domingo, 23 de dezembro de 2012

Revolução burguesa no Brasil, do século XIX ao XXI


Burguesia e Estado no desenvolvimento capitalista no Brasil

É claro que a expansão do capitalismo no Brasil não reproduziu a história da construção do capitalismo nos países centrais. Mas quais são as singularidades da burguesia e da revolução burguesa no Brasil em relação ao modelo "clássico"? Quais foram as condicionantes para estas especificidades?

Entender a revolução burguesa no Brasil é compreender as transformações histórico-sociais que levaram a desagregação do regime escravocrata-senhorial e da formação da sociedade de classes, onde não ocorreu um feudalismo muito menos burgos, tal como fora criado historicamente pelas nações europeias.

Com a progressiva introdução de novas relações de produção no século XIX, mesmo que ainda muito aparentadas às relações escravistas, se iniciou uma divisão na classe dos latifundiários. Essas novas relações, timidamente capitalistas, tem seus primeiros passos na agricultura sob a tutela de latifundiários. Com o corte na importação de escravos estas relações sofreram um impulso que, no caso da cafeicultura, beneficiou a acumulação de riquezas, grandes comerciantes exportadores e o próprio Estado. Isso permite que o latifúndio aplique parte dessa riqueza acumulada, por meio de bancos, em atividades industriais. Nas vilas ia crescendo uma burguesia comercial e de serviços, ambos com os pés na propriedade fundiária. Assim foram se abrindo as portas para que se aumentassem os investimentos de latifundiários e da burguesia comercial na formação de uma burguesia industrial, capaz de substituir produtos antes importados, como tecidos, ampliando também o incipiente proletariado.

De forma inusitada, a burguesia brasileira nasceu em meados do século XIX, dentro da sociedade escravista em decadência, num momento em que o capitalismo mundial preparava as condições para adentrar em sua fase monopolista. A burguesia brasileira não surge das entranhas de uma sociedade feudal inexistente, das camadas médias que se aglomeravam nos burgos medievais em função do comércio em luta contra os feudais como no caso europeu ou de pequeno-burgueses independentes como no caso norte-americano. A burguesia brasileira, por seu turno, não entra em confronto com a aristocracia agrária. Ela forma uma espécie de oposição dentro da ordem ajustando-se à tradição da mudança gradual baseada em acordos e compromissos com o monopólio fundiário e com a manutenção de ex-escravos nas divisas das grandes propriedades rurais.

Se no caso da França o atraso das relações de produção capitalista no campo levara à radicalização política da burguesia, no Brasil o latifúndio tem papel crucial no financiamento da burguesia comercial e industrial, tornando distante a hipótese da burguesia fazer alianças com os “de baixo” para por abaixo os entraves para seu desenvolvimento. A aliança latifúndio-burguesia buscou garantr que a expansão do capitalismo fosse feito sem democracia e sem envolver a ampla participação e organização das massas populares. Por aqui o avanço político da burguesia foi na base do “acórdão de elites”, talvez porque a burguesia brasileira se formou junto a tudo que existia de mais reacionário das velhas classes dominantes.

Não se trata tanto de discutir porque a burguesa brasileira foi incapaz de executar uma revolução democrático-burguesa no país, mas de saber como ocorreram as diversas formas de dominação burguesa que buscaram viabilizar a valorização do capital no Brasil. Em lugar de uma revolução burguesa capaz de superar os obstáculos pré-capitalistas, a burguesia brasileira seguiu a linha de menor resistência com as antigas classes dominantes, conquistando paulatinamente a completa dominação sobre a sociedade brasileira. Portanto, a dominação burguesa no Brasil está mais relacionada com os mecanismos de funcionamento do modo de produção escravista colonial do que a organização política independente, liberal ou ao menos republicana da burguesia brasileira. Seria mais correto, inclusive, caracterizar a burguesia brasileira como contra-revolucionária, com uma enorme desconfiança do povo, sempre pronta para combater as massas trabalhadoras nos processos políticos do país e com muita aversão às formas democráticas de governo. Essa burguesia não acreditava que o escravismo era um elemento anti-capitalista, para se ter uma noção da sua capacidade de naturalizar a desigualdade social e o autoritarismo. Gorender até defende que se dispensem categorias como revolução e contra-revolução para entender como a burguesia alcançou sua dominação, mas entendemos que é exatamente por meio desse processo que a “via brasileira” da revolução burguesa se manifesta.

