. Grandeur is considered a metaphysical evil. Me, I am for grandeur, I am for heroism. I am for the affirmation of the thought and the deed.
Certainly, it is necessary to propose another theory of Evil. But that is to say, essentially, another theory of the Good. Evil would be to compromise on the question of the Good. To give up is always Evil. To renounce liberation politics, renounce a passionate love, renounce an artistic creation.... Evil is the moment when I lack the strength to be true to the Good that compels me.
The real question underlying the question of Evil is the following: What is the Good? All my philosophy strives to answer this question. For complex reasons, I give the Good the name "Truths" (in the plural). A Truth is a concrete process that starts by an upheaval (an encounter, a general revolt, a surprising new invention), and develops as fidelity to the novelty thus experimented. A Truth is the subjective development of that which is at once both new and universal. New: that which is unforeseen by the order of creation. Universal: that which can interest, rightly, every human individual, according to his pure humanity (which I call his generic humanity). To become a subject (and not remain a simple human animal), is to participate in the coming into being of a universal novelty. That requires effort, endurance, and sometimes self-denial. I often say it's necessary to be the "activist" of a Truth. There is Evil each time egoism leads to the renunciation of a Truth. Then, one is de-subjectivized. Egoistic self-interest carries one away, risking the interruption of the whole progress of a truth (and thus of the Good).
One can, then, define Evil in one phrase: Evil is the interruption of a truth by the pressure of particular or individual interests. Even the case that you cite above-the woman who drowns her five infants-springs from this vision of things. The debate you raise is absurd: Obviously, everyone is "capable" of everything. One has seen everywhere good people becoming torturers, or peaceful citizens brutalizing people over insignificant things. This consideration is of no interest. It only reminds us that the human species is an animal species, governed by the lowest interests, of which moreover capitalist profit is merely the legal formalization. All that is short of Good and Evil, it is nothing more than the rule of impulses. The question of Evil starts when one can say what Good one is talking about. I am convinced that the murder of five children is actually tied to a brutal renunciation of the Good, in the form of a love process. In any case, that's the only case in which it makes any sense to speak of Evil. The myth that one thinks of is Medea. She also kills her children. And it's not Evil, in the tragic sense of the term, because this murder is entirely dependent on her love for Jason.
Q: In your view, then, is the realm of the human animal simply beneath good and evil (such that acts of torture, for example, are not properly "evil")? Does one not have a moral obligation to become a subject (instead of remaining a human animal)? And, thus, is one's failure to become a subject not a moral failure?
A: The question actually combines two common conceptions of morality (and thus of the distinction between Good and Evil): the "natural" conception, derived from Rousseau, and the "formal" conception, derived from Kant:
1. There is a "natural" morality, things that are obviously bad in the opinion of any human consciousness. Accordingly, Evil exists for the human animal. The example given is that of torture.
2. There is a "formal" morality, a universal obligation that is above any particular situation. And therefore there is a universal Evil, which, too, is independent of circumstances. The example given is that of the obligation to become a subject, to place oneself above the basic human animalism. It is bad to refuse to become a fully human subject, no matter what might be the particular terms of this becoming.
I must, of course, specify that I am absolutely opposed to these two conceptions. I maintain that the natural state of the human animal has nothing to do with Good or Evil. And I maintain that the kind of formal moral obligation described in Kant's categorical imperative does not actually exist. Take the example of torture. In a civilization as sophisticated as the Roman Empire, not only is torture not considered an Evil, it is actually appreciated as a spectacle. In arenas, tigers devour people; they are burned alive; the audience rejoices to see combatants cut each other's throats. How, then, could we think that torture is Evil for every human animal? Aren't we the same animal as Seneca or Marcus Aurelius? I should add that the armed forces of my country, France, with the approval of the governments of the era and the majority of public opinion, tortured all the prisoners during the Algerian War. The refusal of torture is a historical and cultural phenomenon, not at all a natural one. In a general way, the human animal knows cruelty as well as it knows pity; the one is just as natural as the other, and neither one has anything to do with Good or Evil. One knows of crucial situations where cruelty is necessary and useful, and of other situations where pity is nothing but a form of contempt for others. You won't find anything in the structure of the human animal on which to base the concept of Evil, nor, moreover, that of the Good.
But the formal solution isn't any better. Indeed, the obligation to be a subject doesn't have any meaning, for the following reason: The possibility of becoming a subject does not depend on us, but on that which occurs in circumstances that are always singular. The distinction between Good and Evil already supposes a subject, and thus can't apply to it. It's always for a subject, not a pre-subjectivized human animal, that Evil is possible. For example, if, during the occupation of France by the Nazis, I join the Resistance, I become a subject of History in the making. From the inside of this subjectivization, I can tell what is Evil (to betray my comrades, to collaborate with the Nazis, etc.). I can also decide what is Good outside of the habitual norms. Thus the writer Marguerite Duras has recounted how, for reasons tied to the resistance to the Nazis, she participated in acts of torture against traitors. The whole distinction between Good and Evil arises from inside a becoming-subject, and varies with this becoming (which I myself call philosophy, the becoming of a Truth). To summarize: There is no natural definition of Evil; Evil is always that which, in a particular situation, tends to weaken or destroy a subject. And the conception of Evil is thus entirely dependent on the events from which a subject constitutes itself. It is the subject who prescribes what Evil is, not a natural idea of Evil that defines what a "moral" subject is. There is also no formal imperative from which to define Evil, even negatively. In fact, all imperatives presume that the subject of the imperative is already constituted, and in specific circumstances. And thus there can be no imperative to become a subject, except as an absolutely vacuous statement. That is also why there is no general form of Evil, because Evil does not exist except as a judgment made, by a subject, on a situation, and on the consequences of his own actions in this situation. So the same act (to kill, for example) may be Evil in a certain subjective context, and a necessity of the Good in another.
I must particularly insist that the formula "respect for the Other" has nothing to do with any serious definition of Good and Evil. What does "respect for the Other" mean when one is at war against an enemy, when one is brutally left by a woman for someone else, when one must judge the works of a mediocre "artist," when science is faced with obscurantist sects, etc.? Very often, it is the "respect for Others" that is injurious, that is Evil. Especially when it is resistance against others, or even hatred of others, that drives a subjectively just action. And it's always in these kinds of circumstances (violent conflicts, brutal changes, passionate loves, artistic creations) that the question of Evil can be truly asked for a subject. Evil does not exist either as nature or as law. It exists, and varies, in the singular becoming of the True.
Q: In response to an earlier question, you remarked that "it is necessary to reconstruct rights, in everyday life as in politics, of Truth and of the Good." Can you say more about how the ethic of truths might get mobilized in practical terms, and how this might constitute an alternative to the current conception of "human rights"?
A: Take the nearest example: the terrible criminal attack in New York in September, with its thousands of casualties. If you reason in terms of the morality of human rights, you say, with President Bush: "These are terrorist criminals. This is a struggle of Good against Evil." But are Bush's policies, in Palestine or Iraq for example, really Good? And, in saying that these people are Evil, or that they don't respect human rights, do we understand anything about the mindset of those who killed themselves with their bombs? Isn't there a lot of despair and violence in the world caused by the fact that the politics of Western powers, and of the American government in particular, are utterly destitute of ingenuity and value? In the face of crimes, terrible crimes, we should think and act according to concrete political Truths, rather than be guided by the stereotypes of any sort of morality. The whole world understands that the real question is the following: Why do the politics of the Western powers, of NATO, of Europe and the USA, appear completely unjust to two out of three inhabitants of the planet? Why are five thousand American deaths considered a cause for war, while five hundred thousand dead in Rwanda and a projected ten million dead from AIDS in Africa do not, in our opinion, merit outrage? Why is the bombardment of civilians in the US Evil, while the bombardment of Baghdad or Belgrade today, or that of Hanoi or Panama in the past, is Good? The ethic of Truths that I propose proceeds from concrete situations, rather than from an abstract right, or a spectacular Evil. The whole world understands these situations, and the whole world can act in a disinterested fashion prompted by the injustice of these situations. Evil in politics is easy to see: It's absolute inequality with respect to life, wealth, power. Good is equality. How long can we accept the fact that what is needed for running water, schools, hospitals, and food enough for all humanity is a sum that corresponds to the amount spent by wealthy Western countries on perfume in a year? This is not a question of human rights and morality. It is a question of the fundamental battle for equality of all people, against the law of profit, whether personal or national.
In the same way, the Good in artistic action is the invention of new forms that convey the meaning of the world. The Good in science is the audacity of free thought, the joy of exact knowledge. Likewise, the Good in love is the understanding of what difference really is, of what it is to construct a world when one is two, and not one. And Evil, then, is academic rehearsals or "cultural" commerce; it is knowledge in the service of capitalist profit; it is sexuality considered as merely a technique of pleasure (jouissance). I'll repeat it: All the world shares these experiences. The ethics of Truth always returns, in precise circumstances, to fighting for the True against the four fundamental forms of Evil: obscurantism, commercial academicism, the politics of profit and inequality, and sexual barbarism.
In 1993, the philosopher Alain Badiou published Ethics: An Essay on the Understanding of Evil, an analysis, critique, and reformulation of the discourse of evil in contemporary thought. Rejecting both the theological and the scientific (psychological, sociological, etc.) interpretations of evil. he locates good and evil in the very structure of human subjectivity, agency, and freedom.
The editorial group of Cabinet first began planning this issue in the spring of 2001. We found ourselves repeatedly returning to the initial terms of our theme-more than one editorial meeting was dominated by discussions of its slipperiness and complexity, by long and sometimes contentious debates over definition and scope. Something that was of interest to us was that the proliferation of images of evil in contemporary popular culture in fact seemed to go hand in hand with a fundamental inability to confront the question of evil within its religious, philosophical, and metaphysical contexts. It seemed, as one writer has put, that Satan had died. Although the content of this issue is effectively the same one we planned almost 9 months ago, there can be no doubt, however, that the events of 11 September have changed the frame of reference around it. In August, the word evil was likely to draw a smile or even laughter. That is no longer true as we write this in November. On the other hand, it seems that the incessant rhetorical appeal to the word evil since September 11 has in no way made the possibility of real debate about the concept any more likely.
The interview with Alain Badiou was conducted via email in July-August 2001. Alain Badiou asked to add the final paragraphs of his interview after the events of 11 September. A small number of other authors also asked and were allowed to make slight amendments to pieces they had already submitted.
Q: You argue that in our philosophical and political discourses today, evil is "self-evident," and that both this "self-evidence" and this conception of "evil" are problematic. What is "our consensual representation of evil" and what is wrong with it?
A: The idea of the self-evidence of Evil is not, in our society, very old. It dates, in my opinion, from the end of the 1960s, when the big political movement of the 60s was finished. We then entered into a reactive period, a period that I call the Restoration. You know that, in France, "Restoration" refers to the period of the return of the King, in 1815, after the Revolution and Napoleon. We are in such a period. Today we see liberal capitalism and its political system, parlimentarianism, as the only natural and acceptable solutions. Every revolutionary idea is considered utopian and ultimately criminal. We are made to believe that the global spread of capitalism and what gets called "democracy" is the dream of all humanity. And also that the whole world wants the authority of the American Empire, and its military police, NATO.
In truth, our leaders and propagandists know very well that liberal capitalism is an inegalitarian regime, unjust, and unacceptable for the vast majority of humanity. And they know too that our "democracy" is an illusion: Where is the power of the people? Where is the political power for third world peasants, the European working class, the poor everywhere? We live in a contradiction: a brutal state of affairs, profoundly inegalitarian-where all existence is evaluated in terms of money alone-is presented to us as ideal. To justify their conservatism, the partisans of the established order cannot really call it ideal or wonderful. So instead, they have decided to say that all the rest is horrible. Sure, they say, we may not live in a condition of perfect Goodness. But we're lucky that we don't live in a condition of Evil. Our democracy is not perfect. But it's better than the bloody dictatorships. Capitalism is unjust. But it's not criminal like Stalinism. We let millions of Africans die of AIDS, but we don't make racist nationalist declarations like Milosevic. We kill Iraqis with our airplanes, but we don't cut their throats with machetes like they do in Rwanda, etc.
That's why the idea of Evil has become essential. No intellectual will actually defend the brutal power of money and the accompanying political disdain for the disenfranchised, or for manual laborers, but many agree to say that real Evil is elsewhere. Who indeed today would defend the Stalinist terror, the African genocides, the Latin American torturers? Nobody. It's there that the consensus concerning Evil is decisive. Under the pretext of not accepting Evil, we end up making believe that we have, if not the Good, at least the best possible state of affairs-even if this best is not so great. The refrain of "human rights" is nothing other than the ideology of modern liberal capitalism: We won't massacre you, we won't torture you in caves, so keep quiet and worship the golden calf. As for those who don't want to worship it or who don't believe in our superiority, there's always the American army and its European minions to make them be quiet.
Note that even Churchill said that democracy (that is to say the regime of liberal capitalism) was not at all the best of political regimes, but rather the least bad. Philosophy has always been critical of commonly held opinions and of what seems obvious. Accept what you've got because all the rest belongs to Evil is an obvious idea, which should therefore be immediately examined and critiqued. My personal position is the following: It is necessary to examine, in a detailed way, the contemporary theory of Evil, the ideology of human rights, the concept of democracy. It is necessary to show that nothing there leads in the direction of the real emancipation of humanity. It is necessary to reconstruct rights, in everyday life as in politics, of Truth and of the Good. Our ability to once again have real ideas and real projects depends on it.
Q: You say that, for liberal capitalism, evil is always elsewhere, the dreaded other, something that liberal capitalism believes it has thankfully banished and kept at bay. Yet isn't there also, in the contemporary imagination, a powerful idea of internal (social, psychological, domestic) evil? For decades, popular films and novels have been obsessed with the idea of evil lurking within (in the mind, in the house, in the neighborhood). The Timothy McVeigh affair in the US seems to have renewed political worries about "the evil within" (within each one of us, within the heart of the US). Just over a month ago, Andrea Yates, a Texas mother, systematically drowned her five children, prompting a national discussion about whether or not we are all capable of such evil. Philosophically, the new interest in Kant's conception of "radical evil" (and its Lacanian reinterpretation) would seem to fall in line with this idea of internal (rather than external, political) evil. Indeed, throughout most of the history of the West, it would seem that evil has been conceived as "internal," as something that morally haunts each one of us. So, my questions: In addition to the notion of "external" evil you propose, do you also recognize this notion of "internal" evil? Is this idea perennial, or does it tell us something peculiar about our historical moment? Do you see these two notions of evil (external and internal) as connected with one another in any way?
A: There is no contradiction between the affirmation that liberal capitalism and democracy are the Good and the affirmation that Evil is a permanent possibility for any individual. The second thesis (Evil inside of each of us) is simply the moral and religious complement to the first thesis, which is political (parliamentary capitalism as the Good). There is even a "logical" connection between the two affirmations, as follows:
1. History shows that democratic liberal capitalism is the only economic, political, and social regime that is truly humane, that truly conforms to the Good of humanity.
