Burguesia
e Estado no desenvolvimento capitalista no Brasil
É
claro que a expansão do capitalismo no Brasil não reproduziu a história da
construção do capitalismo nos países centrais. Mas quais são as singularidades
da burguesia e da revolução burguesa no Brasil em relação ao modelo
"clássico"? Quais foram as condicionantes para estas especificidades?
Entender
a revolução burguesa no Brasil é compreender as transformações
histórico-sociais que levaram a desagregação do regime escravocrata-senhorial e
da formação da sociedade de classes, onde não ocorreu um feudalismo muito menos
burgos, tal como fora criado historicamente pelas nações europeias.
Com a progressiva introdução de novas relações de produção no
século XIX, mesmo que ainda muito aparentadas às relações escravistas, se
iniciou uma divisão na classe dos latifundiários. Essas novas relações,
timidamente capitalistas, tem seus primeiros passos na agricultura sob a tutela
de latifundiários. Com o corte na importação de escravos estas relações
sofreram um impulso que, no caso da cafeicultura, beneficiou a acumulação de
riquezas, grandes comerciantes exportadores e o próprio Estado. Isso permite
que o latifúndio aplique parte dessa riqueza acumulada, por meio de bancos, em
atividades industriais. Nas vilas ia crescendo uma burguesia comercial e de
serviços, ambos com os pés na propriedade fundiária. Assim foram se abrindo as
portas para que se aumentassem os investimentos de latifundiários e da
burguesia comercial na formação de uma burguesia industrial, capaz de
substituir produtos antes importados, como tecidos, ampliando também o
incipiente proletariado.
De
forma inusitada, a burguesia brasileira nasceu em meados do século XIX, dentro
da sociedade escravista em decadência, num momento em que o capitalismo mundial
preparava as condições para adentrar em sua fase monopolista. A burguesia
brasileira não surge das entranhas de uma sociedade feudal inexistente, das camadas médias que se aglomeravam nos burgos
medievais em função do comércio em luta contra os feudais como no caso europeu
ou de pequeno-burgueses independentes como no caso norte-americano. A burguesia
brasileira, por seu turno, não entra em confronto com a aristocracia agrária.
Ela forma uma espécie de oposição dentro da ordem ajustando-se à tradição da
mudança gradual baseada em acordos e compromissos com o monopólio fundiário e
com a manutenção de ex-escravos nas divisas das grandes propriedades rurais.
Se
no caso da França o atraso das relações de produção capitalista no campo levara
à radicalização política da burguesia, no Brasil o latifúndio tem papel crucial
no financiamento da burguesia comercial e industrial, tornando distante a
hipótese da burguesia fazer alianças com os “de baixo” para por abaixo os
entraves para seu desenvolvimento. A aliança latifúndio-burguesia buscou
garantr que a expansão do capitalismo fosse feito sem democracia e sem envolver
a ampla participação e organização das massas populares. Por aqui o avanço político
da burguesia foi na base do “acórdão de elites”, talvez porque a burguesia
brasileira se formou junto a tudo que existia de mais reacionário das velhas
classes dominantes.
Não
se trata tanto de discutir porque a burguesa brasileira foi incapaz de executar
uma revolução democrático-burguesa no país, mas de saber como ocorreram as
diversas formas de dominação burguesa que buscaram viabilizar a valorização do
capital no Brasil. Em lugar de uma revolução
burguesa capaz de superar os obstáculos pré-capitalistas, a burguesia
brasileira seguiu a linha de menor resistência com as antigas classes
dominantes, conquistando paulatinamente a completa dominação sobre a sociedade
brasileira. Portanto, a dominação burguesa no Brasil está mais relacionada com
os mecanismos de funcionamento do modo de produção escravista colonial do que a
organização política independente, liberal ou ao menos republicana da burguesia
brasileira. Seria mais correto, inclusive, caracterizar a burguesia brasileira
como contra-revolucionária, com uma enorme desconfiança do povo, sempre pronta
para combater as massas trabalhadoras nos processos políticos do país e com
muita aversão às formas democráticas de governo. Essa burguesia não acreditava
que o escravismo era um elemento anti-capitalista, para se ter uma noção da sua
capacidade de naturalizar a desigualdade social e o autoritarismo. Gorender
até defende que se dispensem categorias como revolução e contra-revolução para
entender como a burguesia alcançou sua dominação, mas entendemos que é
exatamente por meio desse processo que a “via brasileira” da revolução burguesa
se manifesta.