A burguesia brasileira nasce não da luta contra as condições pré-capitalistas existentes, mas de sua cooptação econômica e política, através da dependência aos latifundiários, às burguesias mercantil e financeira, ao Estado e ao capital estrangeiro bem como seus traços ultraconservadores oriundos das antigas classes dominantes, inclusive com a adoção de formas autoritárias de Estado, peculiares àquelas classes. Em suma, no Brasil o avanço da dominação burguesa descartou uma revolução burguesa strito senso.

O papel político revolucionário que Marx viu na burguesia europeia acabou não vingando nos trópicos. Na Inglaterra e na França a conquista do poder político pela burguesia foi resultante de um confronto direito com a nobreza feudal. No Brasil o latifúndio foi se aburguesando, reforçou o processo de acumulação capitalista e ajuda a montar o aparelho de Estado para este fim. Por mais que a dominação burguesa no Brasil esteja cheia de aspectos revolucionários e contra-revolucionários, a própria burguesia como classe que disputa o poder político para implementar as melhores condições para a reprodução do capitalismo sofreu de uma espécie de auto-sabotagem. É possível afirmar que a burguesia brasileira tem uma origem servil, dividindo com a classe latifundiária dominante a perspectiva de viver sem assalariados criadores de mais-valia, sem força e nem esforços para transformar os escravos em força de trabalho livre para o capitalismo.

Em sua História da Burguesia Brasileira, Nelson Werneck Sodré (1967) tende igualmente a classificar a burguesia brasileira como uma classe débil, vacilante, que fugiu ao compromisso histórico de realizar no país a revolução democrática e antiimperialista. Diferentemente do “modelo clássico” em que a burguesia optara pela democracia, no Brasil a escolha se daria pelo autoritarismo. Na verdade, nascida do latifúndio, não é estranho que a burguesia brasileira tenha seguindo uma via conservadora de desenvolvimento. Por isso que um dos equívocos daqueles que desejavam uma “burguesia nacional” foi pensar que a essência ideológica da burguesia é liberal quando, na verdade, os valores políticos da burguesia revelam traços francamente autoritários e conservadores. A burguesia brasileira, portanto, é muito mais uma “burguesia interna” do que uma “burguesia nacional”, já que não se inclina ao confronto com os latifundiários e nem à formação de alianças com a classe trabalhadora. Ela prefere, antes de tudo, formar alianças com outros setores da classe dominante. Por mais ainda persistam tradições econômicas e sociais que sejam verdadeiros obstáculos a otimização dos investimentos e a reprodução do capital em grande escala, a burguesia brasileira preferiu ficar cega para uma visão mais ampliada dos interesses do capitalismo brasileiro. Conforme Chico de Oliveira,