2. Every other political regime is a monstrous and bloody dictatorship, completely irrational. 3. The proof of this fact is that political regimes that have fought against liberalism and democracy all share the same face of Evil. Thus, Fascism and Communism, which appeared to be opposites, were actually very similar. They were both of the "totalitarian" family, which is the opposite of the democratic-capitalism family.
4. These monstrous regimes cannot produce a rational project, an idea of justice or something of that sort. Those who have led these regimes (Fascist or Communist) were necessarily pathological cases: One needs to study Hitler or Stalin with the tool of criminal psychology. As for those who have supported them, and there were thousands of them, they were alienated by the totalitarian mystique. They were finally directed by evil and destructive passions.
5. If thousands of people were able to participate in such ridiculous and criminal undertakings, it is obviously because the possibility of being fascinated by Evil exists in each of us. This possibility will be called "hatred of the Other." The conclusion will be, first, that we must support liberal democracy everywhere, and, second, that we must teach our children the ethical imperative of the love of the Other.
My position is obviously that this "reasoning" is purely illusory ideology. First, liberal capitalism is not at all the Good of humanity. Quite the contrary; it is the vehicle of savage, destructive nihilism. Second, the Communist revolutions of the 20th century have represented grandiose efforts to create a completely different historical and political universe. Politics is not the management of the power of the State. Politics is first the invention and the exercise of an absolutely new and concrete reality. Politics is the creation of thought. The Lenin who wrote What is to be Done?, the Trotsky who wrote History of the Russian Revolution, and the Mao Zedong who wrote On the Correct Handling of Contradictions Among the People are intellectual geniuses, comparable to Freud or Einstein. Certainly, the politics of emancipation, or egalitarian politics, have not, thus far, been able to resolve the problem of the power of the State. They have exercised a terror that is finally useless. But that should encourage us to pick up the question where they left it off, rather than to rally to the capitalist, imperialist enemy. Third, the category "totalitarianism" is intellectually very weak. There is, on the side of Communism, a universal desire for emancipation, while on the side of Fascism, there is a national and racial desire. These are two radically opposed projects. The war between the two has indeed been the war between the idea of a universal politics and the idea of racial domination. Fourth, the use of terror in revolutionary circumstances or civil war does not at all mean that the leaders and militants are insane, or that they express the possibility of internal Evil. Terror is a political tool that has been in use as long as human societies have existed. It should therefore be judged as a political tool, and not submitted to infantilizing moral judgment. It should be added that there are different types of terror. Our liberal countries know how to use it perfectly. The colossal American army exerts terrorist blackmail on a global scale, and prisons and executions exert an interior blackmail no less violent. Fifth, the only coherent theory of the subject (mine, I might add, in jest!) does not recognize in it any particular disposition toward Evil. Even Freud's death drive is not particularly tied to Evil. The death drive is a necessary component of sublimation and creation, just as it is of murder and suicide. As for the love of the Other, or, worse, "the recognition of the Other," these are nothing but Christian confections. There is never "the Other" as such. There are projects of thought, or of actions, on the basis of which we distinguish between those who are friends, those who are enemies, and those who can be considered neutral. The question of knowing how to treat enemies or neutrals depends entirely on the project concerned, the thought that constitutes it, and the concrete circumstances (is the project in an escalating phase? is it very dangerous? etc.).
Q: Given what you have said, one might expect you to turn the tables, to assert that, contrary to the prevailing view, liberal capitalism is itself "evil." But you don't do that. Instead, you offer an alternative theory of evil.
A: Were I to reverse the tables, as you suggest, I would leave everything in place. To say that liberal capitalism is Evil would not change anything. I would still be subordinating politics to humanistic and Christian morality: I would say: "Let's fight against Evil." But I've had enough of "fighting against," of "deconstructing," of "surpassing," of "putting an end to," etc. My philosophy desires affirmation. I want to fight for; I want to know what I have for the Good and to put it to work. I refuse to be content with the "least evil." It is very fashionable right now to be modest, not to think big. Grandeur is considered a metaphysical evil. Me, I am for grandeur, I am for heroism. I am for the affirmation of the thought and the deed.
Certainly, it is necessary to propose another theory of Evil. But that is to say, essentially, another theory of the Good. Evil would be to compromise on the question of the Good. To give up is always Evil. To renounce liberation politics, renounce a passionate love, renounce an artistic creation.... Evil is the moment when I lack the strength to be true to the Good that compels me.
The real question underlying the question of Evil is the following: What is the Good? All my philosophy strives to answer this question. For complex reasons, I give the Good the name "Truths" (in the plural). A Truth is a concrete process that starts by an upheaval (an encounter, a general revolt, a surprising new invention), and develops as fidelity to the novelty thus experimented. A Truth is the subjective development of that which is at once both new and universal. New: that which is unforeseen by the order of creation. Universal: that which can interest, rightly, every human individual, according to his pure humanity (which I call his generic humanity). To become a subject (and not remain a simple human animal), is to participate in the coming into being of a universal novelty. That requires effort, endurance, and sometimes self-denial. I often say it's necessary to be the "activist" of a Truth. There is Evil each time egoism leads to the renunciation of a Truth. Then, one is de-subjectivized. Egoistic self-interest carries one away, risking the interruption of the whole progress of a truth (and thus of the Good).
One can, then, define Evil in one phrase: Evil is the interruption of a truth by the pressure of particular or individual interests. Even the case that you cite above-the woman who drowns her five infants-springs from this vision of things. The debate you raise is absurd: Obviously, everyone is "capable" of everything. One has seen everywhere good people becoming torturers, or peaceful citizens brutalizing people over insignificant things. This consideration is of no interest. It only reminds us that the human species is an animal species, governed by the lowest interests, of which moreover capitalist profit is merely the legal formalization. All that is short of Good and Evil, it is nothing more than the rule of impulses. The question of Evil starts when one can say what Good one is talking about. I am convinced that the murder of five children is actually tied to a brutal renunciation of the Good, in the form of a love process. In any case, that's the only case in which it makes any sense to speak of Evil. The myth that one thinks of is Medea. She also kills her children. And it's not Evil, in the tragic sense of the term, because this murder is entirely dependent on her love for Jason.
Q: In your view, then, is the realm of the human animal simply beneath good and evil (such that acts of torture, for example, are not properly "evil")? Does one not have a moral obligation to become a subject (instead of remaining a human animal)? And, thus, is one's failure to become a subject not a moral failure?
A: The question actually combines two common conceptions of morality (and thus of the distinction between Good and Evil): the "natural" conception, derived from Rousseau, and the "formal" conception, derived from Kant:
1. There is a "natural" morality, things that are obviously bad in the opinion of any human consciousness. Accordingly, Evil exists for the human animal. The example given is that of torture.
2. There is a "formal" morality, a universal obligation that is above any particular situation. And therefore there is a universal Evil, which, too, is independent of circumstances. The example given is that of the obligation to become a subject, to place oneself above the basic human animalism. It is bad to refuse to become a fully human subject, no matter what might be the particular terms of this becoming.
I must, of course, specify that I am absolutely opposed to these two conceptions. I maintain that the natural state of the human animal has nothing to do with Good or Evil. And I maintain that the kind of formal moral obligation described in Kant's categorical imperative does not actually exist. Take the example of torture. In a civilization as sophisticated as the Roman Empire, not only is torture not considered an Evil, it is actually appreciated as a spectacle. In arenas, tigers devour people; they are burned alive; the audience rejoices to see combatants cut each other's throats. How, then, could we think that torture is Evil for every human animal? Aren't we the same animal as Seneca or Marcus Aurelius? I should add that the armed forces of my country, France, with the approval of the governments of the era and the majority of public opinion, tortured all the prisoners during the Algerian War. The refusal of torture is a historical and cultural phenomenon, not at all a natural one. In a general way, the human animal knows cruelty as well as it knows pity; the one is just as natural as the other, and neither one has anything to do with Good or Evil. One knows of crucial situations where cruelty is necessary and useful, and of other situations where pity is nothing but a form of contempt for others. You won't find anything in the structure of the human animal on which to base the concept of Evil, nor, moreover, that of the Good.
But the formal solution isn't any better. Indeed, the obligation to be a subject doesn't have any meaning, for the following reason: The possibility of becoming a subject does not depend on us, but on that which occurs in circumstances that are always singular. The distinction between Good and Evil already supposes a subject, and thus can't apply to it. It's always for a subject, not a pre-subjectivized human animal, that Evil is possible. For example, if, during the occupation of France by the Nazis, I join the Resistance, I become a subject of History in the making. From the inside of this subjectivization, I can tell what is Evil (to betray my comrades, to collaborate with the Nazis, etc.). I can also decide what is Good outside of the habitual norms. Thus the writer Marguerite Duras has recounted how, for reasons tied to the resistance to the Nazis, she participated in acts of torture against traitors. The whole distinction between Good and Evil arises from inside a becoming-subject, and varies with this becoming (which I myself call philosophy, the becoming of a Truth). To summarize: There is no natural definition of Evil; Evil is always that which, in a particular situation, tends to weaken or destroy a subject. And the conception of Evil is thus entirely dependent on the events from which a subject constitutes itself. It is the subject who prescribes what Evil is, not a natural idea of Evil that defines what a "moral" subject is. There is also no formal imperative from which to define Evil, even negatively. In fact, all imperatives presume that the subject of the imperative is already constituted, and in specific circumstances. And thus there can be no imperative to become a subject, except as an absolutely vacuous statement. That is also why there is no general form of Evil, because Evil does not exist except as a judgment made, by a subject, on a situation, and on the consequences of his own actions in this situation. So the same act (to kill, for example) may be Evil in a certain subjective context, and a necessity of the Good in another.
I must particularly insist that the formula "respect for the Other" has nothing to do with any serious definition of Good and Evil. What does "respect for the Other" mean when one is at war against an enemy, when one is brutally left by a woman for someone else, when one must judge the works of a mediocre "artist," when science is faced with obscurantist sects, etc.? Very often, it is the "respect for Others" that is injurious, that is Evil. Especially when it is resistance against others, or even hatred of others, that drives a subjectively just action. And it's always in these kinds of circumstances (violent conflicts, brutal changes, passionate loves, artistic creations) that the question of Evil can be truly asked for a subject. Evil does not exist either as nature or as law. It exists, and varies, in the singular becoming of the True.
Q: In response to an earlier question, you remarked that "it is necessary to reconstruct rights, in everyday life as in politics, of Truth and of the Good." Can you say more about how the ethic of truths might get mobilized in practical terms, and how this might constitute an alternative to the current conception of "human rights"?
A: Take the nearest example: the terrible criminal attack in New York in September, with its thousands of casualties. If you reason in terms of the morality of human rights, you say, with President Bush: "These are terrorist criminals. This is a struggle of Good against Evil." But are Bush's policies, in Palestine or Iraq for example, really Good? And, in saying that these people are Evil, or that they don't respect human rights, do we understand anything about the mindset of those who killed themselves with their bombs? Isn't there a lot of despair and violence in the world caused by the fact that the politics of Western powers, and of the American government in particular, are utterly destitute of ingenuity and value? In the face of crimes, terrible crimes, we should think and act according to concrete political Truths, rather than be guided by the stereotypes of any sort of morality. The whole world understands that the real question is the following: Why do the politics of the Western powers, of NATO, of Europe and the USA, appear completely unjust to two out of three inhabitants of the planet? Why are five thousand American deaths considered a cause for war, while five hundred thousand dead in Rwanda and a projected ten million dead from AIDS in Africa do not, in our opinion, merit outrage? Why is the bombardment of civilians in the US Evil, while the bombardment of Baghdad or Belgrade today, or that of Hanoi or Panama in the past, is Good? The ethic of Truths that I propose proceeds from concrete situations, rather than from an abstract right, or a spectacular Evil. The whole world understands these situations, and the whole world can act in a disinterested fashion prompted by the injustice of these situations. Evil in politics is easy to see: It's absolute inequality with respect to life, wealth, power. Good is equality. How long can we accept the fact that what is needed for running water, schools, hospitals, and food enough for all humanity is a sum that corresponds to the amount spent by wealthy Western countries on perfume in a year? This is not a question of human rights and morality. It is a question of the fundamental battle for equality of all people, against the law of profit, whether personal or national.
In the same way, the Good in artistic action is the invention of new forms that convey the meaning of the world. The Good in science is the audacity of free thought, the joy of exact knowledge. Likewise, the Good in love is the understanding of what difference really is, of what it is to construct a world when one is two, and not one. And Evil, then, is academic rehearsals or "cultural" commerce; it is knowledge in the service of capitalist profit; it is sexuality considered as merely a technique of pleasure (jouissance). I'll repeat it: All the world shares these experiences. The ethics of Truth always returns, in precise circumstances, to fighting for the True against the four fundamental forms of Evil: obscurantism, commercial academicism, the politics of profit and inequality, and sexual barbarism.
quinta-feira, 13 de novembro de 2008
A luta de classes sob a crise estrutura do capital como Significante-Mestre (desculpe o lacanês, mas não me conti)
Como entender um projeto de emancipação hoje, se ainda pensamos nisso? Vamos sair de alguns pressupostos teóricos para depois adentrar realmente no assunto. Primeiramente, concordo com Ernesto Laclau: a sociedade não existe. A Não-sociedade é organizada a partir de antagonismo não-resolvível. Dessa forma, entender a sociedade como um sistema fechado é impossível. A aparência de que ela é um sistema fechado é produzida por uma fantasia ideológica que cria a ilusão de completude e possibilita a reconciliação entre uma origem mítica e uma futura utopia ideal ou, a noção de emancipação.
As políticas emancipatórias expõem essa fantasia e torna “transparente” o antagonismo central (imsimbolízável) que representa a completude da sociedade: a divisão social do trabalho historicamente existente que, de forma nenhuma, uma condição ontológica do ser social. Entretanto a questão continua: é possível transcender (ou atravessar em lacanês) essa fantasia?
Para Laclau o sujeito emancipatório é o lumpenproletariado que é um “outsider absoluto”. De acordo com Laclau, contra Marx que concebeu as partes inseridas na produção capitalista, a expulsão do lumpenproletariado desse processo é a condição que possibilita uma pura interioridade onde a história possui uma estrutura coerente. Para ele o lumpen é o resto que possibilita estruturar uma luta emancipatória sendo um sujeito antagonista. Nesse sentido, para Laclau o Significante-Mestre que deve estruturar as lutas emancipatórias é um significante Vazio que possibilite uma multiplicidade de entidades-substâncias que adentrem esse significante Vazio e possibilitem uma mudança radical nas coordenadas simbólicas hegemônicas.