A burguesia brasileira nasce não da luta contra as condições
pré-capitalistas existentes, mas de sua cooptação econômica e política, através
da dependência
aos latifundiários, às burguesias mercantil e financeira, ao Estado e ao
capital estrangeiro bem como seus traços ultraconservadores oriundos das
antigas classes dominantes, inclusive com a adoção de formas autoritárias de
Estado, peculiares àquelas classes. Em suma, no Brasil o avanço da dominação
burguesa descartou uma revolução burguesa strito senso.
O papel político revolucionário que Marx viu na burguesia
europeia acabou não vingando nos trópicos. Na Inglaterra e na França a
conquista do poder político pela burguesia foi resultante de um confronto
direito com a nobreza feudal. No Brasil o latifúndio foi se aburguesando,
reforçou o processo de acumulação capitalista e ajuda a montar o aparelho de
Estado para este fim. Por mais que a dominação burguesa no Brasil esteja cheia
de aspectos revolucionários e contra-revolucionários, a própria burguesia como
classe que disputa o poder político para implementar as melhores condições para
a reprodução do capitalismo sofreu de uma espécie de auto-sabotagem. É possível
afirmar que a burguesia brasileira tem uma origem servil, dividindo com a
classe latifundiária dominante a perspectiva de viver sem assalariados
criadores de mais-valia, sem força e nem esforços para transformar os escravos
em força de trabalho livre para o capitalismo.
Em
sua História da Burguesia Brasileira, Nelson Werneck Sodré (1967) tende
igualmente a classificar a burguesia brasileira como uma classe débil,
vacilante, que fugiu ao compromisso histórico de realizar no país a revolução
democrática e antiimperialista. Diferentemente do “modelo clássico” em que a
burguesia optara pela democracia, no Brasil a escolha se daria pelo
autoritarismo. Na verdade, nascida do latifúndio, não é estranho que a
burguesia brasileira tenha seguindo uma via conservadora de desenvolvimento. Por
isso que um dos equívocos daqueles que desejavam uma “burguesia nacional” foi
pensar que a essência ideológica da burguesia é liberal quando, na verdade, os
valores políticos da burguesia revelam traços francamente autoritários e
conservadores. A burguesia brasileira, portanto, é muito mais uma “burguesia
interna” do que uma “burguesia nacional”, já que não se inclina ao confronto
com os latifundiários e nem à formação de alianças com a classe trabalhadora.
Ela prefere, antes de tudo, formar alianças com outros setores da classe
dominante. Por mais ainda persistam tradições econômicas e sociais que sejam
verdadeiros obstáculos a otimização dos investimentos e a reprodução do capital
em grande escala, a burguesia brasileira preferiu ficar cega para uma visão
mais ampliada dos interesses do capitalismo brasileiro. Conforme Chico de
Oliveira,
Ao contrário da revolução
burguesa "clássica", a mudança das classes proprietárias rurais pelas
novas classes burguesas empresárias industriais não exigirá, no Brasil, uma
ruptura total do sistema, não apenas por razões genéticas, mas por razões
estruturais. Aqui, passa-se uma crise nas relações externas com o resto do
sistema, enquanto no modelo "clássico" a crise é na totalidade da
economia e da sociedade. No modelo europeu, a hegemonia das classes
proprietárias rurais é total e paralisa qualquer desenvolvimento das forças
produtivas, pelo fato mesmo de que as economias "clássicas" não
entravam em nenhum sistema que lhes fornecesse os bens de capital que necessitavam
para sua expansão: ou elas produziriam tais bens de capital ou não haveria
expansão do capitalismo, enquanto sistema produtor de mercadorias. A ruptura
tem que se dar, em todos os níveis e em todos os planos. Aqui, as classes
proprietárias rurais são parcialmente hegemônicas, no sentido de manter o
controle das relações externas da economia, que lhes propiciava a manutenção do
padrão de reprodução do capital adequado para o tipo de economia
primário-exportadora. Com o colapso das relações externas, essa hegemonia
desemboca no vácuo; mas, nem por isso, "ipso facto" entram em ação
mecanismos automáticos que produzissem a industrialização por
"substituição de importações". Estavam dadas as condições
necessárias, mas não suficientes. A condição suficiente será encontrar um novo
modo de acumulação que substitua o acesso externo da economia
primário-exportadora. E, para tanto, é preciso adequar antes as relações de
produção. O populismo é a larga operação dessa adequação, que começa por
estabelecer a forma da junção do "arcaico" e do "novo",
corporativista como se tem assinalado, cujo epicentro será a fundação de novas
formas de relacionamento entre o capital e o trabalho, a fim de criar as fontes
internas da acumulação. A legislação trabalhista criará as condições para isso.