Ao contrário da revolução burguesa "clássica", a mudança das classes proprietárias rurais pelas novas classes burguesas empresárias industriais não exigirá, no Brasil, uma ruptura total do sistema, não apenas por razões genéticas, mas por razões estruturais. Aqui, passa-se uma crise nas relações externas com o resto do sistema, enquanto no modelo "clássico" a crise é na totalidade da economia e da sociedade. No modelo europeu, a hegemonia das classes proprietárias rurais é total e paralisa qualquer desenvolvimento das forças produtivas, pelo fato mesmo de que as economias "clássicas" não entravam em nenhum sistema que lhes fornecesse os bens de capital que necessitavam para sua expansão: ou elas produziriam tais bens de capital ou não haveria expansão do capitalismo, enquanto sistema produtor de mercadorias. A ruptura tem que se dar, em todos os níveis e em todos os planos. Aqui, as classes proprietárias rurais são parcialmente hegemônicas, no sentido de manter o controle das relações externas da economia, que lhes propiciava a manutenção do padrão de reprodução do capital adequado para o tipo de economia primário-exportadora. Com o colapso das relações externas, essa hegemonia desemboca no vácuo; mas, nem por isso, "ipso facto" entram em ação mecanismos automáticos que produzissem a industrialização por "substituição de importações". Estavam dadas as condições necessárias, mas não suficientes. A condição suficiente será encontrar um novo modo de acumulação que substitua o acesso externo da economia primário-exportadora. E, para tanto, é preciso adequar antes as relações de produção. O populismo é a larga operação dessa adequação, que começa por estabelecer a forma da junção do "arcaico" e do "novo", corporativista como se tem assinalado, cujo epicentro será a fundação de novas formas de relacionamento entre o capital e o trabalho, a fim de criar as fontes internas da acumulação. A legislação trabalhista criará as condições para isso. Um dos seus requisitos estruturais é o de manter as condições de reprodução das atividades agrícolas, não excluindo, portanto, totalmente, as classes proprietárias rurais nem da estrutura do poder nem dos ganhos da expansão do sistema. Como contrapartida, a legislação trabalhista não afetará as relações de produção agrária, preservando um modo de "acumulação primitiva" extremamente adequado para a expansão global. Esse "pacto estrutural" preservará modos de acumulação distintos entre os setores da economia, mas de nenhum modo antagônicos, como pensa o modelo cepalino. Nesta base é que continuará a crescer a população rural ainda que tenha participação declinante no conjunto da população total, e por essa "preservação" é que as formas nitidamente capitalistas de produção não penetram totalmente na área rural, mas, bem ao, contrário, contribuem para a reprodução tipicamente não-capitalista. Assim, dá-se uma primeira "especificidade particular" do modelo brasileiro, pois, ao contrário do "clássico", sua progressão não requer a destruição completa do antigo modo de acumulação.

Esta transição ocorre num contexto em que o domínio da oligarquia latifundiária e do capital monopolista estrangeiro se torna cada vez mais insuportável, como se explicitou nas grandes greve de 1917-1920, na guerra camponesa do Contestado, na Coluna Prestes, levantes populares e com a própria Revolução de 30. Com esta última a situação da burguesia brasileira começou a mudar. Incapaz de assumir uma posição hegemônica na sociedade (como também não tinha a intenção de obter tal façanha) a burguesia brasileira relegou ao Estado o papel de agente central do processo de modernização. Isso não quer dizer que a burguesia brasileira tenha ficado fora dos assuntos da política nacional. Ao contrário, apesar de sua origem servil, a burguesia brasileira foi inegavelmente ativa após 1930. Os conflitos entre frações regionais e setoriais da burguesia brasileira, que se aguçavam nos anos 1920, acabaram resultando em uma revolução política que, mais do concluir, abriu um período de lutas associadas ligadas à nova configuração do desenvolvimento capitalista no país, modificou a relação entre Estado e economia, e mesmo das relações entre capital e trabalho. As pressões sociais vinham de agitações operárias, do descontentamento das novas camadas urbanas, o crescente envolvimento dos militares na política e a inquietação no campo por sitiantes, colonos, caboclos e outros. Por outro lado, setores agrários ligados ao mercado interno queriam ganhar espaço no jogo político contra o federalismo presidido pelos setores agroexportadores. Foi nesse contexto que Antônio Carlos falou “façamos a revolução, antes que o povo a faça”.