Em contrate com Laclau, Slavoj Zizek coloca que o sujeito emancipatório par excellente é, de fato, o proletariado. Isso porque o proletariado é um não-grupo no edifício social existente. O proletariado existe como um grupo contraditório que é, simultaneamente, incluído e excluído da sociedade. É incluído no sentido que é requerido na ordem dominante de produção, mas é excluído no senso de que a sociedade não pode lhe dar um lugar próprio. O lumpen, ao contrário, é negado de historicidade das relações de produção. É um grupo que é marginalizado social e economicamente das relações de produção capitalistas sendo, dessa forma, um elemento que flutua livremente por qualquer estrato ou classe social. Dessa forma, o lumpen é um grupo que pode se apropriado tanto pelo populismo de um regime opressivo ou pelo populismo “do povo”. Nesse ponto Zizek continua sua crítica apontando que Laclau, ao reduzir lutas particulares como um “universal equivalente” tem como resultado não ver que essas lutas fazem parte de uma contingência política em busca pela hegemonia. Zizek aponta, em contraste, que o sujeito emancipatório pré-existe a luta emancipatória e, nesse sentido, só consegue fazer parte da luta emancipatória quando se integra na ordem simbólica. Aprofundando um pouco mais essa Idéia, Zizek considera que esse sujeito emancipatório tem o caráter de um objeto pequeno a (significante-Mestre): aqui seu caráter imsimbolizável por estar estruturado a partir de um antagonismo fundamental, o Real do capital, a luta de classes. Esse Significante tem a funcionalidade de trazer unidade ao processo de fragmentação sobredeterminando a articulação das lutas emancipatórias. O que falta radicalizar no pensamento do Zizek é historicizar a luta de classes diante na nova morfologia da classe-que-vive-do-trabalho sob a crise estrutural do metabolismo global do capital. Mas isso acho que será assunto para outro post...
As políticas emancipatórias expõem essa fantasia e torna “transparente” o antagonismo central (imsimbolízável) que representa a completude da sociedade: a divisão social do trabalho historicamente existente que, de forma nenhuma, uma condição ontológica do ser social. Entretanto a questão continua: é possível transcender (ou atravessar em lacanês) essa fantasia?
Para Laclau o sujeito emancipatório é o lumpenproletariado que é um “outsider absoluto”. De acordo com Laclau, contra Marx que concebeu as partes inseridas na produção capitalista, a expulsão do lumpenproletariado desse processo é a condição que possibilita uma pura interioridade onde a história possui uma estrutura coerente. Para ele o lumpen é o resto que possibilita estruturar uma luta emancipatória sendo um sujeito antagonista. Nesse sentido, para Laclau o Significante-Mestre que deve estruturar as lutas emancipatórias é um significante Vazio que possibilite uma multiplicidade de entidades-substâncias que adentrem esse significante Vazio e possibilitem uma mudança radical nas coordenadas simbólicas hegemônicas.
Em contrate com Laclau, Slavoj Zizek coloca que o sujeito emancipatório par excellente é, de fato, o proletariado. Isso porque o proletariado é um não-grupo no edifício social existente. O proletariado existe como um grupo contraditório que é, simultaneamente, incluído e excluído da sociedade. É incluído no sentido que é requerido na ordem dominante de produção, mas é excluído no senso de que a sociedade não pode lhe dar um lugar próprio. O lumpen, ao contrário, é negado de historicidade das relações de produção. É um grupo que é marginalizado social e economicamente das relações de produção capitalistas sendo, dessa forma, um elemento que flutua livremente por qualquer estrato ou classe social. Dessa forma, o lumpen é um grupo que pode se apropriado tanto pelo populismo de um regime opressivo ou pelo populismo “do povo”. Nesse ponto Zizek continua sua crítica apontando que Laclau, ao reduzir lutas particulares como um “universal equivalente” tem como resultado não ver que essas lutas fazem parte de uma contingência política em busca pela hegemonia. Zizek aponta, em contraste, que o sujeito emancipatório pré-existe a luta emancipatória e, nesse sentido, só consegue fazer parte da luta emancipatória quando se integra na ordem simbólica. Aprofundando um pouco mais essa Idéia, Zizek considera que esse sujeito emancipatório tem o caráter de um objeto pequeno a (significante-Mestre): aqui seu caráter imsimbolizável por estar estruturado a partir de um antagonismo fundamental, o Real do capital, a luta de classes. Esse Significante tem a funcionalidade de trazer unidade ao processo de fragmentação sobredeterminando a articulação das lutas emancipatórias. O que falta radicalizar no pensamento do Zizek é historicizar a luta de classes diante na nova morfologia da classe-que-vive-do-trabalho sob a crise estrutural do metabolismo global do capital. Mas isso acho que será assunto para outro post...
quarta-feira, 5 de novembro de 2008
Para Zizek, crise tem paralelos com 11 de Setembro e revela a fragilidade e as contradições do capitalismo
O filósofo esloveno Slavoj Zizek esteve no Brasil em outubro (Rio, Salvador, São Paulo) para lançar "A visão em paralaxe" (Boitempo) em que reflete sobre questões atuais buscando revitalizar a dialética de Hegel e destaca a importância da psicanálise no reino das ciências cognitivas. Nesta entrevista, conta quais são suas impressões do país e analisa os novos dilemas da crise financeira internacional, a qual, em sua opinião, tem paralelos profundos com o choque causado pelo 11 de Setembro. Diz que em Marx não há como encontrar respostas para a crise. Segundo Zizek, é possível que as partes mais dinâmicas da sociedade no mundo hoje não estejam evoluindo em direção a democracias.
O GLOBO: Como foi sua passagem pelo Brasil?
SLAVOJ ZIZEK: Para mim, a cidade é São Paulo. Embora o usual seja dizer que a Bahia é o máximo, com uma imagem relacionada ao carnaval e ao prazer de viver, prefiro São Paulo. Gosto de cidades grandes, vidas orsanizadas, espírito de trabalho, disciplina. Eu não poderia me imaginar morando na Bahia. Mas gosto também da estrutura não-rtransparente da cidade de São Paulo, ao contrário do que é Nova York, com suas ruas definidas com números. Mesmo no Rio, a estrutura é mais transparente. São Paulo é mais caótica. Agora, tem algo de que gosto no Rio e também na Bahia. E isso me fascina no Brasil: vocês não escodem suas favelas. Um quarteirão pode ser muito rico e, logo depoi!?, vem a favela. O que faz uma cidade bonita não são as praias bonitas etc; eu gosto do caos, do caos vibrante. Veja, em Nova York não suporto quando entramos numa cafeteria e há esse ambiente de normalização: um garçom se apresenta, diz que está nos servindo, pergunta se tivemos um bom dia e se estamos bem. Não gosto dessas amizades pseudo-ritualizadas. Agora, um evento mítico para mim a respeito do Brasil é o de Canudos, na Bahia, cuja história conheci através do livro de Mario Vargas Llosa ("A guerra do fim do mundo"). Foi uma comunidade que conseguiu sobreviver no meio do nada por muito mais tempo que a centena de comunidades de socialistas utópicos que se multiplicavam nos EUA na época. Há algo miraculoso com Canudos.
É um tipo de auto-suficiência insustentável hoje, não?
ZIZEK: Não digo que devemos transformar o mundo numa grande Canudos, mas faz pensar e em questões interessantes. Na questão alimentar, é impossível hoje a auto-suficiência. Quando a há necessidade de ajuda alimentar, o dinheiro custa a chegar. As grandes potências já reconheceram sua falência nisso. Na questão ecológica, muita gente fala de aquecimento global, é um blá-blá-blá. Li recentemente que milhares de pessoas morrem na Inglaterra esperando por operações de câncer. Mas agora temos uma crise financeira e não houve problema em se obterem bilhões de dólares em poucos dias. É a força real do capital. Há algo irônico nisso: usa-se o dinheiro para restabelecer crença e confiança. É sugestão, parece mágico. Aos poucos, vemos as limitações do sistema.
Vê paralelo entre o impacto desta crise com o que se viu no pós-11 de Setembro? No primeiro caso, a crise chegou de fora; agora inicia-se dentro...
ZIZEK: Paralelos profundos. O 11 de Setembro foi importante por suas dimensões ideológicas. Agora, há um choque equivalente. Primeiramente, os EUA sempre gostaram de se ver como uma ilha de segurança. Além disso, simbolicamente o 11 de Setembro representou o fim da utopia. Não da utopia socialista ou relacionada ao sistema de proteção social, mas a utopia de Fukuyama, que decretara o fim da história, depois da queda do Muro de Berlim, num período de expansão do capitalismo liberal. Foi o fim dessa era feliz. Voltou-se à História, aos conflitos locais entre os povos. Se o 11 de Setembro causou um choque de cunho mais político e militar, agora atinge-se a utopia do capitalismo liberal . Pode-se até superestimar as atuais consequências da crise - acho que não haverá uma gigantesca recessão -mas há um choque nos aspectos utópicos da globalização econômica. E repare que a linguagem usada pelo presidente Bush é praticamente a mesma que usou depois de 11 de Setembro. "Nosso estilo de vida está em perigo, devemos esquecer nossas difenreças políticas, nos unir todos pelo país". Um tanto irônico.
Obama repete o discurso?
ZIZEK: Ele fez algo certo num debate com McCain, quando este disse que era hora de esquecer diferenças políticas. Obama disse não, que aquela era a hora do debate. O que devemos fazer? Esta é a verdadeira questão para mim, o verdadeiro debate político? como proceder para lidar com as limitações do sistema. Isso se relaciona a uma visão politica. Sabemos, também, que os modelos conhecidos para agir no mercado não são a verdadeira alternativa. Nem o antigo socialismo de intervenção direta, nem algo mais latino-americano, como uma economia de Estado populista, como a de Hugo Chávez. Talvez algo diferente esteja ocorrendo na China. É preciso encontrar novas formas coletivas de ação. Há decisões básicas que não podem ser deixadas nas mãos do mercado, mas meu ponto é: na verdade muitas delas não estão nas mãos do mercado. Há uma hipocrisia nos paises desenvolvidos que é preciso confrontar. Eles pregam uma economia liberal para os paises de terceiro mundo, mas violam as regras o tempo todo. Os EUA financiam seus produtores de algodão para que este não seja comprado na África, como no Mali, onde a produção é mais barata e os fazendeiros moram nas favelas. O subsídio americano a esses agricultores nos EUA é maior que o PIB do Mali. Então, a crise nos deixa com o pé atrás não apenas em relação ao livre mercado, mas de certa forma nunca houve livre mercado. Veja a União Européia: metade do seu orçamento é para subsidiar agricultores. Os limites estão ficando claros, e temos um grande desafio quanto ao que fazer.
O momento é, portanto, de grande indefinição.
ZIZEK: Isso é outra coisa que me choca. Veja, cada vez mais o capitalismo tem dificuldade de trabalhar no nível da propriedade intelectual, para definir quais são os direitos legais desta. Na internet, há algo nos produtos intelectuais que resiste à propriedade privada. A economia digital tem um fundo socialista; os produtos foram artificialmente adaptados na fórmula capitalista, mas não funciona muito bem. Quero dizer que vivemos em tempos interessantes, em que há grandes confusões. Agora, com esta crise, alguns dos meus amigos cairam na armadilha de dizer que temos a chance de voltar à economia real, e sair da especulação virtual. Ora, não há "economia real". Trata-se de uma maravilhosa contradição. Um dos slogans desde setembro é que devemos abandonar a especulação Irreal. Também se diz que é preciso salvar os bancos, sob o risco de uma gravíssima crise. É preciso salvar o banco porque o dinheiro é real. Devemos superar essas metáforas ingênuas. O fato é que há um mecanismo irracional em jogo. É preciso não só acreditar, como acreditar que os outros acredi- tam. Talvez a melhor solução seja não fazer nada. Se os governos põem tanto dinheiro, então a mensagem é que o problema é mesmo profundo. Quanto mais se tenta resolver o roblema, mais pânico se gera. tudo frágil, baseado em confiança. Isso é algo louco sobre o capitalismo.
Está se voltando a Marx...
ZIZEK: E ainda mais a Keynes. No meu caso, posso dizer que Marx não tem repostas, mesmo que tenha insights do mecanismo do capitalismo. Para Marx, a mais importante fonte de valor é o trabalho. Mas ele próprio disse algumas vezes que, com o desenvolvimento tecnológico, o fator chave na produção deixaria de ser o trabalho mecânico. O conhecimento e as especialidades passariam a ter outra importância. Estamos neste nível hoje. Marx não é a resposta, mas devemos repetir, hoje, a mesma pergunta que fez em relação ao capitalismo do século XIX. Temos algumas tentativas teóncas, como no caso de Antonio Negri ou Giddens, mas é jornalismo teorético. Hoje temos um bom argumento a favor do capitalismo. Em geral, diz-se que leva a alguma liberdade, mesmo com periodos de ditadura, como no Chile. Mas não concordo com quem diz que, com o desenvolvimento, daqui a 20 anos a China vai se democratizar. Algo muito dinâmico está se produzindo lá, genuinamente novo. Talvez o dinamismo da sociedade não esteja se movendo em direção à democracia. Isso deveria nos preocupar. Vejamos a VenezueIa. Não sou pró-Chávez, mas ele foi o primeiro que tentou mobilizar politicamente os excluidos nas favelas. Como era o pais antes de Chávez? Era melhor para os excluidos?
O exercício de paralaxe, uma certa desconstrução do olhar, é pois fundamental.
ZIZEK: Sim, mas vamos esquecer agora a politica. Meu coração está na primeira parte do livro ("A visão em paralaxe''). Busco revitalizar a dialética de Hegel. Na segunda parte tento salvar a psicanálise do ataque das ciências cognitivas, e mostrar como podem colaborar entre si. Sou a favor de Hegel mesmo contra Marx. A visão de Marx sobre Hegel foi um .r equívoco. Hegel é capaz de nos o oferecer respostas mais proe fundas. Não apenas políticamente. Precisamos de filosofia. Hoje, os cientistas conseguem conectar diretamente o neurônio a um computador, que, assim, permite que se faça movimentos apenas com o pensamento. Modifica-se a percepção do que é ser humano. Nisso Fukuyama estava certo, ao falar sobre as transformações da biogenética. A liberdade não está perdida, mas quando nos tornamos tão mestres de nós mesmos, algo na liberdade se modifica. Devemos pensar muito a respeito.
O que seria a "merda divina" de que fala no livro?
ZIZEK: E irônico, ligado a Martinho Lutero. Para ele, o ser humano é o pedaço de merda que caiu do ânus de Deus. É a mais horrivel definição do ser humano. Não é fácil explicar aqui, mas se relaciona ao fato de que quando você aceita que está totalmente abandonado por Deus, está na posição de Cristo na cruz, que pergunta "pai, porque me abandonaste?". Algo inacreditável aconteceu ali. Todos fomos abandonados, inclusive Deus. Por um momento, Deus também se tornou ateu. Ficamos sós, a comunidade dos crentes sem Deus. Sou totalmente ateu, mas acho que no cristianismo encontramos certa lógica coletiva, uma lógica de emancipação coletiva que pe absolutamente crucial e preciosa, hoje mais do que nunca.
O GLOBO: Como foi sua passagem pelo Brasil?