Um dos seus requisitos estruturais é o de manter as condições de reprodução das
atividades agrícolas, não excluindo, portanto, totalmente, as classes
proprietárias rurais nem da estrutura do poder nem dos ganhos da expansão do
sistema. Como contrapartida, a legislação trabalhista não afetará as relações
de produção agrária, preservando um modo de "acumulação primitiva"
extremamente adequado para a expansão global. Esse "pacto estrutural"
preservará modos de acumulação distintos entre os setores da economia, mas de
nenhum modo antagônicos, como pensa o modelo cepalino. Nesta base é que
continuará a crescer a população rural ainda que tenha participação declinante
no conjunto da população total, e por essa "preservação" é que as formas
nitidamente capitalistas de produção não penetram totalmente na área rural,
mas, bem ao, contrário, contribuem para a reprodução tipicamente
não-capitalista. Assim, dá-se uma primeira "especificidade
particular" do modelo brasileiro, pois, ao contrário do "clássico",
sua progressão não requer a destruição completa do antigo modo de acumulação.
Esta
transição ocorre num contexto em que o domínio da oligarquia latifundiária e do
capital monopolista estrangeiro se torna cada vez mais insuportável, como se
explicitou nas grandes greve de 1917-1920, na guerra camponesa do Contestado,
na Coluna Prestes, levantes populares e com a própria Revolução de 30. Com esta
última a situação da burguesia brasileira começou a mudar. Incapaz de assumir
uma posição hegemônica na sociedade (como também não tinha a intenção de obter
tal façanha) a burguesia brasileira relegou ao Estado o papel de agente central
do processo de modernização. Isso não quer dizer que a burguesia brasileira
tenha ficado fora dos assuntos da política nacional. Ao contrário, apesar de
sua origem servil, a burguesia brasileira foi inegavelmente ativa após 1930. Os conflitos entre frações regionais e
setoriais da burguesia brasileira, que se aguçavam nos anos 1920, acabaram
resultando em uma revolução política que, mais do concluir, abriu um período de
lutas associadas ligadas à nova configuração do desenvolvimento capitalista no
país, modificou a relação entre Estado e economia, e mesmo das relações entre
capital e trabalho. As pressões sociais vinham de agitações operárias, do
descontentamento das novas camadas urbanas, o crescente envolvimento dos
militares na política e a inquietação no campo por sitiantes, colonos, caboclos
e outros. Por outro lado, setores agrários ligados ao mercado interno queriam
ganhar espaço no jogo político contra o federalismo presidido pelos setores
agroexportadores. Foi nesse contexto que Antônio Carlos falou “façamos a
revolução, antes que o povo a faça”.
