Esse texto se deve em parte por discussões com meu amigo filósofo Chrysantho ( www.oeventuario.blogspot.com ), mesmo desconhecendo suas críticas e aprovações em relação ao o que está escrito aqui.
I -A inconsistência do mundo se mostra pela lógica da fantasia. O plano da fantasia que estrutura a realidade do sujeito barrado funciona em relação ao Real – nesse sentido o 0 é o Real para o 1 imaginário e o 2 simbólico. Lacan enfatiza que “O Real suporta a fantasia, e a fantasia protege o Real” (Seminário 11, p. 47). Para a psicanálise lacaniana, a fantasia tem origem na falta de um relacionamento positivo entre o objeto pequeno a (causa-objeto do desejo) de nosso âmago e sua correspondência imediata na realidade fazendo com que se crie uma fantasia onde os desejos sejam realizados e, assim, a tensão seja descarregada. A fantasia é a encenação dada satisfação de um desejo imperioso que não pode ser saciado na realidade por uma impossibilidade tendo como função substituir uma satisfação real impossível por uma satisfação fantasiada possível. Dessa forma, o desejo é então parcialmente saciado sob a forma de uma fantasia criada em sua imaginação. Esse caráter inconsistente da estruturação do sujeito é correlato a estruturação do mundo.
Quando o desejo é reprimido por alguma barreira, existem duas formas de defesa do eu: o recalcamento ou a fantasia. O que ambas levam como resultado é um processo de não saciar a constante inconstante do desejo. Considerando que a transição ao modo de produção capitalista trouxe um recalque das relações de dominação e exploração já que, formalmente, parece que todos os sujeitos são livres, o que restou foram formas de fantasia para sustentar os imperativos existenciais do capital de constante expansão da experiência mercadológica na vida social dando o norte do conteúdo das relações sociais e criando nelas um fetiche primordial onde a mercadoria se torna uma escapatória do sujeito diante da sua falta a ser constituinte derivada de um trauma, de um antagonismo. Essas fantasias que se transformam historicamente pela necessidade de legitimação/ordenamento. Essa a ideologia que estrutura a realidade social, mesmo que muitos queiram denominar os tempos atuais como tempos “pós-ideológicos”.
II - Se, como entende Alain Badiou, o século XX foi baseado numa Paixão pelo Real entre a subtração (isolamento das diferenças mínimas que torna possível a emergência de sintomas que existem na ordem da realidade) e a purificação (desacordos violentos em defesa de falsas realidades), não podemos fechar sua análise a partir do triangulo lacaniano? Se entendermos o Imaginário como a subtração e o Real como a purificação violenta, o Simbólico não estaria na formalização non-sense da realidade? Ou ainda, isso não nos mostra que o Evento está inexoravelmente dentro da ordem do Ser? Nesse sentido, a política radical hoje deve ser uma política do amor por necessariamente imaginar o simbólico do Real. Arrisco dizer que temos como entender o que vou denominar de Real do Mundo pelo uso lógico da natureza do sinthoma apreendendo sua ex-sistência: o Real do mundo é potencial destrutivo que o desenvolvimento industrial-bélico construiu historicamente sob o antagonismo estrutural do capital. É nesse sentido que deve ser entendido o imperativo “socialismo ou extinção” de István Mészáros. O Real hoje é a extinção humana, pois é o impossível que devemos imaginar hoje em relação aos limites do processo de simbolização e desenvolvimento da sociedade capitalista global. Daquilo que se anuncia no simbólico como impossível é que surge o Real.
Devemos nos escandalizar com essa verdade. Se não nos escandalizamos é porque o que sustenta a reprodução dessa tríade global (trabalho – capital – Estado) é o Nome-do-Pai (o significante-mestre) da ideologia liberal tolerante multiculturalista democrática que sustenta a estrutura do desejo com a da Lei.
III - O Evento não pode ser reduzido a uma ordem positiva do Ser que transcende suas causas positivas. Aqui o Evento deve ser entendido como uma quebra radical na ordem do Ser, mesmo que seja interna a sua lógica já que deve estar localizada exatamente na mínima diferença. O Ser nasce no nível da causa do desejo. Aqui colocar-se a ética da psicanálise da qual é descentralizada em relação ao Sentido, pois no discurso do analista o agente pequeno a trabalha com o sujeito barrado a produção de significantes-mestres em busca do saber impossível. Como podemos entender isso em termos de uma política radical hoje? Parece-me que temos apenas uma opção válida hoje: ir além do Real - por uma política do semblante.