SLAVOJ ZIZEK: Para mim, a cidade é São Paulo. Embora o usual seja dizer que a Bahia é o máximo, com uma imagem relacionada ao carnaval e ao prazer de viver, prefiro São Paulo. Gosto de cidades grandes, vidas orsanizadas, espírito de trabalho, disciplina. Eu não poderia me imaginar morando na Bahia. Mas gosto também da estrutura não-rtransparente da cidade de São Paulo, ao contrário do que é Nova York, com suas ruas definidas com números. Mesmo no Rio, a estrutura é mais transparente. São Paulo é mais caótica. Agora, tem algo de que gosto no Rio e também na Bahia. E isso me fascina no Brasil: vocês não escodem suas favelas. Um quarteirão pode ser muito rico e, logo depoi!?, vem a favela. O que faz uma cidade bonita não são as praias bonitas etc; eu gosto do caos, do caos vibrante. Veja, em Nova York não suporto quando entramos numa cafeteria e há esse ambiente de normalização: um garçom se apresenta, diz que está nos servindo, pergunta se tivemos um bom dia e se estamos bem. Não gosto dessas amizades pseudo-ritualizadas. Agora, um evento mítico para mim a respeito do Brasil é o de Canudos, na Bahia, cuja história conheci através do livro de Mario Vargas Llosa ("A guerra do fim do mundo"). Foi uma comunidade que conseguiu sobreviver no meio do nada por muito mais tempo que a centena de comunidades de socialistas utópicos que se multiplicavam nos EUA na época. Há algo miraculoso com Canudos.
É um tipo de auto-suficiência insustentável hoje, não?
ZIZEK: Não digo que devemos transformar o mundo numa grande Canudos, mas faz pensar e em questões interessantes. Na questão alimentar, é impossível hoje a auto-suficiência. Quando a há necessidade de ajuda alimentar, o dinheiro custa a chegar. As grandes potências já reconheceram sua falência nisso. Na questão ecológica, muita gente fala de aquecimento global, é um blá-blá-blá. Li recentemente que milhares de pessoas morrem na Inglaterra esperando por operações de câncer. Mas agora temos uma crise financeira e não houve problema em se obterem bilhões de dólares em poucos dias. É a força real do capital. Há algo irônico nisso: usa-se o dinheiro para restabelecer crença e confiança. É sugestão, parece mágico. Aos poucos, vemos as limitações do sistema.
Vê paralelo entre o impacto desta crise com o que se viu no pós-11 de Setembro? No primeiro caso, a crise chegou de fora; agora inicia-se dentro...
ZIZEK: Paralelos profundos. O 11 de Setembro foi importante por suas dimensões ideológicas. Agora, há um choque equivalente. Primeiramente, os EUA sempre gostaram de se ver como uma ilha de segurança. Além disso, simbolicamente o 11 de Setembro representou o fim da utopia. Não da utopia socialista ou relacionada ao sistema de proteção social, mas a utopia de Fukuyama, que decretara o fim da história, depois da queda do Muro de Berlim, num período de expansão do capitalismo liberal. Foi o fim dessa era feliz. Voltou-se à História, aos conflitos locais entre os povos. Se o 11 de Setembro causou um choque de cunho mais político e militar, agora atinge-se a utopia do capitalismo liberal . Pode-se até superestimar as atuais consequências da crise - acho que não haverá uma gigantesca recessão -mas há um choque nos aspectos utópicos da globalização econômica. E repare que a linguagem usada pelo presidente Bush é praticamente a mesma que usou depois de 11 de Setembro. "Nosso estilo de vida está em perigo, devemos esquecer nossas difenreças políticas, nos unir todos pelo país". Um tanto irônico.
Obama repete o discurso?
ZIZEK: Ele fez algo certo num debate com McCain, quando este disse que era hora de esquecer diferenças políticas. Obama disse não, que aquela era a hora do debate. O que devemos fazer? Esta é a verdadeira questão para mim, o verdadeiro debate político? como proceder para lidar com as limitações do sistema. Isso se relaciona a uma visão politica. Sabemos, também, que os modelos conhecidos para agir no mercado não são a verdadeira alternativa. Nem o antigo socialismo de intervenção direta, nem algo mais latino-americano, como uma economia de Estado populista, como a de Hugo Chávez. Talvez algo diferente esteja ocorrendo na China. É preciso encontrar novas formas coletivas de ação. Há decisões básicas que não podem ser deixadas nas mãos do mercado, mas meu ponto é: na verdade muitas delas não estão nas mãos do mercado. Há uma hipocrisia nos paises desenvolvidos que é preciso confrontar. Eles pregam uma economia liberal para os paises de terceiro mundo, mas violam as regras o tempo todo. Os EUA financiam seus produtores de algodão para que este não seja comprado na África, como no Mali, onde a produção é mais barata e os fazendeiros moram nas favelas. O subsídio americano a esses agricultores nos EUA é maior que o PIB do Mali. Então, a crise nos deixa com o pé atrás não apenas em relação ao livre mercado, mas de certa forma nunca houve livre mercado. Veja a União Européia: metade do seu orçamento é para subsidiar agricultores. Os limites estão ficando claros, e temos um grande desafio quanto ao que fazer.
O momento é, portanto, de grande indefinição.
ZIZEK: Isso é outra coisa que me choca. Veja, cada vez mais o capitalismo tem dificuldade de trabalhar no nível da propriedade intelectual, para definir quais são os direitos legais desta. Na internet, há algo nos produtos intelectuais que resiste à propriedade privada. A economia digital tem um fundo socialista; os produtos foram artificialmente adaptados na fórmula capitalista, mas não funciona muito bem. Quero dizer que vivemos em tempos interessantes, em que há grandes confusões. Agora, com esta crise, alguns dos meus amigos cairam na armadilha de dizer que temos a chance de voltar à economia real, e sair da especulação virtual. Ora, não há "economia real". Trata-se de uma maravilhosa contradição. Um dos slogans desde setembro é que devemos abandonar a especulação Irreal. Também se diz que é preciso salvar os bancos, sob o risco de uma gravíssima crise. É preciso salvar o banco porque o dinheiro é real. Devemos superar essas metáforas ingênuas. O fato é que há um mecanismo irracional em jogo. É preciso não só acreditar, como acreditar que os outros acredi- tam. Talvez a melhor solução seja não fazer nada. Se os governos põem tanto dinheiro, então a mensagem é que o problema é mesmo profundo. Quanto mais se tenta resolver o roblema, mais pânico se gera. tudo frágil, baseado em confiança. Isso é algo louco sobre o capitalismo.
Está se voltando a Marx...
ZIZEK: E ainda mais a Keynes. No meu caso, posso dizer que Marx não tem repostas, mesmo que tenha insights do mecanismo do capitalismo. Para Marx, a mais importante fonte de valor é o trabalho. Mas ele próprio disse algumas vezes que, com o desenvolvimento tecnológico, o fator chave na produção deixaria de ser o trabalho mecânico. O conhecimento e as especialidades passariam a ter outra importância. Estamos neste nível hoje. Marx não é a resposta, mas devemos repetir, hoje, a mesma pergunta que fez em relação ao capitalismo do século XIX. Temos algumas tentativas teóncas, como no caso de Antonio Negri ou Giddens, mas é jornalismo teorético. Hoje temos um bom argumento a favor do capitalismo. Em geral, diz-se que leva a alguma liberdade, mesmo com periodos de ditadura, como no Chile. Mas não concordo com quem diz que, com o desenvolvimento, daqui a 20 anos a China vai se democratizar. Algo muito dinâmico está se produzindo lá, genuinamente novo. Talvez o dinamismo da sociedade não esteja se movendo em direção à democracia. Isso deveria nos preocupar. Vejamos a VenezueIa. Não sou pró-Chávez, mas ele foi o primeiro que tentou mobilizar politicamente os excluidos nas favelas. Como era o pais antes de Chávez? Era melhor para os excluidos?
O exercício de paralaxe, uma certa desconstrução do olhar, é pois fundamental.
ZIZEK: Sim, mas vamos esquecer agora a politica. Meu coração está na primeira parte do livro ("A visão em paralaxe''). Busco revitalizar a dialética de Hegel. Na segunda parte tento salvar a psicanálise do ataque das ciências cognitivas, e mostrar como podem colaborar entre si. Sou a favor de Hegel mesmo contra Marx. A visão de Marx sobre Hegel foi um .r equívoco. Hegel é capaz de nos o oferecer respostas mais proe fundas. Não apenas políticamente. Precisamos de filosofia. Hoje, os cientistas conseguem conectar diretamente o neurônio a um computador, que, assim, permite que se faça movimentos apenas com o pensamento. Modifica-se a percepção do que é ser humano. Nisso Fukuyama estava certo, ao falar sobre as transformações da biogenética. A liberdade não está perdida, mas quando nos tornamos tão mestres de nós mesmos, algo na liberdade se modifica. Devemos pensar muito a respeito.
O que seria a "merda divina" de que fala no livro?
ZIZEK: E irônico, ligado a Martinho Lutero. Para ele, o ser humano é o pedaço de merda que caiu do ânus de Deus. É a mais horrivel definição do ser humano. Não é fácil explicar aqui, mas se relaciona ao fato de que quando você aceita que está totalmente abandonado por Deus, está na posição de Cristo na cruz, que pergunta "pai, porque me abandonaste?". Algo inacreditável aconteceu ali. Todos fomos abandonados, inclusive Deus. Por um momento, Deus também se tornou ateu. Ficamos sós, a comunidade dos crentes sem Deus. Sou totalmente ateu, mas acho que no cristianismo encontramos certa lógica coletiva, uma lógica de emancipação coletiva que pe absolutamente crucial e preciosa, hoje mais do que nunca.
segunda-feira, 3 de novembro de 2008
Observações sobre o desastre econômico
Os desdobramentos da crise financeira são ilustração exemplar da explicação feita por Marx do capitalismo
1. A partir dos anos 1970, os EUA introduziram paulatinamente uma série de alterações no funcionamento do sistema econômico internacional que, na prática, subverteu o modelo anterior firmado no pós-guerra. As políticas anticíclicas que permitiram a expansão conhecida como os “30 anos dourados” foram desmontadas uma a uma.
Os excedentes monetários, até então sob o controle parcial dos Estados, passaram a ser geridos pelo mercado, com a concomitante redução da participação dos salários na renda nacional e dos benefícios conquistados como direitos sociais. O controle de capitais pelos Estados nacionais, outra peça-chave do arcabouço anterior, cedeu lugar à livre circulação inclusive de capitais de curto prazo, propiciando os movimentos especulativos que moldam atualmente o mercado de dinheiro.
Ao longo desse processo, os Estados passaram por alterações substanciais não só com a restrição de sua participação direta como agente econômico, mas sobretudo com a redução significativa de suas atividades de planejamento e regulação.
2. Com o fim da situação de exceção, da assim chamada “regulação keynesiana”, o capitalismo retornou ao seu leito habitual. O ímpeto e a dinâmica econômica voltaram a ser ditados pelo mercado, e as crises a se suceder com precisão matemática.
Para um leitor de Karl Marx os delineamentos e desdobramentos da atual crise bancária e financeira afiguram-se como uma ilustração exemplar e quase didática de sua explicação do capitalismo. A teoria do valor e o fetichismo da mercadoria expostos em "O Capital" ressaltam que, apesar de sua origem como uma mercadoria específica, como equivalente geral, o dinheiro tende a adquirir autonomia no decorrer do processo em que salta da condição de mero mediador das trocas alçando-se à posição de centro impulsionador da circulação mercantil.
No descolamento entre essas funções, em si contraditórias, encontra-se o germe das crises econômicas, precipitadas, em geral, pela correção abrupta de ativos inflados devido à lógica imanente que os descola de seu solo e substrato real.
A teoria marxista prediz ainda que um desarranjo financeiro tende a afetar a ordem econômica em suas múltiplas dimensões. A desarticulação da função “meio de pagamento” (o sistema de crédito), que o dinheiro adquire com o desenvolvimento dos mecanismos de compensação bancária, altera suas outras funções como “meio de circulação” ou como “medida de valor”. Eis por que uma crise bancária não deixa de ressoar no âmbito da produção e tende a se tornar sistêmica com a perda da medida de valor das mercadorias e das empresas, fenômeno patente na volatilidade dos mercados e das bolsas.
A crítica de Marx ao capitalismo readquire atualidade precisamente quando a prática política inspirada no marxismo passa por seu momento de maior descrédito. O paradoxo é ainda maior quando se recorda que o marxismo viveu seu apogeu político e intelectual no Ocidente no período em que a regulação estatal desmentia a linha geral de "O Capital".
3. No capitalismo, Estado e mercado são faces de uma mesma moeda. A política econômica predominante nas últimas décadas –inspirada no receituário proposto, entre outros, por Friedrich Hayek e Milton Friedman, e rotulada de “neoliberal”– visava desprender a lógica econômica da política, liberar o mercado das “amarras” do Estado. Esse objetivo, no entanto, uma demanda da classe capitalista assustada com o declínio das taxas de lucro, só pôde ser alcançado por meio da ação política, da conquista do Estado.
A magnitude dessa intervenção estatal sobre a esfera institucional do capitalismo, aceleradas nos governos de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, só é comparável às modificações na esfera econômica introduzidas na década de 1930.
O desmanche da chamada economia mista (estatal e de mercado), a privatização de domínios até então públicos (da infra-estrutura à previdência, passando pela saúde e pela educação), a desregulamentação dos mercados de trabalho, de mercadorias e de dinheiro foram obtidos por meio de uma série deliberada e coordenada de ações extra-econômicas. Semelhante mudança no padrão de acumulação exigiu uma política agressiva de enfraquecimento dos sindicatos e do poder social da classe trabalhadora.
A manutenção desse modelo de capitalismo pressupõe a continuidade dessa modalidade de ação política, assentada numa militância ativa e sobretudo numa hegemonia intelectual que está sendo seriamente abalada pelos desdobramentos da atual crise financeira.
4. Não é casual que o epicentro da crise esteja localizado nos Estados Unidos e na Inglaterra. Trata-se dos dois países que foram mais longe na desregulamentação do capitalismo. Apesar da vitória incontestável do poder norte-americano sobre o socialismo estatal do Leste europeu, a “nova ordem mundial” aderiu ao modelo preconizado com parcimônia.
Na área econômica unificada pela adoção do euro como moeda comum, apesar da insistência tanto dos conservadores como da social-democracia, o Estado do bem-estar social foi pouco modificado, ficando as políticas de desregulamentação concentradas na esfera financeira.
A reinserção da China no mercado mundial e seu espantoso crescimento econômico nas duas últimas décadas –a manifestação mais peremptória do “capitalismo globalizado”– transformaram a sociedade chinesa no máximo numa economia mista, com uma combinação peculiar de livre mercado e intervenção estatal comandada e controlada pela camada dirigente do Partido Comunista.
Na América Latina, sua implantação tardia (com a exceção do Chile), nos anos 1990, por meio das terapias de choque do “consenso de Washington” redundou em fracasso. O malogro foi tão grande que impulsionou o acesso ao poder de políticos e partidos situados à esquerda do espectro político. Se não conseguiram reverter as reformas implementadas, tampouco levaram adiante com o mesmo ímpeto o receituário neoliberal.