Vai se formando um bloco que unia diferentes forças
políticas, contando com os interesses da cafeicultura, da burguesia industrial
emergente, a burocracia política e profissional nascente no próprio seio do
Estado, trabalhadores urbanos e setores da velha oligarquia voltados para o
mercado interno. Mas porque a oligarquia dissidente que assume a predominância
política encaminhará um projeto reformador do Estado colocando
o Brasil na esteira da industrialização? Weneck explica este paradoxo pelos
pontos convergentes, como as demandas por diversificação do aparato produtivo e
pela ampliação do sistema de participação política. Embora a indústria
estivesse em pleno desenvolvimento, a base agrária continuava a comandar os
movimentos da econômica brasileira, apesar do consenso em fortalecer o mercado
interno e ampliar as bases da atuação estatal. Desse modo, o trabalhador rural
não poderia desfrutar dos mesmos benefícios que os trabalhadores urbanos, pois
da sua produção dependia grande parte da economia nacional, ou ao menos uma
parte grande o suficiente para impedir que os direitos trabalhistas se
circunscrevessem também a eles. Estas contradições demonstraram que “depois de
uma fase em que os seus representantes estiveram quase totalmente fora do
poder, após 1930 ela ganhou paulatinamente ascendência sobre os governantes e
fez-se ouvir nas decisões da política econômica” (Ianni, 1989, p. 91). Nesse
período o Estado se manteve como o “mais importante centro de decisão” na
política de desenvolvimento nacional, contudo, longe de demonstrar passividade
em sua relação com as esferas de poder e não almejar a conquista da hegemonia
no interior da sociedade brasileira, o empresariado fabril se empenhou na
tarefa de impor a sua dominação de classe ao conjunto social. Conforme observa
Ianni, “essa burguesia não está ausente na formulação das diretrizes
governamentais, para incentivo direto e indireto da economia. Ainda que muitas
vezes aparentando timidez ou falta de discernimento, a burguesia industrial
assume de modo crescente as suas possibilidades de atuação sobre a política
econômica estatal”. Desta forma, a burguesia “define de modo claro suas
relações com o Estado”, às vezes infiltrando-se no aparelho estatal, outras
fazendo-o operar em seu benefício, procurando converter as relações de produção
em relações de dominação de classe. Conforme observa Ianni, a marcante presença
do Estado na economia brasileira seria também algo desejado pelo empresariado
industrial, que via o planejamento e a disciplinarização econômica exercidos
pelos órgãos oficiais como fatores em si positivos para a produção. Enfim, para
Ianni, a expansão do capitalismo industrial no país não foi um processo forjado
monoliticamente pelo Estado. Pelo contrário, teria sido o resultado de um largo
e crescente convívio entre a burguesia industrial e o poder público. Depois da
Revolução de 1930, paulatinamente, os membros dessa burguesia nascente
procuraram interferir nas decisões do governo, no sentido de estimular-se a
industrialização e planificar-se o desenvolvimento econômico nacional. Quando as
transformações da estrutura econômica abriram possibilidades de ampliação e
diversificação da produção industrial, a burguesia industrial nascente, os
técnicos e o governo perceberam que o aparelho estatal precisava ser convertido
em conformidade com a nova situação, favorecendo-a. As possibilidades de
desenvolvimento das forças produtivas somente poderiam ser aproveitadas em
maior escala através da reorientação da política econômica do Estado. E foi o
que preconizou a própria liderança empresarial, juntamente com os governantes (1989,
p. 94).