Vai se formando um bloco que unia diferentes forças políticas, contando com os interesses da cafeicultura, da burguesia industrial emergente, a burocracia política e profissional nascente no próprio seio do Estado, trabalhadores urbanos e setores da velha oligarquia voltados para o mercado interno. Mas porque a oligarquia dissidente que assume a predominância política encaminhará um projeto reformador do Estado colocando o Brasil na esteira da industrialização? Weneck explica este paradoxo pelos pontos convergentes, como as demandas por diversificação do aparato produtivo e pela ampliação do sistema de participação política. Embora a indústria estivesse em pleno desenvolvimento, a base agrária continuava a comandar os movimentos da econômica brasileira, apesar do consenso em fortalecer o mercado interno e ampliar as bases da atuação estatal. Desse modo, o trabalhador rural não poderia desfrutar dos mesmos benefícios que os trabalhadores urbanos, pois da sua produção dependia grande parte da economia nacional, ou ao menos uma parte grande o suficiente para impedir que os direitos trabalhistas se circunscrevessem também a eles. Estas contradições demonstraram que “depois de uma fase em que os seus representantes estiveram quase totalmente fora do poder, após 1930 ela ganhou paulatinamente ascendência sobre os governantes e fez-se ouvir nas decisões da política econômica” (Ianni, 1989, p. 91). Nesse período o Estado se manteve como o “mais importante centro de decisão” na política de desenvolvimento nacional, contudo, longe de demonstrar passividade em sua relação com as esferas de poder e não almejar a conquista da hegemonia no interior da sociedade brasileira, o empresariado fabril se empenhou na tarefa de impor a sua dominação de classe ao conjunto social. Conforme observa Ianni, “essa burguesia não está ausente na formulação das diretrizes governamentais, para incentivo direto e indireto da economia. Ainda que muitas vezes aparentando timidez ou falta de discernimento, a burguesia industrial assume de modo crescente as suas possibilidades de atuação sobre a política econômica estatal”. Desta forma, a burguesia “define de modo claro suas relações com o Estado”, às vezes infiltrando-se no aparelho estatal, outras fazendo-o operar em seu benefício, procurando converter as relações de produção em relações de dominação de classe. Conforme observa Ianni, a marcante presença do Estado na economia brasileira seria também algo desejado pelo empresariado industrial, que via o planejamento e a disciplinarização econômica exercidos pelos órgãos oficiais como fatores em si positivos para a produção. Enfim, para Ianni, a expansão do capitalismo industrial no país não foi um processo forjado monoliticamente pelo Estado. Pelo contrário, teria sido o resultado de um largo e crescente convívio entre a burguesia industrial e o poder público. Depois da Revolução de 1930, paulatinamente, os membros dessa burguesia nascente procuraram interferir nas decisões do governo, no sentido de estimular-se a industrialização e planificar-se o desenvolvimento econômico nacional. Quando as transformações da estrutura econômica abriram possibilidades de ampliação e diversificação da produção industrial, a burguesia industrial nascente, os técnicos e o governo perceberam que o aparelho estatal precisava ser convertido em conformidade com a nova situação, favorecendo-a. As possibilidades de desenvolvimento das forças produtivas somente poderiam ser aproveitadas em maior escala através da reorientação da política econômica do Estado. E foi o que preconizou a própria liderança empresarial, juntamente com os governantes (1989, p. 94).