5. O colapso desse modelo põe em xeque a hegemonia dos EUA no sistema interestatal. Nesse cenário, amplifica-se a contradição latente, que perpassa a história norte-americana ao longo do século XX, entre a república e o império.
A crise debilita o arranjo que permitiu a combinação de uma sociedade afluente, com um nível de consumo exacerbado e uma relativa democratização da vida pública, no plano interno, e o intervencionismo militar, econômico e político, no qual não estiveram ausentes até mesmo momentos de ocupação e domínio neocolonial, no plano externo.
A próxima eleição presidencial opõe duas vias distintas para a reconstituição do poder norte-americano: a ênfase na reforma do ambiente econômico e social, conforme o programa de Barack Obama, ou a tentativa de resolver os impasses internos intensificando a intervenção externa, proposta por John McCain, com a sugestão de pequenas alterações na dosagem adotada durante os oito anos do governo de George W. Bush.
6. Os detentores do capital, no mundo todo, vivem um momento de perplexidade. A hegemonia norte-americana tem uma de suas fontes no reconhecimento de sua ação, extremamente eficaz nos últimos 70 anos, em defesa, para além das fronteiras nacionais, dos interesses da classe capitalista.
Uma legitimidade conquistada com o uso, sem escrúpulos, de todos os meios possíveis seja no campo econômico, político, cultural ou militar. Nesse sentido, seu engajamento e sua liderança na guerra contra o comunismo internacional pode ser visto como apenas um momento de sua condição de “garantia em última instância do capital”.
Só isso explica porque, apesar da insolvência que perpassa o sistema bancário norte-americano e do tamanho descomunal de seus dois déficits –o de transações correntes e o público–, o dólar se valoriza ante as demais moedas, ao exercer a função de reserva de valor e instaurar-se como o último porto seguro para capitais de todas as nacionalidades.
O provável declínio dos EUA apresenta-se assim como uma espécie de efeito colateral inesperado de sua irretorquível vitória sobre o socialismo estatal do Leste europeu.
7. O anunciado giro na direção do fortalecimento do Estado, resgatando modalidades explícitas de capitalismo estatal; o retorno de políticas anticíclicas, de inspiração neokeynesianas; a retomada de práticas regulatórias, não só no âmbito financeiro, demandas assumidas hoje pela classe capitalista e até mesmo por políticos conservadores, surgem como uma exigência técnica, como uma operação de restabelecimento da racionalidade econômica.
Esse olhar retrospectivo para o arsenal profilático desenvolvido a partir da crise de 1929 recusa-se a ver, no entanto, que tais procedimentos originaram-se no âmbito e mediados por um intenso confronto político no qual a classe trabalhadora exerceu o papel de protagonista (mesmo quando derrotada).
No contexto atual, a representação política dos trabalhadores, desacreditando da viabilidade do socialismo, defende, entretanto, apenas modalidades de capitalismo reformado e versões mitigadas de capitalismo de Estado. Diante desse encurtamento do horizonte político, resta a questão crucial: o que irá galvanizar as massas de atuais e futuros deserdados do mundo?
Por Ricardo Musse, professor da USP
1. A partir dos anos 1970, os EUA introduziram paulatinamente uma série de alterações no funcionamento do sistema econômico internacional que, na prática, subverteu o modelo anterior firmado no pós-guerra. As políticas anticíclicas que permitiram a expansão conhecida como os “30 anos dourados” foram desmontadas uma a uma.
Os excedentes monetários, até então sob o controle parcial dos Estados, passaram a ser geridos pelo mercado, com a concomitante redução da participação dos salários na renda nacional e dos benefícios conquistados como direitos sociais. O controle de capitais pelos Estados nacionais, outra peça-chave do arcabouço anterior, cedeu lugar à livre circulação inclusive de capitais de curto prazo, propiciando os movimentos especulativos que moldam atualmente o mercado de dinheiro.
Ao longo desse processo, os Estados passaram por alterações substanciais não só com a restrição de sua participação direta como agente econômico, mas sobretudo com a redução significativa de suas atividades de planejamento e regulação.
2. Com o fim da situação de exceção, da assim chamada “regulação keynesiana”, o capitalismo retornou ao seu leito habitual. O ímpeto e a dinâmica econômica voltaram a ser ditados pelo mercado, e as crises a se suceder com precisão matemática.
Para um leitor de Karl Marx os delineamentos e desdobramentos da atual crise bancária e financeira afiguram-se como uma ilustração exemplar e quase didática de sua explicação do capitalismo. A teoria do valor e o fetichismo da mercadoria expostos em "O Capital" ressaltam que, apesar de sua origem como uma mercadoria específica, como equivalente geral, o dinheiro tende a adquirir autonomia no decorrer do processo em que salta da condição de mero mediador das trocas alçando-se à posição de centro impulsionador da circulação mercantil.
No descolamento entre essas funções, em si contraditórias, encontra-se o germe das crises econômicas, precipitadas, em geral, pela correção abrupta de ativos inflados devido à lógica imanente que os descola de seu solo e substrato real.
A teoria marxista prediz ainda que um desarranjo financeiro tende a afetar a ordem econômica em suas múltiplas dimensões. A desarticulação da função “meio de pagamento” (o sistema de crédito), que o dinheiro adquire com o desenvolvimento dos mecanismos de compensação bancária, altera suas outras funções como “meio de circulação” ou como “medida de valor”. Eis por que uma crise bancária não deixa de ressoar no âmbito da produção e tende a se tornar sistêmica com a perda da medida de valor das mercadorias e das empresas, fenômeno patente na volatilidade dos mercados e das bolsas.
A crítica de Marx ao capitalismo readquire atualidade precisamente quando a prática política inspirada no marxismo passa por seu momento de maior descrédito. O paradoxo é ainda maior quando se recorda que o marxismo viveu seu apogeu político e intelectual no Ocidente no período em que a regulação estatal desmentia a linha geral de "O Capital".
3. No capitalismo, Estado e mercado são faces de uma mesma moeda. A política econômica predominante nas últimas décadas –inspirada no receituário proposto, entre outros, por Friedrich Hayek e Milton Friedman, e rotulada de “neoliberal”– visava desprender a lógica econômica da política, liberar o mercado das “amarras” do Estado. Esse objetivo, no entanto, uma demanda da classe capitalista assustada com o declínio das taxas de lucro, só pôde ser alcançado por meio da ação política, da conquista do Estado.
A magnitude dessa intervenção estatal sobre a esfera institucional do capitalismo, aceleradas nos governos de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, só é comparável às modificações na esfera econômica introduzidas na década de 1930.
O desmanche da chamada economia mista (estatal e de mercado), a privatização de domínios até então públicos (da infra-estrutura à previdência, passando pela saúde e pela educação), a desregulamentação dos mercados de trabalho, de mercadorias e de dinheiro foram obtidos por meio de uma série deliberada e coordenada de ações extra-econômicas. Semelhante mudança no padrão de acumulação exigiu uma política agressiva de enfraquecimento dos sindicatos e do poder social da classe trabalhadora.
A manutenção desse modelo de capitalismo pressupõe a continuidade dessa modalidade de ação política, assentada numa militância ativa e sobretudo numa hegemonia intelectual que está sendo seriamente abalada pelos desdobramentos da atual crise financeira.
4. Não é casual que o epicentro da crise esteja localizado nos Estados Unidos e na Inglaterra. Trata-se dos dois países que foram mais longe na desregulamentação do capitalismo. Apesar da vitória incontestável do poder norte-americano sobre o socialismo estatal do Leste europeu, a “nova ordem mundial” aderiu ao modelo preconizado com parcimônia.
Na área econômica unificada pela adoção do euro como moeda comum, apesar da insistência tanto dos conservadores como da social-democracia, o Estado do bem-estar social foi pouco modificado, ficando as políticas de desregulamentação concentradas na esfera financeira.
A reinserção da China no mercado mundial e seu espantoso crescimento econômico nas duas últimas décadas –a manifestação mais peremptória do “capitalismo globalizado”– transformaram a sociedade chinesa no máximo numa economia mista, com uma combinação peculiar de livre mercado e intervenção estatal comandada e controlada pela camada dirigente do Partido Comunista.
Na América Latina, sua implantação tardia (com a exceção do Chile), nos anos 1990, por meio das terapias de choque do “consenso de Washington” redundou em fracasso. O malogro foi tão grande que impulsionou o acesso ao poder de políticos e partidos situados à esquerda do espectro político. Se não conseguiram reverter as reformas implementadas, tampouco levaram adiante com o mesmo ímpeto o receituário neoliberal.
5. O colapso desse modelo põe em xeque a hegemonia dos EUA no sistema interestatal. Nesse cenário, amplifica-se a contradição latente, que perpassa a história norte-americana ao longo do século XX, entre a república e o império.
A crise debilita o arranjo que permitiu a combinação de uma sociedade afluente, com um nível de consumo exacerbado e uma relativa democratização da vida pública, no plano interno, e o intervencionismo militar, econômico e político, no qual não estiveram ausentes até mesmo momentos de ocupação e domínio neocolonial, no plano externo.
A próxima eleição presidencial opõe duas vias distintas para a reconstituição do poder norte-americano: a ênfase na reforma do ambiente econômico e social, conforme o programa de Barack Obama, ou a tentativa de resolver os impasses internos intensificando a intervenção externa, proposta por John McCain, com a sugestão de pequenas alterações na dosagem adotada durante os oito anos do governo de George W. Bush.
6. Os detentores do capital, no mundo todo, vivem um momento de perplexidade. A hegemonia norte-americana tem uma de suas fontes no reconhecimento de sua ação, extremamente eficaz nos últimos 70 anos, em defesa, para além das fronteiras nacionais, dos interesses da classe capitalista.
Uma legitimidade conquistada com o uso, sem escrúpulos, de todos os meios possíveis seja no campo econômico, político, cultural ou militar. Nesse sentido, seu engajamento e sua liderança na guerra contra o comunismo internacional pode ser visto como apenas um momento de sua condição de “garantia em última instância do capital”.
Só isso explica porque, apesar da insolvência que perpassa o sistema bancário norte-americano e do tamanho descomunal de seus dois déficits –o de transações correntes e o público–, o dólar se valoriza ante as demais moedas, ao exercer a função de reserva de valor e instaurar-se como o último porto seguro para capitais de todas as nacionalidades.
O provável declínio dos EUA apresenta-se assim como uma espécie de efeito colateral inesperado de sua irretorquível vitória sobre o socialismo estatal do Leste europeu.
7. O anunciado giro na direção do fortalecimento do Estado, resgatando modalidades explícitas de capitalismo estatal; o retorno de políticas anticíclicas, de inspiração neokeynesianas; a retomada de práticas regulatórias, não só no âmbito financeiro, demandas assumidas hoje pela classe capitalista e até mesmo por políticos conservadores, surgem como uma exigência técnica, como uma operação de restabelecimento da racionalidade econômica.
Esse olhar retrospectivo para o arsenal profilático desenvolvido a partir da crise de 1929 recusa-se a ver, no entanto, que tais procedimentos originaram-se no âmbito e mediados por um intenso confronto político no qual a classe trabalhadora exerceu o papel de protagonista (mesmo quando derrotada).
No contexto atual, a representação política dos trabalhadores, desacreditando da viabilidade do socialismo, defende, entretanto, apenas modalidades de capitalismo reformado e versões mitigadas de capitalismo de Estado. Diante desse encurtamento do horizonte político, resta a questão crucial: o que irá galvanizar as massas de atuais e futuros deserdados do mundo?
Por Ricardo Musse, professor da USP
quarta-feira, 22 de outubro de 2008
O que fazer? as razões e alternativas para a crise global
Provavelmente esse será o último texto que vou fazer sobre a crise para o blog. Aqui eu sintetizo bem algumas idéias e desenvolvo outras. Sim, esse post é bem longo mas, como escrevi, provavelmente será o último postado aqui sobre a crise.
Hoje em dia o imaginário dominante se remete duas fantasias ideológicas que necessitam ser desconstruídas se ainda pensamos num projeto radical de emancipação diante da crise estrutural do capital:
1) É mais fácil pensar a destruição total da Terra por algum motivo ecológico ou místico do que uma mudança radical no sistema do capital contemporâneo. É como se o capitalismo liberal fosse indestrutível e que de algum modo ele poderá sobreviver mesmo na eventualidade de uma catástrofe ecológica global...
2) O capitalismo é eterno e natural. Essa fantasia a-histórica nos remete até a encontrar um “gene capitalista” em toda a história. Esse teor naturalizador da ordem estabelecida é um pressuposto teórico nas mais variadas análises sobre o mundo. No capitalismo tardio essa fantasia se dá sob a forma do que foi chamado por Peter Sloterdijk de razão cínica que não é resultado da ignorância ou de uma falsa-consciência, mas sim do conhecimento (agora globalizado) enquanto tal. Sabemos que a motivação pelo lucro submeteu quaisquer outras motivações tradicionais e que a cobiça pode ser identificada como a força fundamental na natureza... Sabemos que a corrupção no governo é absoluta e que nenhum governo representativo algum dia cumprirá as promessas feitas com os argumentos tradicionais a favor da democracia... Sabemos que existe um desastre ecológico acontecendo ao vivo... Entretanto, o conhecimento aqui é impotente, não leva a mudança radical, subjetiva ou objetiva; ao contrário, encoraja, legitima e reforça a desesperança na natureza humana e na possibilidade de uma política coletiva de mudança radical da sociedade. Não seria dessa falência ética, então, que o capitalismo se reproduz?
Buscando ir além dessas fantasias ideológicas que permeiam o mundo contemporâneo vamos tentar fazer uma análise do sistema do capital incluindo sua dinâmica, suas potencialidades e limites para então conjugar essa análise com a crise que vemos nos noticiários. Estranho fato esse: capitalismo e crise voltaram a se combinar nas manchetes das grandes imprensas. Isso não significa um sintoma de nosso tempo? Vou tentar destrinchar esse sintoma tomando uma perspectiva teórica que busque as razões estruturais que possibilitaram o seu aparecimento. Para isso vamos nos remontar a história do capital como relação social dominante fazendo primeiramente uma diferenciação necessária entre capital e capitalismo para depois adentrar nas razões da atual crise.
Vamos fazer uma distinção pontual entre capital e capitalismo já que são fenômenos distintos. O capitalismo é uma fase particular da produção do capital onde a produção para troca é dominante; a própria força de trabalho, tanto qualquer outra coisa, é tratada como mercadoria; a motivação do lucro é a força reguladora fundamental da produção; o mecanismo vital de extração de mais-valia, que é a separação radical entre meios de produção de produtores, assume a forma inerentemente econômica que é apropriada privadamente pelos membros da classe capitalista; e de acordo com seus imperativos econômicos de crescimento e expansão, a produção de capital tende a integração global por intermédio do mercado internacional, com um sistema totalmente interdependente de dominação e subordinação econômica.