A
revolução burguesa durante a Era Vargas demonstrou que no correr dos tempos a
burguesia se transforma. Em 1930 a burguesia brasileira chega ao poder na
garupa das oligarquias dissidentes, o que modifica
substancialmente as relações entre classes e frações de classe, e entre Estado
e economia, ajudando a redefinir a via de desenvolvimento capitalista no Brasil
em direção ao mercado interno, à integração regional, à industrialização e à
sociedade urbana de massas. A crise econômica e o processo político que levou à
Revolução de 1930 direcionaram ao novo governo um conjunto de solicitações novas,
exigindo graus de liberdade para a ação econômica do Estado no sentido da
incorporação de novas funções, da centralização federal e de modernização do
aparato administrativo com gastos crescentes à medida que inúmeras instituições
universais ou setoriais eram criadas ou reformuladas. Como desdobramento da
Revolução de 1930, a união federal assumiu tarefas novas na regulação de
setores econômicos e na reprodução das relações sociais, com uma intervenção
crescente, por exemplo, sobre preços, salários, relações de trabalho, sindicatos
patronais e trabalhistas, sistema educacional e de saúde, rede de transporte, infraestrutura
básica e mesmo produção direta de insumos (Draibe, 1985). Neste período surgiu
com espantosa rapidez todo um arcabouço de instituições de regulação e controle
das atividades econômicas do país, que serviria de base para a constituição do
Estado capitalista no Brasil. Foram criados seis órgãos de planejamento com
atribuições de alcance nacional: o Departamento de Administrativo do Serviço
Público (DASP); o Conselho Federal do Comércio Exterior (CFCE); o Conselho
Técnico de Economia e Finanças (CTEF); a Coordenação de Mobilização Econômica
(CME); o Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial (CNPIC) e a
Comissão do Planejamento Econômico (CPE). A burguesia industrial
brasileira também ganhou musculatura neste período, em especial pelo processo de substituição dos bens manufaturados
que antes eram importados pela produção nacional e pela a criação de diversas
empresas estatais. A indústria desta época se concentrava, basicamente, na
produção de bens de consumo que exigiam máquinas e equipamentos comuns, destacando-se
as indústrias alimentícias, farmacêuticas, metalúrgica, artigos de higiene e
limpeza, perfumaria, entre outras. Como resultado desta expansão, verificou-se
que em 1935 a produção industrial foi 27% maior que a de 1929, chegando a ser
90% maior que a de 1925. Em termos absolutos, nos anos de 1920 foram criados
4.697 estabelecimentos industriais, enquanto que na década seguinte foram
criados 12.232. Antes de 1940 o valor da produção industrial já é superior ao
da produção agrícola sob o domínio do latifúndio capitalista.
É
por isso que, para Florestan Fernandes, o que a Revolução Burguesa no Brasil
tem de específico é que, diferentemente das revoluções burguesas clássicas, ela
não constitui apenas num momento político, em que a burguesia toma de
"assalto" o controle de poder e do Estado, mas sim, um processo de
transformação continuada, em que, ao mesmo tempo, tanto se constrói a estrutura
econômico-industrial, como se formam e se diferenciam as classes sociais e as
estruturas políticas do próprio Estado. Na verdade, aos nossos olhos, a
revolução burguesa no Brasil é uma revolução sem revolução e sem burguesia. Não
é uma “revolução”, mas arranjos de cúpula, de “cima para baixo”. Nem é
“burguesa”, pois é o Estado quem a dirige.
É claro que mesmo que a burguesia industrial não tenha feito
“politicamente” a Revolução de 1930, logo percebeu que o novo caminho seguido
pela sociedade os tornava fração dominante entre as classes dirigentes. Seu
progresso representava o progresso de todos, em especial do mercado interno. A partir da expansão industrial nas décadas
de 30 e 40, a burguesia industrial brasileira consegue, a partir da década de
1950, estabelecer sua própria dominação à reboque nas mudanças no capitalismo
mundial após a Segunda Guerra Mundial. De resistência à industrialização dos
países dependentes, a burguesia monopolista estrangeira passa a atuar para o
desenvolvimento industrial destes países. Agora não temos apenas sistemas
produtivos capitalistas nacionais articulados com sistemas comerciais e
financeiros internacionais. Ocorre a emergência de corporações transnacionais
que, em especial no governo Jucelino (1956-60), ocupam setores industriais
estratégicos e o capital estrangeiro transforma-se no principal elemento do
desenvolvimento industrial no Brasil. A crescente exportação de elementos do
modo de produção dos países mais avançados amplia o poder burguês, incluindo o
capitalismo local, num rápido processo de modernização dos meios de comunicação
e transporte, ampliação de indústrias existentes e implantação da indústria
automobilística, de tratores, construção naval, mecânica pesada,
cimento, papel e celulose, ao lado da triplicação da capacidade da siderurgia e a base de uma indústria de bens de
produção. Neste processo grande parte da burguesia cresceu, inclusive com a
nacionalização da burguesia monopolista estrangeira, passando a ser uma
burguesia local que explorava diretamente a força de trabalho brasileira. Como
a burguesia estrangeira também destruiu alguns setores da brasileira se
disseminou a ideia que a “burguesia nacional” conseguiria seguir um caminho
revolucionário para desenvolver-se. Triste ilusão.