A revolução burguesa durante a Era Vargas demonstrou que no correr dos tempos a burguesia se transforma. Em 1930 a burguesia brasileira chega ao poder na garupa das oligarquias dissidentes, o que modifica substancialmente as relações entre classes e frações de classe, e entre Estado e economia, ajudando a redefinir a via de desenvolvimento capitalista no Brasil em direção ao mercado interno, à integração regional, à industrialização e à sociedade urbana de massas. A crise econômica e o processo político que levou à Revolução de 1930 direcionaram ao novo governo um conjunto de solicitações novas, exigindo graus de liberdade para a ação econômica do Estado no sentido da incorporação de novas funções, da centralização federal e de modernização do aparato administrativo com gastos crescentes à medida que inúmeras instituições universais ou setoriais eram criadas ou reformuladas. Como desdobramento da Revolução de 1930, a união federal assumiu tarefas novas na regulação de setores econômicos e na reprodução das relações sociais, com uma intervenção crescente, por exemplo, sobre preços, salários, relações de trabalho, sindicatos patronais e trabalhistas, sistema educacional e de saúde, rede de transporte, infraestrutura básica e mesmo produção direta de insumos (Draibe, 1985). Neste período surgiu com espantosa rapidez todo um arcabouço de instituições de regulação e controle das atividades econômicas do país, que serviria de base para a constituição do Estado capitalista no Brasil. Foram criados seis órgãos de planejamento com atribuições de alcance nacional: o Departamento de Administrativo do Serviço Público (DASP); o Conselho Federal do Comércio Exterior (CFCE); o Conselho Técnico de Economia e Finanças (CTEF); a Coordenação de Mobilização Econômica (CME); o Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial (CNPIC) e a Comissão do Planejamento Econômico (CPE). A burguesia industrial brasileira também ganhou musculatura neste período, em especial pelo processo de substituição dos bens manufaturados que antes eram importados pela produção nacional e pela a criação de diversas empresas estatais. A indústria desta época se concentrava, basicamente, na produção de bens de consumo que exigiam máquinas e equipamentos comuns, destacando-se as indústrias alimentícias, farmacêuticas, metalúrgica, artigos de higiene e limpeza, perfumaria, entre outras. Como resultado desta expansão, verificou-se que em 1935 a produção industrial foi 27% maior que a de 1929, chegando a ser 90% maior que a de 1925. Em termos absolutos, nos anos de 1920 foram criados 4.697 estabelecimentos industriais, enquanto que na década seguinte foram criados 12.232. Antes de 1940 o valor da produção industrial já é superior ao da produção agrícola sob o domínio do latifúndio capitalista.

É por isso que, para Florestan Fernandes, o que a Revolução Burguesa no Brasil tem de específico é que, diferentemente das revoluções burguesas clássicas, ela não constitui apenas num momento político, em que a burguesia toma de "assalto" o controle de poder e do Estado, mas sim, um processo de transformação continuada, em que, ao mesmo tempo, tanto se constrói a estrutura econômico-industrial, como se formam e se diferenciam as classes sociais e as estruturas políticas do próprio Estado. Na verdade, aos nossos olhos, a revolução burguesa no Brasil é uma revolução sem revolução e sem burguesia. Não é uma “revolução”, mas arranjos de cúpula, de “cima para baixo”. Nem é “burguesa”, pois é o Estado quem a dirige.

É claro que mesmo que a burguesia industrial não tenha feito “politicamente” a Revolução de 1930, logo percebeu que o novo caminho seguido pela sociedade os tornava fração dominante entre as classes dirigentes. Seu progresso representava o progresso de todos, em especial do mercado interno. A partir da expansão industrial nas décadas de 30 e 40, a burguesia industrial brasileira consegue, a partir da década de 1950, estabelecer sua própria dominação à reboque nas mudanças no capitalismo mundial após a Segunda Guerra Mundial. De resistência à industrialização dos países dependentes, a burguesia monopolista estrangeira passa a atuar para o desenvolvimento industrial destes países. Agora não temos apenas sistemas produtivos capitalistas nacionais articulados com sistemas comerciais e financeiros internacionais. Ocorre a emergência de corporações transnacionais que, em especial no governo Jucelino (1956-60), ocupam setores industriais estratégicos e o capital estrangeiro transforma-se no principal elemento do desenvolvimento industrial no Brasil. A crescente exportação de elementos do modo de produção dos países mais avançados amplia o poder burguês, incluindo o capitalismo local, num rápido processo de modernização dos meios de comunicação e transporte, ampliação de indústrias existentes e implantação da indústria automobilística, de tratores, construção naval, mecânica pesada, cimento, papel e celulose, ao lado da triplicação da capacidade da siderurgia e a base de uma indústria de bens de produção. Neste processo grande parte da burguesia cresceu, inclusive com a nacionalização da burguesia monopolista estrangeira, passando a ser uma burguesia local que explorava diretamente a força de trabalho brasileira. Como a burguesia estrangeira também destruiu alguns setores da brasileira se disseminou a ideia que a “burguesia nacional” conseguiria seguir um caminho revolucionário para desenvolver-se. Triste ilusão. 