O capitalismo é assim uma forma específica de funcionamento do capital como relação social onde bens e serviços, inclusive as necessidades mais básicas da vida, são produzidas tendo como fim a troca lucrativa; os requisitos da competição e da maximização de lucro são regras fundamentais da vida social e, devida a essas regras, é um sistema voltado singularmente para o desenvolvimento das forças produtivas e o aumento da produtividade do trabalho através de mudanças tecnológicas e organizativas. Esse é, ao mesmo tempo, o norte de seu desenvolvimento e seu fardo já que necessita transformar-se constantemente para adequar-se a suas mudanças.
Por ser um sistema composto, em sua grande maioria, por trabalhadores livres sem posses e obrigados a vender sua mão-de-obra por um salário a fim de subsistir, vemos que toda a produção de bens e serviços está subordinada à produção de capital e não a qualquer tipo de organização e distribuição de riqueza para os seres sociais que trabalham. Dessa forma é mais entender que o objetivo básico do sistema capitalista é a produção e auto-expansão do capital.
Com o capital conseguindo libertar-se dos constrangimentos dos sistemas orgânicos anteriores, superando principalmente as proibições da compra e venda de terra e trabalho, ele pode afirmar-se como sistema orgânico oniabrangente que visa à auto-expansão reduzindo e degradando os seres humanos à condição de meros “custos de produção” como “força de trabalho necessária” podendo tratar o trabalho vivo como “mercadoria comercializável”. Se os sistemas orgânicos anteriores eram orientados para a produção de valores de uso e tinham um alto grau de auto-suficiência,
O capital pôde emergir e triunfar sobre seus antecessores históricos como um sistema de controle sociometabólico pelo abandono de todas as considerações da necessidade humana vinculada às limitações dos valores de uso não-quantificáveis, sobrepondo-lhes – como pré-requisito absoluto de sua legitimação para se tornarem alvos aceitáveis de produção – os imperativos fetichistas do valor de troca quatificável e sempre expansivo. Eis como a forma historicamente específica do sistema do capital: sua variedade burguesa capitalista, passou a existir. Teve de adotar o modo esmagadoramente econômico de extrair trabalho excedente pela mais-valia estritamente quantificável.
Hoje em dia o imaginário dominante se remete duas fantasias ideológicas que necessitam ser desconstruídas se ainda pensamos num projeto radical de emancipação diante da crise estrutural do capital:
1) É mais fácil pensar a destruição total da Terra por algum motivo ecológico ou místico do que uma mudança radical no sistema do capital contemporâneo. É como se o capitalismo liberal fosse indestrutível e que de algum modo ele poderá sobreviver mesmo na eventualidade de uma catástrofe ecológica global...
2) O capitalismo é eterno e natural. Essa fantasia a-histórica nos remete até a encontrar um “gene capitalista” em toda a história. Esse teor naturalizador da ordem estabelecida é um pressuposto teórico nas mais variadas análises sobre o mundo. No capitalismo tardio essa fantasia se dá sob a forma do que foi chamado por Peter Sloterdijk de razão cínica que não é resultado da ignorância ou de uma falsa-consciência, mas sim do conhecimento (agora globalizado) enquanto tal. Sabemos que a motivação pelo lucro submeteu quaisquer outras motivações tradicionais e que a cobiça pode ser identificada como a força fundamental na natureza... Sabemos que a corrupção no governo é absoluta e que nenhum governo representativo algum dia cumprirá as promessas feitas com os argumentos tradicionais a favor da democracia... Sabemos que existe um desastre ecológico acontecendo ao vivo... Entretanto, o conhecimento aqui é impotente, não leva a mudança radical, subjetiva ou objetiva; ao contrário, encoraja, legitima e reforça a desesperança na natureza humana e na possibilidade de uma política coletiva de mudança radical da sociedade. Não seria dessa falência ética, então, que o capitalismo se reproduz?
Buscando ir além dessas fantasias ideológicas que permeiam o mundo contemporâneo vamos tentar fazer uma análise do sistema do capital incluindo sua dinâmica, suas potencialidades e limites para então conjugar essa análise com a crise que vemos nos noticiários. Estranho fato esse: capitalismo e crise voltaram a se combinar nas manchetes das grandes imprensas. Isso não significa um sintoma de nosso tempo? Vou tentar destrinchar esse sintoma tomando uma perspectiva teórica que busque as razões estruturais que possibilitaram o seu aparecimento. Para isso vamos nos remontar a história do capital como relação social dominante fazendo primeiramente uma diferenciação necessária entre capital e capitalismo para depois adentrar nas razões da atual crise.
Vamos fazer uma distinção pontual entre capital e capitalismo já que são fenômenos distintos. O capitalismo é uma fase particular da produção do capital onde a produção para troca é dominante; a própria força de trabalho, tanto qualquer outra coisa, é tratada como mercadoria; a motivação do lucro é a força reguladora fundamental da produção; o mecanismo vital de extração de mais-valia, que é a separação radical entre meios de produção de produtores, assume a forma inerentemente econômica que é apropriada privadamente pelos membros da classe capitalista; e de acordo com seus imperativos econômicos de crescimento e expansão, a produção de capital tende a integração global por intermédio do mercado internacional, com um sistema totalmente interdependente de dominação e subordinação econômica.
O capitalismo é assim uma forma específica de funcionamento do capital como relação social onde bens e serviços, inclusive as necessidades mais básicas da vida, são produzidas tendo como fim a troca lucrativa; os requisitos da competição e da maximização de lucro são regras fundamentais da vida social e, devida a essas regras, é um sistema voltado singularmente para o desenvolvimento das forças produtivas e o aumento da produtividade do trabalho através de mudanças tecnológicas e organizativas. Esse é, ao mesmo tempo, o norte de seu desenvolvimento e seu fardo já que necessita transformar-se constantemente para adequar-se a suas mudanças.
Por ser um sistema composto, em sua grande maioria, por trabalhadores livres sem posses e obrigados a vender sua mão-de-obra por um salário a fim de subsistir, vemos que toda a produção de bens e serviços está subordinada à produção de capital e não a qualquer tipo de organização e distribuição de riqueza para os seres sociais que trabalham. Dessa forma é mais entender que o objetivo básico do sistema capitalista é a produção e auto-expansão do capital.
Com o capital conseguindo libertar-se dos constrangimentos dos sistemas orgânicos anteriores, superando principalmente as proibições da compra e venda de terra e trabalho, ele pode afirmar-se como sistema orgânico oniabrangente que visa à auto-expansão reduzindo e degradando os seres humanos à condição de meros “custos de produção” como “força de trabalho necessária” podendo tratar o trabalho vivo como “mercadoria comercializável”. Se os sistemas orgânicos anteriores eram orientados para a produção de valores de uso e tinham um alto grau de auto-suficiência,
O capital pôde emergir e triunfar sobre seus antecessores históricos como um sistema de controle sociometabólico pelo abandono de todas as considerações da necessidade humana vinculada às limitações dos valores de uso não-quantificáveis, sobrepondo-lhes – como pré-requisito absoluto de sua legitimação para se tornarem alvos aceitáveis de produção – os imperativos fetichistas do valor de troca quatificável e sempre expansivo. Eis como a forma historicamente específica do sistema do capital: sua variedade burguesa capitalista, passou a existir. Teve de adotar o modo esmagadoramente econômico de extrair trabalho excedente pela mais-valia estritamente quantificável.
Aqui já podemos discutir o que aconteceu nas experiências do “socialismo real” na União Soviética e no Leste Europeu. Nessas sociedades que, assim como István Mészáros, denominaremos de sociedades pós-capitalistas ou pós-revolucionárias, a diferença central em relação ao capitalismo estava na forma com que a extração de trabalho excedente era feita de maneira dominantemente política e não econômica. Nesse sentido, não houve uma superação do capital em nenhum sentido. O capital ainda permaneceu dominante nessas sociedades por meio dos imperativos materiais que circunscrevem as possibilidades da totalidade do processo vital; da divisão social do trabalho herdada, que, apesar das suas significativas modificações, contradiz o “desenvolvimento das livres individualidades”; da estrutura objetiva do aparato produtivo disponível (incluindo instalações e maquinaria) e da forma historicamente limitada ou desenvolvida do conhecimento científico, ambas originalmente produzidas na estrutura de produção de capital e sob as condições da divisão social do trabalho; a dos vínculos e interconexões das sociedades pós-revolucionárias com o sistema global do capitalismo, quer estes assumam a forma de “competição pacífica” (intercâmbio comercial e cultural), quer assumam a forma de oposição potencialmente mortal (desde a corrida armamentista até maiores ou menos confrontações reais em áreas sujeitas a disputa).
Nesse sentido as sociedades pós-revolucionárias se mostraram incapacitadas de superar o metabolismo social do capital, isto é, o complexo caracterizado pela divisão hierárquica do trabalho, que subordina suas funções vitais ao capital. No século XX o capitalismo como uma das possíveis configurações de existência do capital caracterizada pela subsunção real do trabalho de maneira estritamente econômica teve seu excesso obsceno na figura do stalinismo que acabou sendo a forma de reprodução do capital só que sobre uma subordinação do trabalho de maneira estritamente política.
Para Robert Kurz, o colapso da URSS significa a existência de uma falha no sistema produtor de mercadorias e seus mecanismos de funcionamento. Ele situa a experiência soviética sob o prisma da modernização das regiões ainda pouco desenvolvidas tendo um caráter “de um desenvolvimento recuperador, particularmente forçado, em que não apenas se repetia o estatismo dos inícios da época moderna, mas que também se apresentava numa forma muito mais puta, conseqüente e rigorosa que as dos originais ocidentais esquecidos há muito tempo” (p. 35). Kurz propõem entender as formas supostamente não capitalistas do socialismo estatal soviético (e de todos os regimes semelhantes) como experiências históricas necessárias e pré-formuladas pelo próprio capitalismo. O processo de modernização do sistema global do capital envolve sua expansão podendo, dessa forma, considerar as experiências ditas socialistas do século XX como uma forma de modernização tardia rumo à possibilidade de interligação constitutiva de todo o globo como um sistema de produção generalizada de mercadorias. Segundo sua análise, o fim da URSS mostra um sintoma fundamental de nossa época histórica contemporânea: a crise estrutural do sistema global produtor de mercadorias.
Nesse sentido, o colapso da modernização capitalista é a incapacidade do capital atender seus imperativos existenciais de acumulação e expansão por já chegar a um estágio global de seu desenvolvimento histórico. Por atingir esses limites, podemos dizer que essa crise estrutural está diretamente relacionada com o desenvolvimento do próprio capital global. Seu sucesso como relação global totalizante e expansiva tem seu limite na impossibilidade de reproduzir seu ímpeto globalizante intrínseco.
Considerando essa diferenciação inicial é que podemos pensar essa crise e as políticas alternativas a condição atual das coisas.
Nesse sentido as sociedades pós-revolucionárias se mostraram incapacitadas de superar o metabolismo social do capital, isto é, o complexo caracterizado pela divisão hierárquica do trabalho, que subordina suas funções vitais ao capital. No século XX o capitalismo como uma das possíveis configurações de existência do capital caracterizada pela subsunção real do trabalho de maneira estritamente econômica teve seu excesso obsceno na figura do stalinismo que acabou sendo a forma de reprodução do capital só que sobre uma subordinação do trabalho de maneira estritamente política.
Para Robert Kurz, o colapso da URSS significa a existência de uma falha no sistema produtor de mercadorias e seus mecanismos de funcionamento. Ele situa a experiência soviética sob o prisma da modernização das regiões ainda pouco desenvolvidas tendo um caráter “de um desenvolvimento recuperador, particularmente forçado, em que não apenas se repetia o estatismo dos inícios da época moderna, mas que também se apresentava numa forma muito mais puta, conseqüente e rigorosa que as dos originais ocidentais esquecidos há muito tempo” (p. 35). Kurz propõem entender as formas supostamente não capitalistas do socialismo estatal soviético (e de todos os regimes semelhantes) como experiências históricas necessárias e pré-formuladas pelo próprio capitalismo. O processo de modernização do sistema global do capital envolve sua expansão podendo, dessa forma, considerar as experiências ditas socialistas do século XX como uma forma de modernização tardia rumo à possibilidade de interligação constitutiva de todo o globo como um sistema de produção generalizada de mercadorias. Segundo sua análise, o fim da URSS mostra um sintoma fundamental de nossa época histórica contemporânea: a crise estrutural do sistema global produtor de mercadorias.
Nesse sentido, o colapso da modernização capitalista é a incapacidade do capital atender seus imperativos existenciais de acumulação e expansão por já chegar a um estágio global de seu desenvolvimento histórico. Por atingir esses limites, podemos dizer que essa crise estrutural está diretamente relacionada com o desenvolvimento do próprio capital global. Seu sucesso como relação global totalizante e expansiva tem seu limite na impossibilidade de reproduzir seu ímpeto globalizante intrínseco.
Considerando essa diferenciação inicial é que podemos pensar essa crise e as políticas alternativas a condição atual das coisas.
***
Existe um relativo consenso sobre o surgimento do que vamos denominar aqui de “crise estrutural do metabolismo global do capital”. Essa crise é comumente relacionada com o declínio do Estado de Bem-Estar Social e com o fim da experiência soviética do “socialismo real” sendo esta mais uma manifestação da crise global que se universaliza no final do século XX. As diversas crises que desembocaram no final do século como a mexicana e a asiática estão também estreitamente ligadas com essa crise estrutural cuja causalidade unifica tais manifestações particulares e seu impacto global. Entretanto, como podemos definir essa crise?
Todas as crises do capital são crises de superprodução de valores de troca. Marx já indicava que a lei geral da produção de capital é sempre impulsionada para a expansão, sem considerar os limites do mercado ou as necessidades humanas, o que acarreta periodicamente um desequilíbrio entre produção e circulação ou, em termos marxistas, um desequilíbrio entre o crescimento da taxa de lucro e a realização da mais-valia. O Estado de Bem-Estar Social instaurado no pós-II Guerra Mundial (1945) fez parte do último longo expansivo do capital: foi a forma mais adequada de extração da mais-valia por o Estado ter tomado o papel auxiliador do padrão de acumulação fundado sob o binômio fordismo/keynesianismo exigindo, concomitante a produção de massa, o correspondente consumo de massa. A injeção de recursos públicos na economia visando aumentar o consumo possibilitou, dessa forma, a consolidação de um período de expansão imperturbada: os trinta anos gloriosos do capitalismo. Nesse período a tendência de crise do capital rebuscada pelas altas taxas de crescimento, pelo aumento no padrão de vida dos trabalhadores com o antivalor ou fundo público que possibilitava o desenvolvimento dos salários indiretos compostos por investimentos na educação, saúde, moradia...
Esse modelo entra em crise em meados de 1970. O atendimento dos “imperativos existenciais” do capital de expansão e acumulação encontra seus limites por não conseguir mais se valer do crescimento dos mercados e da ocupação de novos territórios para colocar a crescente produção de mercadorias. Visando a ampliação do consumo diante dessas impossibilidades objetivas a produção volta-se para a redução progressiva da taxa de utilização dos produtos com a redução da vida útil das mercadorias tentando dar vazão a superprodução numa circulação acelerada. É dessa forma que deve ser entendida a atual “sociedade de consumo” onde o desperdício e o descartável reinam. É aqui que se instaura o pós-modernismo como lógica cultural do capitalismo tardio.