Os descontentamentos da burguesia depois de
1954 transformaram-se num efetivo golpe militar contra o povo brasileiro,
contra o poder eleito e as instituições democráticas nacionais. O maior impasse
da crise brasileira no século XX foi desembocar em 1964, depois de 34 anos do
início da Era Vargas até Jango, passando por JK. O que marca este período é a
elevação do nível de consciência social e política, o que causava horror à
burguesia, e campanhas golpistas sistemáticas que vinham crescendo desde
1950-51, durante a luta pelo retorno de Getúlio Vargas ao poder, passando pela
campanha político-militar para impedir a posse de JK até as novas e sucessivas
tentativas de golpes dos remanescentes da “República do Galeão”. A imprensa e a
Igreja propagava boatos e calúnias sobre as hipotéticas conspirações
comuno-sindicalista dispostos a um golpe de Estado. Mas foi nas ruas que se
manifestou o impasse da crise brasileira. Logo antes do golpe de 1964, o Brasil
vivia algo como um momento pré-revolucionário, ou seja, em que mudanças
estruturais na economia e sociedade brasileira tinham forte potencial para
ocorrer.
Para
reagir à pressão exercida pelas massas populares e compatibilizar-se com os
interesses externos, a estratégia da burguesia uma contra-revolução auto
defensiva. O que começara como um putsch mineiro assumido pelos generais Luiz
Guedes e Olimpio Mourão às ordens do banqueiro-governador Antônio Muricy acabou
com a união entre as Forças Armadas, em conjunto com certos setores
conservadores e liberais da sociedade civil, com o objetivo de encerrar o
governo de João Goulart (09/09/1961 a 01/04/1964) causando uma ruptura na ordem
legalmente estabelecida e contrariando os princípios de obediência ao poder
constituído. Passa-se então à uma associação íntima com o capitalismo
financeiro internacional, bem como o Estado torna-se um instrumento exclusivo
do poder burguês e, principalmente, criam-se os meios para exterminar qualquer ideia
e políticas divergentes. Com o golpe militar a “via prussiana” da revolução
burguesa brasileira evolui e passa a uma “via militar-fascista-civil” do desenvolvimento
capitalista. Nessa época o poder estatal é organizado a partir da doutrina de
“segurança e desenvolvimento”, apoiado por um poderoso bloco industrial onde
predominaram os interesses da grande burguesia financeira e monopolista
estrangeira.
Para
impulsionar a industrialização acelerada que se pretende, torna-se imperativo
preciso resolver o problema do mercado interno da força de trabalho, ampliar a
quantidade de trabalhadores livres de qualquer propriedade dos meios de
produção que ainda continuava no latifúndio, em terras devolutas e outros
locais exercendo atividade agrícolas. Para o capital monopolista era preciso a
libertação completa dos trabalhadores dos latifúndios de suas relações
pré-capitalistas, isso é, modernizar o latifúndio e realizar uma vasta
expropriação de camponeses pelos meios mais diversos transformando-os em trabalhadores
despossuídos que tivessem a necessidade de vender sua força de trabalho para
sobreviver. Dessa forma, como escreve Wladimir Pomar, “a burguesia mantém sua aliança
com os latifundiários, mas obriga-os a modernizar-se. Consegue produzir, assim,
uma rápida concentração e centralização de capital, modernização das forças
produtivas e expropriação dos camponeses e parcelas significativas da pequena
burguesia urbana. E transforma o Estado no famoso Leviatã que subordina toda a
sociedade à lógica do capital monopolista”. Montou-se um sistema produtivo
baseado no grande capital monopolista, apoiado pelo crescimento do investimento
público, particularmente das empresas estatais. Como nota M. C.
Tavares, os governos militares consideravam imprescindível para o
desenvolvimento nacional o aprofundamento da coexistência entre empresas
públicas, estrangeiras e nacionais (o chamado tripé da economia
brasileira) para criar um “novo” padrão de reprodução do capital. Para manter
este padrão de dependência externa houveram mudanças no sistema financeiro, o
que levou a uma
substancial elevação das receitas
fiscais passando pelo crescimento da dívida pública e um
certo afrouxamento da legislação sobre o capital estrangeiro.