Os descontentamentos da burguesia depois de 1954 transformaram-se num efetivo golpe militar contra o povo brasileiro, contra o poder eleito e as instituições democráticas nacionais. O maior impasse da crise brasileira no século XX foi desembocar em 1964, depois de 34 anos do início da Era Vargas até Jango, passando por JK. O que marca este período é a elevação do nível de consciência social e política, o que causava horror à burguesia, e campanhas golpistas sistemáticas que vinham crescendo desde 1950-51, durante a luta pelo retorno de Getúlio Vargas ao poder, passando pela campanha político-militar para impedir a posse de JK até as novas e sucessivas tentativas de golpes dos remanescentes da “República do Galeão”. A imprensa e a Igreja propagava boatos e calúnias sobre as hipotéticas conspirações comuno-sindicalista dispostos a um golpe de Estado. Mas foi nas ruas que se manifestou o impasse da crise brasileira. Logo antes do golpe de 1964, o Brasil vivia algo como um momento pré-revolucionário, ou seja, em que mudanças estruturais na economia e sociedade brasileira tinham forte potencial para ocorrer.

Para reagir à pressão exercida pelas massas populares e compatibilizar-se com os interesses externos, a estratégia da burguesia uma contra-revolução auto defensiva. O que começara como um putsch mineiro assumido pelos generais Luiz Guedes e Olimpio Mourão às ordens do banqueiro-governador Antônio Muricy acabou com a união entre as Forças Armadas, em conjunto com certos setores conservadores e liberais da sociedade civil, com o objetivo de encerrar o governo de João Goulart (09/09/1961 a 01/04/1964) causando uma ruptura na ordem legalmente estabelecida e contrariando os princípios de obediência ao poder constituído. Passa-se então à uma associação íntima com o capitalismo financeiro internacional, bem como o Estado torna-se um instrumento exclusivo do poder burguês e, principalmente, criam-se os meios para exterminar qualquer ideia e políticas divergentes. Com o golpe militar a “via prussiana” da revolução burguesa brasileira evolui e passa a uma “via militar-fascista-civil” do desenvolvimento capitalista. Nessa época o poder estatal é organizado a partir da doutrina de “segurança e desenvolvimento”, apoiado por um poderoso bloco industrial onde predominaram os interesses da grande burguesia financeira e monopolista estrangeira.

Para impulsionar a industrialização acelerada que se pretende, torna-se imperativo preciso resolver o problema do mercado interno da força de trabalho, ampliar a quantidade de trabalhadores livres de qualquer propriedade dos meios de produção que ainda continuava no latifúndio, em terras devolutas e outros locais exercendo atividade agrícolas. Para o capital monopolista era preciso a libertação completa dos trabalhadores dos latifúndios de suas relações pré-capitalistas, isso é, modernizar o latifúndio e realizar uma vasta expropriação de camponeses pelos meios mais diversos transformando-os em trabalhadores despossuídos que tivessem a necessidade de vender sua força de trabalho para sobreviver. Dessa forma, como escreve Wladimir Pomar, “a burguesia mantém sua aliança com os latifundiários, mas obriga-os a modernizar-se. Consegue produzir, assim, uma rápida concentração e centralização de capital, modernização das forças produtivas e expropriação dos camponeses e parcelas significativas da pequena burguesia urbana. E transforma o Estado no famoso Leviatã que subordina toda a sociedade à lógica do capital monopolista”. Montou-se um sistema produtivo baseado no grande capital monopolista, apoiado pelo crescimento do investimento público, particularmente das empresas estatais. Como nota M. C. Tavares, os governos militares consideravam imprescindível para o desenvolvimento nacional o aprofundamento da coexistência entre empresas públicas, estrangeiras e nacionais (o chamado tripé da economia brasileira) para criar um “novo” padrão de reprodução do capital. Para manter este padrão de dependência externa houveram mudanças no sistema financeiro, o que levou a  uma substancial  elevação das  receitas  fiscais  passando pelo  crescimento da dívida  pública e um certo afrouxamento da legislação sobre o capital estrangeiro.

