segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Estado de exceção democrático

A democracia contemporânea é nossa atual “premissa não-questionada”, o que está dificultando enormemente uma transformação na estratégia socialista de defensiva para ofensiva para além do capital.



A atual esquerda reformista que se auto-enclausura em reivindicações como “mais tolerância”, “mais direitos humanos”, “mais democracia” continua essencialmente nos horizontes da social-democracia clássica. Desconsiderando a crise estrutural do capital que se aprofunda e seus antagonismos explosivos, aceitam explicitamente uma quebra radical no aspecto revolucionário das reivindicações sociais do socialismo dando a elas uma feição democrática. Como salientou Marx, “o caráter peculiar da social-democracia resume-se no fato de exigir instituições democrático-republicanas como meio não de acabar com os dois extremos, capital e trabalho assalariado, mas de enfraquecer seu antagonismo e convertê-lo em harmonia. Por mais diferentes que sejam as medidas propostas para alcançar esse objetivo, por mais que sejam enfeitadas com concepções mais ou menos revolucionárias, o conteúdo permanece o mesmo. Esse conteúdo é a transformação da sociedade via democrática, porém uma transformação dentro dos limites da pequena burguesia”.



Como escreve Alain Badiou, hoje a democracia é a principal organizadora do consenso. Em seu nome se reuni tanto o desmoronamento dos Estados socialistas, o suposto bem-estar dos nossos países e as cruzadas humanitárias do Ocidente. Tudo que é espontaneamente considerado como normal é democrático e assim vice-versa. Ela se encaixa no que ele chama de opinião autoritária: é proibido não ser democrata. Aqueles que não aspiram pela democracia são tidos supostamente como sujeitos patológicos.



Entretanto, mesmo sendo a democracia liberal um limite para a esquerda contemporânea, quais são os limites da própria democracia?



Clamo que hoje estamos presenciando um estado de exceção democrático. Por mais que formalmente tenhamos eleições que suspendam as distinções de classe na sociedade capitalista, as determinações profundas de classe continuam operantes todo o tempo. Isso porque a articulação institucional do Estado democrático-liberal é inseparável da articulação institucional do mercado capitalista e sua rede de proteção política e policial a propriedade privada. Além disso, o limite da democracia é o Estado e não a vontade política dos políticos.



Uma definição clássica de estado de exceção é que, com a ameaça da ordem pública por agentes sociais, o Estado o suspende a lei para resolver seus problemas essencialmente políticos. É um mecanismo de controle do Estado que possibilita resistir a transformações sociais progressistas. O que estamos presenciando nos últimos anos é que o Estado democrático liberal está tomando medidas típicas de um estado de exceção como medidas normais de governo até mesmo nos países mais avançados e com uma "cultura democrática" mais longa.



A categoria de homo sacer, desenvolvida por Giorgio Agamben, nos ajuda aqui: o homo sacer é aquele que, no antigo direito romano, poderia ser morto impunemente e cuja morte não tinha nenhum valor de sacrifício. Hoje, o que vemos é uma institucionalização da penalização dos Homo Sacer contemporâneos – o favelado, o imigrante, o terrorista, o precarizado, desempregado, os habitantes dos guetos nos EUA, informalizado, refugiado, os integrantes do MST, etc.



Se o Homo Sacer é a categoria de seres insacrificáveis por poderem ser mortos por qualquer um e, dessa forma, não ter valor de sacrifício, não é essa a mesma condição dos integrantes do Movimento dos(as) Trabalhadores(as) Sem Terra? No Brasil não são os integrantes do MST os verdadeiros “muçulmanos”, os Homo Sacer por excelência? Apenas como Homo Sacer é que as mortes aleatórias na luta por terra podem ser aplaudidas pela classe média e pela elite brasileira. Não seria sua condição de Homo Sacer que possibilita que as notícias vinculadas ao movimento estejam geralmente na parte policial dos jornais? Os jornais não noticiam que a ordem pública fica seriamente conturbada ou ameaçada com a atuação do MST?



A expansão das “milícias privadas” que não são apanhadas pelos olhos da democracia e que, mesmo assim, consumam os massacres contra favelados e membros do MST levando a cabo a proteção da propriedade privada dos latifundiários e da classe media urbana não demonstra claramente essa hipótese? Ou ainda, a própria expansão das “tropas de elite” como o BOPE no Rio e a RONE em Curitiba que asseguram (normalmente à noite) que a pobreza se mantenha em seu lugar não fazem parte das tentativas desesperadas do Estado em criar formas não-institucionais de reprimir esses insacrificáceis contemporâneos? Não seria essa a ligação, sob a retórica democrática, da ligação “invisível” entre terroristas, favelados, militante de esquerda, membros do MST, etc?



Nesse ponto, a necessidade de utilização generalizada da violência policial do Estado mostra uma crise generalizada da autoridade perante esses elementos. Por isso, conceber uma transformação socialista radical e ao mesmo tempo excluir a revolução de seu itinerário é uma contradição em termos. Uma vez que a estrutura parlamentar é aceita como horizonte limitador de toda intervenção política admissível, o objetivo socialista de “emancipação econômica do trabalho” é descartada. Por isso, como dizia minha musa, Rosa Luxemburgo, “o movimento socialista não está vinculado à democracia burguesa, mas que, ao contrário, o destino da democracia está vinculado ao movimento socialista... Quem quiser fortalecer a democracia deve desejar fortalecer, e não debilitar, o movimento socialista”.



Por fim, penso eu, só que possível aproximarmos do objetivo de uma reestruturação socialista da sociedade em sua totalidade na medida em que o próprio militante em desenvolvimento consiga superar suas próprias divisões internas. Penso que a dura lição que precisamos apreender é que todos nós somos homo sacers.

Um comentário:

Maga disse...

o texto ficou muito bom mesmo!
UMa abordagem realista do debate político contemporaneo e das reflexões para o horizonte da esquerda...
Me chamo Marco Aurélio, estudo Ciências Sociais na UEM,e gostaria de trocar algumas idéias sobre estes temas...
Tenho estudado por fora (já que na universidade é complicado) a tradição marxista lukacsiana ou ortodoxa... (Zé Paulo Netto, Sérgio Lessa, Carlos nelson,Meszáros)
Enfim vi o nome de um d vcs na comunidade do Zizek no orkut
meu email é magapalu@hotmail.com