Na metade dos anos 1970 este modelo
começa entrar em crise. É o fim do auge do via autoritária de desenvolvimento
encabeçada pela burguesia brasileira junto com o capital monopolista
estrangeiro e o latifúndio numa escalada de perseguições, torturas e mortes sem
precedentes da história da revolução burguesa. Foi necessário mais de vinte anos de ditadura militar-civil para
que as forças populares do país deixassem que acreditar que a “burguesia
nacional” tivesse papel revolucionário ou que a via democrática poderia ser
construída pela burguesia brasileira. O esgotamento da ditadura
desembocou no fortalecimento do movimento social e do campo popular, com a
fundação do PT, CUT e MST, além da mobilização popular que precedeu a
Assembleia Constituinte. Mesmo assim, com a redemocratização a sociedade
brasileira já havia sido expurgada das lideranças sociais e movimento políticos
mais capazes. A crise da dívida externa, de 1981 a 1983, abriu um período em
que a burguesia e seus lacaios buscaram de toda forma limitar por toda a década
a redemocratização ao plano político-jurídico. Este impasse só foi resolvido,
finalmente, com a eleição de Collor contra Lula em 1989. Na verdade, a década
de 1990 se iniciou em 1989, quando a burguesia se une em
torno da via de desenvolvimento neoliberal. Após
a crise da dívida, diversas tentativas de estabilização inflacionária,
fracassos dos planos econômicos, o projeto neoliberal vai ganhando espaço
político no país. As orientações
neoliberais foram acolhidas por amplos setores da sociedade brasileira, de
governantes e empresários a lideranças do movimento popular e sindical e
intelectuais.
Com a derrota de Lula e Brizola, Collor encabeça um
novo pacto de elite, agora não contra a ditadura, mas contra o Estado e a
regulação econômica. Como vimos, desde 1930, na Era Vargas, houve um pacto
entre os capitais estatais e os capitais privados, tanto nacionais quanto
estrangeiros. Ao longo do tempo, a participação do capital estrangeiro variou,
as vezes por crises internacionais, por movimentos sociais pela estatização de
setores econômicos ou ainda por disputas internas entre os próprios segmentos
capitalistas. O período JK foi marcado por um ingresso intenso de capitais
estrangeiros, embora acompanhado pelo fortalecimento relativo dos capitais
estatais e privados nacionais. O regime militar, nascido com um forte discurso
anti-desenvolvimentista-estatal, paradoxalmente ficou marcado por uma abertura
ainda maior à entrada de capitais externos, mas também por um intenso processo
de criação de novas estatais. Já “longa década” de 1990, aberta por Collor e
ampliada por FHC, se baseou em quatro pontos: abertura econômica,
desestatização, desregulamentação e flexibilização das relações de trabalho. O
Estado deveria limitar-se a promover os interesses do mercado, garantir a “lei
e a ordem” e os contratos privados. Se exigia que o Estado se retirasse das
atividades diretamente produtivas e financiasse as fusões patrocinadas pelas
grandes corporações transnacionais.
Como nota Wladimir Pomar, o modelo neoliberal, de
Collor à FHC, entre 1989 e 2002, caracterizou-se pela tentativa de quebra do
antigo pacto, com uma política voltada para a privatização das estatais e de
ativos privados nacionais, na expectativa de que poderíamos viver na “nova
ordem mundial”, fundada em serviços e na informática. Neste período a
participação dos capitais estrangeiros na economia brasileira cresceu muito e
de maneira muitas vezes nitidamente corrupta. A novidade deste modelo é que, ao
contrário da antiga participação, em que os capitais privados estrangeiros
construíam novas plantas e, portanto, colaboravam de maneira ativa para a
transferência de elementos do modo de produção capitalista para o Brasil,
durante o período Collor-FHC os capitais estrangeiros eram estimulados a
comprar empresas já em funcionamento, mesmo que fosse para fechá-las e evitar
que continuassem como competidores indesejáveis. Grande parte das empresas
estatais foi vendida, principalmente a multinacionais, para fabricar apenas
produtos de alta lucratividade no mercado externo, como ocorreu com as
siderúrgicas. Inúmeras plantas privadas também foram vendidas para capitais
externos. Muitas delas foram fechadas e seus equipamentos transferidos e relocalizados
em países de força de trabalho mais barata, como aconteceu com diversas
indústrias químicas, que tornaram o Brasil de produtor em importador. Limitação
de investimentos e de novas atividades, sucateamento da infraestrutura,
fragmentação das cadeias produtivas, desintegração de parte substancial do
parque industrial e expansão e favelização da pobreza e da miséria resultaram
das ações de economia política que procuraram incluir o Brasil na globalização
capitalista como território submisso ao capital transnacional.