            Na metade dos anos 1970 este modelo começa entrar em crise. É o fim do auge do via autoritária de desenvolvimento encabeçada pela burguesia brasileira junto com o capital monopolista estrangeiro e o latifúndio numa escalada de perseguições, torturas e mortes sem precedentes da história da revolução burguesa. Foi necessário mais de vinte anos de ditadura militar-civil para que as forças populares do país deixassem que acreditar que a “burguesia nacional” tivesse papel revolucionário ou que a via democrática poderia ser construída pela burguesia brasileira. O esgotamento da ditadura desembocou no fortalecimento do movimento social e do campo popular, com a fundação do PT, CUT e MST, além da mobilização popular que precedeu a Assembleia Constituinte. Mesmo assim, com a redemocratização a sociedade brasileira já havia sido expurgada das lideranças sociais e movimento políticos mais capazes. A crise da dívida externa, de 1981 a 1983, abriu um período em que a burguesia e seus lacaios buscaram de toda forma limitar por toda a década a redemocratização ao plano político-jurídico. Este impasse só foi resolvido, finalmente, com a eleição de Collor contra Lula em 1989. Na verdade, a década de 1990 se iniciou em 1989, quando a burguesia se une em torno da via de desenvolvimento neoliberal. Após a crise da dívida, diversas tentativas de estabilização inflacionária, fracassos dos planos econômicos, o projeto neoliberal vai ganhando espaço político no país.  As orientações neoliberais foram acolhidas por amplos setores da sociedade brasileira, de governantes e empresários a lideranças do movimento popular e sindical e intelectuais. 

Com a derrota de Lula e Brizola, Collor encabeça um novo pacto de elite, agora não contra a ditadura, mas contra o Estado e a regulação econômica. Como vimos, desde 1930, na Era Vargas, houve um pacto entre os capitais estatais e os capitais privados, tanto nacionais quanto estrangeiros. Ao longo do tempo, a participação do capital estrangeiro variou, as vezes por crises internacionais, por movimentos sociais pela estatização de setores econômicos ou ainda por disputas internas entre os próprios segmentos capitalistas. O período JK foi marcado por um ingresso intenso de capitais estrangeiros, embora acompanhado pelo fortalecimento relativo dos capitais estatais e privados nacionais. O regime militar, nascido com um forte discurso anti-desenvolvimentista-estatal, paradoxalmente ficou marcado por uma abertura ainda maior à entrada de capitais externos, mas também por um intenso processo de criação de novas estatais. Já “longa década” de 1990, aberta por Collor e ampliada por FHC, se baseou em quatro pontos: abertura econômica, desestatização, desregulamentação e flexibilização das relações de trabalho. O Estado deveria limitar-se a promover os interesses do mercado, garantir a “lei e a ordem” e os contratos privados. Se exigia que o Estado se retirasse das atividades diretamente produtivas e financiasse as fusões patrocinadas pelas grandes corporações transnacionais.

Como nota Wladimir Pomar, o modelo neoliberal, de Collor à FHC, entre 1989 e 2002, caracterizou-se pela tentativa de quebra do antigo pacto, com uma política voltada para a privatização das estatais e de ativos privados nacionais, na expectativa de que poderíamos viver na “nova ordem mundial”, fundada em serviços e na informática. Neste período a participação dos capitais estrangeiros na economia brasileira cresceu muito e de maneira muitas vezes nitidamente corrupta. A novidade deste modelo é que, ao contrário da antiga participação, em que os capitais privados estrangeiros construíam novas plantas e, portanto, colaboravam de maneira ativa para a transferência de elementos do modo de produção capitalista para o Brasil, durante o período Collor-FHC os capitais estrangeiros eram estimulados a comprar empresas já em funcionamento, mesmo que fosse para fechá-las e evitar que continuassem como competidores indesejáveis. Grande parte das empresas estatais foi vendida, principalmente a multinacionais, para fabricar apenas produtos de alta lucratividade no mercado externo, como ocorreu com as siderúrgicas. Inúmeras plantas privadas também foram vendidas para capitais externos. Muitas delas foram fechadas e seus equipamentos transferidos e relocalizados em países de força de trabalho mais barata, como aconteceu com diversas indústrias químicas, que tornaram o Brasil de produtor em importador. Limitação de investimentos e de novas atividades, sucateamento da infraestrutura, fragmentação das cadeias produtivas, desintegração de parte substancial do parque industrial e expansão e favelização da pobreza e da miséria resultaram das ações de economia política que procuraram incluir o Brasil na globalização capitalista como território submisso ao capital transnacional.