(Se o modernismo foi à experiência e o resultado de uma modernização incompleta, inacabada e inacabável pela impossibilidade de atender as demandas burguesas fundamentais de liberdade, igualdade e fraternidade, o pós-modernismo surge quando o processo de modernização não tem mais de desembaraçar das características arcaicas e não tem mais obstáculos diante dele fazendo com que sua própria lógica possa reinar triunfalmente...)
Com o desequilíbrio a superprodução de mercadorias (que é um efeito do desenvolvimento das forças produtivas da sociedade capitalista) e a eliminação de seus potenciais consumidores instalam-se uma crise. Maio de 1968 foi exatamente o transbordamento desse limite...
Voltando... com o esgotamento desse ímpeto político-transformador de 1968 começou a reação do capital no sentido de construir uma ofensiva neoliberal que já havia sido preparada por Hayek e Popper desde a década de 1940, mas que somente em meados de 1970 encontrara condições objetivas para sua propagação. O objetivo principal dessa ofensiva foi restabelecer a acumulação e a expansão de capital com novas formas de extração do trabalho excedente com (1) mudanças no processo produtivo, na gestão das empresas e da força de trabalho, (2) no cerceamento das atividades políticas dos trabalhadores, (3) o crescimento do desemprego estrutural (4) a globalização, (5) as políticas neoliberais, (6) o desenvolvimento de novas tecnologias. Não vou percorrer, nem rapidamente, cada uma delas. Vamos ao ponto que parece mais importar hoje: a financeirização da economia.
Um dos meios para a superação dessa crise estrutural por parte do capital foi à criação de formas totalmente artificiais de reprodução. Aqui deve ser entendida a gênese da crise do sistema financeiro atual, como uma resposta fenomênica a crise estrutural do metabolismo global do capital.
Marx indicava na fórmula D – M – D’ a forma de atendimento material dos imperativos existenciais do capital. Sob a financeirização a fórmula transforma-se em D – D’, isso é, uma porção de dinheiro é transformada em mais dinheiro sem a mediação da mercadoria. É a “valorização do valor” em sua etapa mais desenvolvida e predatória. Para poder aprofundar essa perspectiva vou fazer uma citação que parece cair muito bem: “o verdadeiro limite da produção capitalista é o próprio capital; é o fato de que, nela, são o capital e sua valorização que constituem o ponto de partida e sua meta, o motivo e fim da produção”. Não podemos encontrar, portanto, na financeirização um limite histórico do capital? Ou melhor, quais foram os problemas da financeirização como via de saída?
O problema de investir em operações do setor financeiro é que equivale a exprimir valor de valor já criado. Pode criar lucro, mas não cria valor – só a indústria, a agricultura, o comércio e os serviços criam valor novo. Visto que os lucros não se baseiam na criação de valor novo ou agregado, as operações de investimento resultam extremamente voláteis e os preços das ações, as obrigações e de outras formas de investimento podem chegar a divergir radicalmente de seu valor real: por exemplo, as ações de empresas incipientes de Internet, que se mantiveram por um tempo em alta, sustentadas principalmente por valorações financeiras em espiral, para logo arruinarem-se. Os lucros dependem, então, do aproveitamento das vantagens por movimento de preços que divergem da alta do valor das mercadorias, para vender oportunamente antes de que a realidade force a “correção” para baixa, a fim de ajustar-se aos valores reais. A alta radical dos preços de um ativo, muito além dos valores reais, é o que se chama de formação de uma bolha. Como podemos resumir esse processo atualmente, portanto? O desabamento de Wall Street não se deve apenas à cobiça e à falta de regulação estatal do setor hiperativo. O colapso de Wall Street tem suas raízes na crise estrutural do capital global que, desde meados dos 70, abarca a totalidade do sistema sob a incapacidade de que seus fatores consigam resolver a sua própria crise. Minha tese é que existem limitações estruturais para o processo de acumulação de capital que estão, desde a década de 1970, atuando como um frio para o funcionamento do sistema. Temos que viver essas situações no cotidiano. Pensemos, então, a ligação dessa crise com alternativas.
***
A crise financeira não é, de forma alguma, um desequilíbrio. A crise, a que temos de nos acostumar, não é nem uma crise do capitalismo e sim do sistema do capital em sua totalidade que, afim de que a humanidade sobreviva demanda mudanças fundamentais no modo de controle do metabolismo global do capital. A necessidade de uma mudança estrutural radical e abrangente na ordem estabelecida carrega consigo a exigência da redefinição qualitativa das determinações sistêmicas da sociedade como a perspectiva geral de transformação. Ajustes parciais não são suficientes para cumprir o desafio histórico posto: somente a instituição e a consolidação de uma alternativa hegemônica ao controle sóciometabólico do capital pode oferecer saída para as contradições e antagonismos de nosso tempo. Como sugere Mészáros, “transformar a crise sistêmica do capital em sua “crise final” dependerá da habilidade do movimento revolucionário em se reorientar radicalmente para enfrentar esse imenso desafio histórico”.
Numa declaração recente da ATTAC da Europa é apontado que para responder a esta crise não basta moralizar o capitalismo ou atribuir culpa aos agentes dos mercados financeiros. Uma regulação superficial ou uma gestão da crise em curto prazo teriam como resultado salvar o sistema e conduzir-nos a novos desastres. A resposta a essa crise seria sair do neoliberalismo e por fim ao domínio das finanças sobre o conjunto da sociedade. Pensemos: se essa é a alternativa de esquerda para a crise estamos perdidos. Nesse ponto é necessário superar a herança da experiência soviética ou reluz sobre as demandas impossíveis, ou histéricas diria Lacan, que nunca vão ser atendidas pelo sistema do capital. Vale aqui o recado de István Mészáros:
A matriz das aspirações de emancipação não pode em hipótese alguma estar no sistema do capital. Se estivermos seriamente interessados na realização completa do mandato emancipador, com suas dimensões formais e informais, teremos de imaginar uma ordem metabólica social da qual se removam todas as determinações e defeitos incorrigíveis do capital. Evidentemente é preciso ter em conta o fato de que são necessários muitos passos até que se chegue àquele estágio, e que eles não podem ser dados num futuro hipotético. É preciso começar imediatamente, no presente, assumindo o controle das alavancagens e mediações práticas pelas quais deve passar o progresso, desde o presente realmente existente até o futuro esperado. É fundamental ter uma boa avaliação das nossas forças e recursos, tal como definidos pelas restrições do presente e pelas mediações mais ou menos limitadas ao nosso alcance. Mas nem mesmo um progresso reduzido será possível se não tivermos uma estrutura estratégica de orientação: um 'objetivo geral' que pretendemos atingir. O convite a se deixar orientar pela defesa estratégica da "mudança gradual" pode superficialmente parecer tentador. Mas na realidade essa proposta é enganadora e desorientadora, pois tende a permanecer cega se não se integrar numa estrutura estratégica abrangente, o que equivale a cancelar a nossa autodefinição retórica e geradora de slogans.
O capital faz parte de uma relação incontrolável que usurpa o tempo, força de trabalho, matérias-primas, o meio-ambiente e desenvolve uma tecnologia aliada aos imperativos existenciais de acumulação e expansão de capital sem considerar as necessidades humanas, sociais e naturais. Precisamos de óculos ou uma tela de TV para o entendimento desse processo? Estamos nesse início de século XXI reproduzindo, pelas relações sociais dominantes, a desigualdade num sentido altamente destrutivo sob a relação estruturalmente hierárquica do capital sob o mundo do trabalho e, nesse ponto, a crítica de Walter Benjamim a o que foi denominado de progresso tem sua força. Vale à pena ler com calma a IX tese “sobre o conceito de história” de 1940.
Existe um quadro de Klee intitulado de “Angelus Novus”. Nele está representado um anjo, que parece estar a ponto de afastar-se de algo em que crava o seu olhar. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estriadas. O anjo da história tem de parecer assim. Ele tem seu rosto voltado para o passado. Onde uma cadeia de eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma única catástrofe, que se cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os destroços. Mas do paraíso sopra uma tempestade que se emaranhou em suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, para o qual dá as costas, enquanto o amontoado de escombros diante dele cresce até o céu. O que nós chamamos e progresso é essa tempestade (Benjamin, 87).
Benjamin trata de desmistificar o progresso por meio das ruínas catastróficas que ele produz numa crítica contra aqueles que consideram “natural” esse processo e, dessa forma, inevitável. Propõem que o trem da história seja freado antes que seja tarde. Nesse sentido, na VII tese Benjamim escreve que “a tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ no qual vivemos é a regra. Precisamos chegar a um conceito de história que dê conta disso. Então surgirá diante de nós nossa tarefa, a de instaurar o real estado de exceção” (p. 83). Benjamim nos convida aqui a pensar sobre o real significado desse progresso que, para os conformistas, significa a evolução das sociedades no sentido de mais democracia, liberdade e paz. Ele nos evoca para a criação de um “real estado de exceção” que desvie a regra da história (opressão de classe, barbárie, violência dos vencedores) rumo a uma sociedade sem classes baseada na rememoração universal de todas as vítimas sem exceção.
Desde a época de Benjamin a história continuou rumo ao “progresso” e, nesse empreitada extremamente exploradora e opressiva, viu a explosão das bombas atômicas, uma diversidade de guerras, ditaduras, mortes: em outras palavras, o aviso de Benjamim continua válido só que sob uma urgência muito maior já que o potencial destrutivo da sociedade capitalista só aumentou desde lá. Principalmente desde meados de 1970, o capital em seu constante movimento de expansão começa a circular livremente pelas mediações sociais criando um curto-circuito estrutural onde o valor se autodestrói no sentido de seu próprio desenvolvimento: é o limite de reprodução do capital exatamente sob a sua “totalização” no tempo e espaço da vida social do âmbito relacional do sujeito. Nesse ponto A Catástrofe (extinção do ser humano ou da natureza) torna-se uma potencialidade positiva para a reprodução ampliada do capital e, nesse sentido, é preciso cortar o pavio que queima antes que a faísca atinja a dinamite. Numa época em que o incompreensível virou rotina, para evitar a catástrofe, primeiro é necessário acreditar na sua possibilidade. É preciso acreditar que o impossível é possível. Considerá-las improváveis ou nem mesmo pensar nelas é a desculpa para não fazer nada contra elas antes que atinjam o ponto em que o improvável vira realidade.
Existe um relativo consenso sobre o surgimento do que vamos denominar aqui de “crise estrutural do metabolismo global do capital”. Essa crise é comumente relacionada com o declínio do Estado de Bem-Estar Social e com o fim da experiência soviética do “socialismo real” sendo esta mais uma manifestação da crise global que se universaliza no final do século XX. As diversas crises que desembocaram no final do século como a mexicana e a asiática estão também estreitamente ligadas com essa crise estrutural cuja causalidade unifica tais manifestações particulares e seu impacto global. Entretanto, como podemos definir essa crise?
Todas as crises do capital são crises de superprodução de valores de troca. Marx já indicava que a lei geral da produção de capital é sempre impulsionada para a expansão, sem considerar os limites do mercado ou as necessidades humanas, o que acarreta periodicamente um desequilíbrio entre produção e circulação ou, em termos marxistas, um desequilíbrio entre o crescimento da taxa de lucro e a realização da mais-valia. O Estado de Bem-Estar Social instaurado no pós-II Guerra Mundial (1945) fez parte do último longo expansivo do capital: foi a forma mais adequada de extração da mais-valia por o Estado ter tomado o papel auxiliador do padrão de acumulação fundado sob o binômio fordismo/keynesianismo exigindo, concomitante a produção de massa, o correspondente consumo de massa. A injeção de recursos públicos na economia visando aumentar o consumo possibilitou, dessa forma, a consolidação de um período de expansão imperturbada: os trinta anos gloriosos do capitalismo. Nesse período a tendência de crise do capital rebuscada pelas altas taxas de crescimento, pelo aumento no padrão de vida dos trabalhadores com o antivalor ou fundo público que possibilitava o desenvolvimento dos salários indiretos compostos por investimentos na educação, saúde, moradia...
Esse modelo entra em crise em meados de 1970. O atendimento dos “imperativos existenciais” do capital de expansão e acumulação encontra seus limites por não conseguir mais se valer do crescimento dos mercados e da ocupação de novos territórios para colocar a crescente produção de mercadorias. Visando a ampliação do consumo diante dessas impossibilidades objetivas a produção volta-se para a redução progressiva da taxa de utilização dos produtos com a redução da vida útil das mercadorias tentando dar vazão a superprodução numa circulação acelerada. É dessa forma que deve ser entendida a atual “sociedade de consumo” onde o desperdício e o descartável reinam. É aqui que se instaura o pós-modernismo como lógica cultural do capitalismo tardio.
(Se o modernismo foi à experiência e o resultado de uma modernização incompleta, inacabada e inacabável pela impossibilidade de atender as demandas burguesas fundamentais de liberdade, igualdade e fraternidade, o pós-modernismo surge quando o processo de modernização não tem mais de desembaraçar das características arcaicas e não tem mais obstáculos diante dele fazendo com que sua própria lógica possa reinar triunfalmente...)
Com o desequilíbrio a superprodução de mercadorias (que é um efeito do desenvolvimento das forças produtivas da sociedade capitalista) e a eliminação de seus potenciais consumidores instalam-se uma crise. Maio de 1968 foi exatamente o transbordamento desse limite...
Voltando... com o esgotamento desse ímpeto político-transformador de 1968 começou a reação do capital no sentido de construir uma ofensiva neoliberal que já havia sido preparada por Hayek e Popper desde a década de 1940, mas que somente em meados de 1970 encontrara condições objetivas para sua propagação. O objetivo principal dessa ofensiva foi restabelecer a acumulação e a expansão de capital com novas formas de extração do trabalho excedente com (1) mudanças no processo produtivo, na gestão das empresas e da força de trabalho, (2) no cerceamento das atividades políticas dos trabalhadores, (3) o crescimento do desemprego estrutural (4) a globalização, (5) as políticas neoliberais, (6) o desenvolvimento de novas tecnologias. Não vou percorrer, nem rapidamente, cada uma delas. Vamos ao ponto que parece mais importar hoje: a financeirização da economia.
Um dos meios para a superação dessa crise estrutural por parte do capital foi à criação de formas totalmente artificiais de reprodução. Aqui deve ser entendida a gênese da crise do sistema financeiro atual, como uma resposta fenomênica a crise estrutural do metabolismo global do capital.
Marx indicava na fórmula D – M – D’ a forma de atendimento material dos imperativos existenciais do capital. Sob a financeirização a fórmula transforma-se em D – D’, isso é, uma porção de dinheiro é transformada em mais dinheiro sem a mediação da mercadoria. É a “valorização do valor” em sua etapa mais desenvolvida e predatória. Para poder aprofundar essa perspectiva vou fazer uma citação que parece cair muito bem: “o verdadeiro limite da produção capitalista é o próprio capital; é o fato de que, nela, são o capital e sua valorização que constituem o ponto de partida e sua meta, o motivo e fim da produção”. Não podemos encontrar, portanto, na financeirização um limite histórico do capital? Ou melhor, quais foram os problemas da financeirização como via de saída?