4 comentários:
Fernando,
Como ainda não domino os pressupostos da psicanálise lacaniana, sinto que não absorvi toda a densidade de seu texto, mas apreendi nele a missão que sempre carrego comigo em minha atividade intelectual: o que lemos, aprendemos, escrevemos e debatemos não serve somente para o nosso gozo (o narcisismo de considerarmos nossas idéias mais bem fundamentadas que as dos outros). Esta atividade intelectual traz consigo uma clara função social que é a de tomarmos um "banho de mundo" para nos indignarmos e escandalizarmos e nos libertarmos da carapaça de alienação que faz com que engulamos afirmações como a de que "mundo está melhor hoje do que há 30 anos" e de que "a crise não chegou ao Brasil. Toda esta atividade intelectual serve para, em última instância, termos os instrumentais para transformarmos o mundo, não em um sentido idealista gratuito, mas sob um viés revolucionário que mostre que a batalha das idéias nunca terminará e que desmascare os arautos do consenso e do fim da história (preciso citar nomes?).
Espero agora "re-mergulhar" (acho que Guimarães Rosa não tinha inventado essa) nesta batalha das idéias.
De seu amigo,
Bruno Quadros e Quadros.
Ah, esqueci de pedir-lhe a sua orientação para um "curso básico" de psicanálise e Lacan.
Ah, e não esqueça do nosso blog Urbi et Orbi (http://analise-internacional.blogspot.com/). Lá é possível debatermos este e muitos outros temas também.
Abraços.
Cara, sei que não tem nada a ver com esse teu último post, mas resolvi colocar aqui o comentário que fiz no último posto do Chrysantho a fim de compartilhar o questionamento que surgiu, já que vocês estão seguindo praticamente a mesma linha filosófica:
Seria necessário, portanto, redefinir o significado da palavra AMOR.
(a) Existe um conceito estático que remete a uma profundidade de envolvimento que se opõe a toda e qualquer liquidez pós-moderna, ou (b) justamente aquilo que chamamos de AMOR é, hoje, transfigurado a fim de se transformar em mais uma forma de prazer vinculado à rapidez e mutabilidade da era líquida?
Caso a idéia de AMOR tenha sofrido mutações à reboque das transformações políticas que instituem o prazer como imposição inerente à necessidade de circulação/acumulação de riquezas, transformando-se em mais uma forma de relação superficial, acredito sim que sexo e amor acabem por se tornar um só, inseparáveis, posto que ambos sejam líquidos. Entretanto (e faço a ressalva de que concordo com o medo do risco de envolvimento e das relações on/off line), caso o AMOR permaneça com seu sentido usual, genuíno, como aquilo que representa a profundidade das relações e a falta de domínio da razão, acredito SIM que haja separação entre amor e sexo, mas não uma separação voluntária, senão que uma separação forçada pela imposição capitalista que visa no estímulo da satisfação dos prazeres uma boa fonte de lucro.
Acho que todos continuam trabalhando com o AMOR em seu sentido secular, como aquilo que Rotterdam escreveu em seu ELogio à Loucura sobre as paixões, que obviamente nada têm de insanas, e que Foucault cita no História da Loucura a fim de exemplificar a fragilidade da separação RAZÃO x NÃO-RAZÃO.
Se fossemos pra abandonar um pouco a teoria, eu diria que o AMOR continua o mesmo. Mas como os conceitos criam os objetos, talvez seja necessário esclarecer o que é esse tal AMOR que todos citam como salvação à irredutível liquidez pós-moderna. Não sei se o Zizek define, sei que o Bauman, ao que me parece, não o fez. Enfim, não sei nem se fui claro, apesar do quase-um-testamento que escrevi. Abraço
Caros, fico muito feliz com seus comentários. Acredito que, sinteticamente, um post que eventualmente vou fazer é o da posição da crítica hoje Bruno. Ótima idéia. E Cristiano, me parece que você abordou uma questão extremamente importante sobre a diferença entre amor e sexo. Diria que não existe metalinguagem entre amor e sexo, pois eles operam em planos completamente diferentes.
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