A dependência estrita dos fluxos financeiros
internacionais, a interdição dos sentidos desenvolvimentistas do Estado
brasileiro na economia por meio da privatização e da desregulamentação, a
maximização das vantagens do rentismo através de uma super-ortodoxia
monetarista do Banco Central, o debilitamento do setor produtivo nacional e,
principalmente, a corrosão das bases sociais das classes trabalhadoras, com a
crescente marginalização social dos pobres, compunham o pano de fundo das
vitórias políticas do neoliberalismo no Brasil nos anos 1990. No campo, os
tempos foram de maximização dos poderes econômicos do agronegócio e de pressão
sobre as bases produtivas da agricultura familiar, além da criminalização dos
movimentos de luta pela terra.
Assim as corporações estrangeiras e nacionais aumentaram, e muito, sua
participação na economia brasileira e na apropriação da riqueza por ela gerada,
enquanto segmentos médios e pequenos inteiros foram desestruturados, e o mundo
do trabalho, esse setor da sociedade que é a raiz de qualquer sistema
econômico, foi fracionado, desorganizado e dispersado. Houve uma ampla
desarticulação das cadeias produtivas, aumentando a desnacionalização da
riqueza e o alastramento das massas marginalizadas. O desmonte e
desnacionalização da parte nacional do parque produtivo do país abriu espaço
para a ação da concorrência externa intensificar aquilo que hoje se proclama
como especialização regressiva, perda dos setores mais avançados
tecnologicamente, esgarçamento das cadeias produtivas e desindustrialização,
levando a uma crise econômica, social e política sistêmica, da qual ainda não
saímos.
Do tripé da economia nacional passamos para um
modelo de um só pé, onde passamos a ser ainda mais dependentes do que antes dos
humores da economia internacional, e apostam todas nossas fichas nas virtudes
dos mercados desregulados capazes, segundo eles, de fazerem uma correta,
eficiente e equilibrada alocação dos recursos provenientes dos investidores
privados, sobretudo os internacionais.
Do ponto de vista da revolução burguesa no Brasil,
o neoliberalismo (e tudo que veio junto com ele, desde o Plano Real até a crise
de 1999) é uma vergonha ou uma farsa, cujo avesso do “renascimento” proposto
por FHC foi o efêmero crescimento, a ampliação dos déficits constantes da
balança de pagamentos e os juros altos como opção para atrair capital
estrangeiro, cortes dos gastos públicos, restrições de oferta de crédito e as
privatizações que acabou por fragmentar as atividades estatais, descapitalizar
as empresas, estagnar investimentos e à perda generalizada da capacidade
competitiva do país. O neoliberalismo apenas reafirmou o caráter predatório da
burguesia brasileira que quase cometeu suicídio, destruindo as bases da
burguesia industrial, comercial e financeira. Na verdade, de Collor a FHC,
nesta década mais que perdida, vivemos uma megaoperação de pilhagem do
patrimônio brasileiro cujo resultado é até hoje difícil dimensionar pelos
prejuízos irreparáveis que suas medidas causou e continua causando ao conjunto
do sistema produtivo nacional.
Ao sair do governo, FHC deixou ao sucessor e as novas gerações a economia
brasileira num profundo processo de endividamento, estagnação e devastação da
economia nacional com a ampliação do poder do capital monopolista estrangeiro.
Esta foi a principal razão para que nas eleições de 2002 o candidato para
continuar este programa, José Serra, foi derrotado por Lula.
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