O problema de investir em operações do setor financeiro é que equivale a exprimir valor de valor já criado. Pode criar lucro, mas não cria valor – só a indústria, a agricultura, o comércio e os serviços criam valor novo. Visto que os lucros não se baseiam na criação de valor novo ou agregado, as operações de investimento resultam extremamente voláteis e os preços das ações, as obrigações e de outras formas de investimento podem chegar a divergir radicalmente de seu valor real: por exemplo, as ações de empresas incipientes de Internet, que se mantiveram por um tempo em alta, sustentadas principalmente por valorações financeiras em espiral, para logo arruinarem-se. Os lucros dependem, então, do aproveitamento das vantagens por movimento de preços que divergem da alta do valor das mercadorias, para vender oportunamente antes de que a realidade force a “correção” para baixa, a fim de ajustar-se aos valores reais. A alta radical dos preços de um ativo, muito além dos valores reais, é o que se chama de formação de uma bolha. Como podemos resumir esse processo atualmente, portanto? O desabamento de Wall Street não se deve apenas à cobiça e à falta de regulação estatal do setor hiperativo. O colapso de Wall Street tem suas raízes na crise estrutural do capital global que, desde meados dos 70, abarca a totalidade do sistema sob a incapacidade de que seus fatores consigam resolver a sua própria crise. Minha tese é que existem limitações estruturais para o processo de acumulação de capital que estão, desde a década de 1970, atuando como um frio para o funcionamento do sistema. Temos que viver essas situações no cotidiano. Pensemos, então, a ligação dessa crise com alternativas.
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A crise financeira não é, de forma alguma, um desequilíbrio. A crise, a que temos de nos acostumar, não é nem uma crise do capitalismo e sim do sistema do capital em sua totalidade que, afim de que a humanidade sobreviva demanda mudanças fundamentais no modo de controle do metabolismo global do capital. A necessidade de uma mudança estrutural radical e abrangente na ordem estabelecida carrega consigo a exigência da redefinição qualitativa das determinações sistêmicas da sociedade como a perspectiva geral de transformação. Ajustes parciais não são suficientes para cumprir o desafio histórico posto: somente a instituição e a consolidação de uma alternativa hegemônica ao controle sóciometabólico do capital pode oferecer saída para as contradições e antagonismos de nosso tempo. Como sugere Mészáros, “transformar a crise sistêmica do capital em sua “crise final” dependerá da habilidade do movimento revolucionário em se reorientar radicalmente para enfrentar esse imenso desafio histórico”.
Numa declaração recente da ATTAC da Europa é apontado que para responder a esta crise não basta moralizar o capitalismo ou atribuir culpa aos agentes dos mercados financeiros. Uma regulação superficial ou uma gestão da crise em curto prazo teriam como resultado salvar o sistema e conduzir-nos a novos desastres. A resposta a essa crise seria sair do neoliberalismo e por fim ao domínio das finanças sobre o conjunto da sociedade. Pensemos: se essa é a alternativa de esquerda para a crise estamos perdidos. Nesse ponto é necessário superar a herança da experiência soviética ou reluz sobre as demandas impossíveis, ou histéricas diria Lacan, que nunca vão ser atendidas pelo sistema do capital. Vale aqui o recado de István Mészáros:
A matriz das aspirações de emancipação não pode em hipótese alguma estar no sistema do capital. Se estivermos seriamente interessados na realização completa do mandato emancipador, com suas dimensões formais e informais, teremos de imaginar uma ordem metabólica social da qual se removam todas as determinações e defeitos incorrigíveis do capital. Evidentemente é preciso ter em conta o fato de que são necessários muitos passos até que se chegue àquele estágio, e que eles não podem ser dados num futuro hipotético. É preciso começar imediatamente, no presente, assumindo o controle das alavancagens e mediações práticas pelas quais deve passar o progresso, desde o presente realmente existente até o futuro esperado. É fundamental ter uma boa avaliação das nossas forças e recursos, tal como definidos pelas restrições do presente e pelas mediações mais ou menos limitadas ao nosso alcance. Mas nem mesmo um progresso reduzido será possível se não tivermos uma estrutura estratégica de orientação: um 'objetivo geral' que pretendemos atingir. O convite a se deixar orientar pela defesa estratégica da "mudança gradual" pode superficialmente parecer tentador. Mas na realidade essa proposta é enganadora e desorientadora, pois tende a permanecer cega se não se integrar numa estrutura estratégica abrangente, o que equivale a cancelar a nossa autodefinição retórica e geradora de slogans.
O capital faz parte de uma relação incontrolável que usurpa o tempo, força de trabalho, matérias-primas, o meio-ambiente e desenvolve uma tecnologia aliada aos imperativos existenciais de acumulação e expansão de capital sem considerar as necessidades humanas, sociais e naturais. Precisamos de óculos ou uma tela de TV para o entendimento desse processo? Estamos nesse início de século XXI reproduzindo, pelas relações sociais dominantes, a desigualdade num sentido altamente destrutivo sob a relação estruturalmente hierárquica do capital sob o mundo do trabalho e, nesse ponto, a crítica de Walter Benjamim a o que foi denominado de progresso tem sua força. Vale à pena ler com calma a IX tese “sobre o conceito de história” de 1940.
Existe um quadro de Klee intitulado de “Angelus Novus”. Nele está representado um anjo, que parece estar a ponto de afastar-se de algo em que crava o seu olhar. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estriadas. O anjo da história tem de parecer assim. Ele tem seu rosto voltado para o passado. Onde uma cadeia de eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma única catástrofe, que se cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os destroços. Mas do paraíso sopra uma tempestade que se emaranhou em suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, para o qual dá as costas, enquanto o amontoado de escombros diante dele cresce até o céu. O que nós chamamos e progresso é essa tempestade (Benjamin, 87).
Benjamin trata de desmistificar o progresso por meio das ruínas catastróficas que ele produz numa crítica contra aqueles que consideram “natural” esse processo e, dessa forma, inevitável. Propõem que o trem da história seja freado antes que seja tarde. Nesse sentido, na VII tese Benjamim escreve que “a tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ no qual vivemos é a regra. Precisamos chegar a um conceito de história que dê conta disso. Então surgirá diante de nós nossa tarefa, a de instaurar o real estado de exceção” (p. 83). Benjamim nos convida aqui a pensar sobre o real significado desse progresso que, para os conformistas, significa a evolução das sociedades no sentido de mais democracia, liberdade e paz. Ele nos evoca para a criação de um “real estado de exceção” que desvie a regra da história (opressão de classe, barbárie, violência dos vencedores) rumo a uma sociedade sem classes baseada na rememoração universal de todas as vítimas sem exceção.
Desde a época de Benjamin a história continuou rumo ao “progresso” e, nesse empreitada extremamente exploradora e opressiva, viu a explosão das bombas atômicas, uma diversidade de guerras, ditaduras, mortes: em outras palavras, o aviso de Benjamim continua válido só que sob uma urgência muito maior já que o potencial destrutivo da sociedade capitalista só aumentou desde lá. Principalmente desde meados de 1970, o capital em seu constante movimento de expansão começa a circular livremente pelas mediações sociais criando um curto-circuito estrutural onde o valor se autodestrói no sentido de seu próprio desenvolvimento: é o limite de reprodução do capital exatamente sob a sua “totalização” no tempo e espaço da vida social do âmbito relacional do sujeito. Nesse ponto A Catástrofe (extinção do ser humano ou da natureza) torna-se uma potencialidade positiva para a reprodução ampliada do capital e, nesse sentido, é preciso cortar o pavio que queima antes que a faísca atinja a dinamite. Numa época em que o incompreensível virou rotina, para evitar a catástrofe, primeiro é necessário acreditar na sua possibilidade. É preciso acreditar que o impossível é possível. Considerá-las improváveis ou nem mesmo pensar nelas é a desculpa para não fazer nada contra elas antes que atinjam o ponto em que o improvável vira realidade.
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Zizek enfatiza que a pergunta que deve ser feita agora é: “qual "falha" do sistema enquanto tal abriu a possibilidade de tais crises e colapsos? Muito está sendo mistificado nesse sentido. “A primeira coisa a ter em mente aqui é que a origem da crise é "benévola": depois da explosão da bolha digital, nos primeiros anos do novo milênio, a decisão feita por ambos os partidos foi facilitar os investimentos imobiliários, para manter a economia andando e impedir a repressão. Logo, a crise atual é o preço que está sendo pago pelo fato de os EUA terem evitado uma recessão cinco anos atrás. Assim, o perigo é que a narrativa predominante da atual crise seja aquela que, em lugar de nos fazer despertar de um sonho, nos possibilitará continuar a sonhar. É nesse ponto que devemos começar a nos preocupar: não apenas com as conseqüências econômicas da crise, mas com a tentação evidente de injetar ânimo novo na "guerra ao terror" e no intervencionismo dos EUA, para manter a economia funcionando a contento”....
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A crise estrutural do capital global pode se tornar um Significante-Mestre para a articulação de um novo projeto radical de emancipação humana? Ou ainda, segundo Zizek: hoje a única verdadeira questão é: nós endossamos essa naturalização do capitalismo ou o capitalismo global de hoje contém antagonismos fortes o suficiente para impedir sua infinita reprodução?
Existe um poder didático de caráter político nessa crise que devemos prestar atenção rapidamente.
Os últimos acontecimentos que envolvem uma transferência de renda na casa dos trilhões por parte dos Estados do centro capitalista para uma paradoxal maior liquidez no sistema financeiro internacional desnuda a forma-política que está por trás desses atos cleptocratas: a democracia-liberal. É ela que sustenta a possibilidade dessas ações que passam por cima da burocracia buscando incondicionalmente o salvamento do mercado capitalista. Dessa forma cai por terra o imaginário liberal da separação entre capital e o Estado que, sob essa crise estrutural, necessita recorrer urgentemente a uma hibridização. Esse processo já é corrente faz décadas, mas só agora toma proporções explícitas que fariam até o Sr. Milton Friedman e seus colegas serem advogados do Estado intervencionista. Como já era um pressuposto em Marx, a economia capitalista não consegue passar nem alguns segundos sem a força mediadora e de controle do Estado. Nesse sentido temos que ser radicais e perturbar o consenso político dominante: “Fidelidade ao consenso democrático significa a aceitação do atual consenso liberal-parlamentar, que impede qualquer questionamento sério da forma como essa ordem democrático-liberal é cúmplice nos fenômenos que ela oficialmente condena, e, é claro, qualquer tentativa séria de imaginar uma ordem sociopolítica diferente. Em suma significa: diga e escreva o que quiser – desde que não se questione ou perturbe, na prática, o consenso político dominante... Hoje, a verdadeira liberdade de pensamento significa liberdade para questionar o consenso democrático-liberal “pós-ideológico” dominante – ou não significa nada”. Devemos abandonar a democracia como Significante-Mestre: “a democracia é hoje o principal fetiche político, a rejeição dos antagonismos sociais básicos: na situação eleitoral, a hierarquia social é momentaneamente suspensa, o corpo social é reduzido a uma multidão pura passível de ser contada, e aqui também o antagonismo também é suspenso”. Volto à pergunta: a crise estrutural do capital global pode se tornar um Significante-Mestre para a articulação de um novo projeto radical de emancipação humana? Considerando que essa crise é estrutural, global e multidimensional ela pode ser uma ótima escolha.
Zizek enfatiza que a pergunta que deve ser feita agora é: “qual "falha" do sistema enquanto tal abriu a possibilidade de tais crises e colapsos? Muito está sendo mistificado nesse sentido. “A primeira coisa a ter em mente aqui é que a origem da crise é "benévola": depois da explosão da bolha digital, nos primeiros anos do novo milênio, a decisão feita por ambos os partidos foi facilitar os investimentos imobiliários, para manter a economia andando e impedir a repressão. Logo, a crise atual é o preço que está sendo pago pelo fato de os EUA terem evitado uma recessão cinco anos atrás. Assim, o perigo é que a narrativa predominante da atual crise seja aquela que, em lugar de nos fazer despertar de um sonho, nos possibilitará continuar a sonhar. É nesse ponto que devemos começar a nos preocupar: não apenas com as conseqüências econômicas da crise, mas com a tentação evidente de injetar ânimo novo na "guerra ao terror" e no intervencionismo dos EUA, para manter a economia funcionando a contento”....
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A crise estrutural do capital global pode se tornar um Significante-Mestre para a articulação de um novo projeto radical de emancipação humana? Ou ainda, segundo Zizek: hoje a única verdadeira questão é: nós endossamos essa naturalização do capitalismo ou o capitalismo global de hoje contém antagonismos fortes o suficiente para impedir sua infinita reprodução?
Existe um poder didático de caráter político nessa crise que devemos prestar atenção rapidamente.
Os últimos acontecimentos que envolvem uma transferência de renda na casa dos trilhões por parte dos Estados do centro capitalista para uma paradoxal maior liquidez no sistema financeiro internacional desnuda a forma-política que está por trás desses atos cleptocratas: a democracia-liberal. É ela que sustenta a possibilidade dessas ações que passam por cima da burocracia buscando incondicionalmente o salvamento do mercado capitalista. Dessa forma cai por terra o imaginário liberal da separação entre capital e o Estado que, sob essa crise estrutural, necessita recorrer urgentemente a uma hibridização. Esse processo já é corrente faz décadas, mas só agora toma proporções explícitas que fariam até o Sr. Milton Friedman e seus colegas serem advogados do Estado intervencionista. Como já era um pressuposto em Marx, a economia capitalista não consegue passar nem alguns segundos sem a força mediadora e de controle do Estado. Nesse sentido temos que ser radicais e perturbar o consenso político dominante: “Fidelidade ao consenso democrático significa a aceitação do atual consenso liberal-parlamentar, que impede qualquer questionamento sério da forma como essa ordem democrático-liberal é cúmplice nos fenômenos que ela oficialmente condena, e, é claro, qualquer tentativa séria de imaginar uma ordem sociopolítica diferente. Em suma significa: diga e escreva o que quiser – desde que não se questione ou perturbe, na prática, o consenso político dominante... Hoje, a verdadeira liberdade de pensamento significa liberdade para questionar o consenso democrático-liberal “pós-ideológico” dominante – ou não significa nada”. Devemos abandonar a democracia como Significante-Mestre: “a democracia é hoje o principal fetiche político, a rejeição dos antagonismos sociais básicos: na situação eleitoral, a hierarquia social é momentaneamente suspensa, o corpo social é reduzido a uma multidão pura passível de ser contada, e aqui também o antagonismo também é suspenso”. Volto à pergunta: a crise estrutural do capital global pode se tornar um Significante-Mestre para a articulação de um novo projeto radical de emancipação humana? Considerando que essa crise é estrutural, global e multidimensional ela pode ser uma ótima escolha.
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