A dependência estrita dos fluxos financeiros internacionais, a interdição dos sentidos desenvolvimentistas do Estado brasileiro na economia por meio da privatização e da desregulamentação, a maximização das vantagens do rentismo através de uma super-ortodoxia monetarista do Banco Central, o debilitamento do setor produtivo nacional e, principalmente, a corrosão das bases sociais das classes trabalhadoras, com a crescente marginalização social dos pobres, compunham o pano de fundo das vitórias políticas do neoliberalismo no Brasil nos anos 1990. No campo, os tempos foram de maximização dos poderes econômicos do agronegócio e de pressão sobre as bases produtivas da agricultura familiar, além da criminalização dos movimentos de luta pela terra.

            Assim as corporações estrangeiras e nacionais aumentaram, e muito, sua participação na economia brasileira e na apropriação da riqueza por ela gerada, enquanto segmentos médios e pequenos inteiros foram desestruturados, e o mundo do trabalho, esse setor da sociedade que é a raiz de qualquer sistema econômico, foi fracionado, desorganizado e dispersado. Houve uma ampla desarticulação das cadeias produtivas, aumentando a desnacionalização da riqueza e o alastramento das massas marginalizadas. O desmonte e desnacionalização da parte nacional do parque produtivo do país abriu espaço para a ação da concorrência externa intensificar aquilo que hoje se proclama como especialização regressiva, perda dos setores mais avançados tecnologicamente, esgarçamento das cadeias produtivas e desindustrialização, levando a uma crise econômica, social e política sistêmica, da qual ainda não saímos.

Do tripé da economia nacional passamos para um modelo de um só pé, onde passamos a ser ainda mais dependentes do que antes dos humores da economia internacional, e apostam todas nossas fichas nas virtudes dos mercados desregulados capazes, segundo eles, de fazerem uma correta, eficiente e equilibrada alocação dos recursos provenientes dos investidores privados, sobretudo os internacionais.

Do ponto de vista da revolução burguesa no Brasil, o neoliberalismo (e tudo que veio junto com ele, desde o Plano Real até a crise de 1999) é uma vergonha ou uma farsa, cujo avesso do “renascimento” proposto por FHC foi o efêmero crescimento, a ampliação dos déficits constantes da balança de pagamentos e os juros altos como opção para atrair capital estrangeiro, cortes dos gastos públicos, restrições de oferta de crédito e as privatizações que acabou por fragmentar as atividades estatais, descapitalizar as empresas, estagnar investimentos e à perda generalizada da capacidade competitiva do país. O neoliberalismo apenas reafirmou o caráter predatório da burguesia brasileira que quase cometeu suicídio, destruindo as bases da burguesia industrial, comercial e financeira. Na verdade, de Collor a FHC, nesta década mais que perdida, vivemos uma megaoperação de pilhagem do patrimônio brasileiro cujo resultado é até hoje difícil dimensionar pelos prejuízos irreparáveis que suas medidas causou e continua causando ao conjunto do sistema produtivo nacional.

            Ao sair do governo, FHC deixou ao sucessor e as novas gerações a economia brasileira num profundo processo de endividamento, estagnação e devastação da economia nacional com a ampliação do poder do capital monopolista estrangeiro. Esta foi a principal razão para que nas eleições de 2002 o candidato para continuar este programa, José Serra, foi derrotado por Lula.   

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