Hoje estamos testemunhando um ataque em duas frentes à classe operária, não apenas nas partes “subdesenvolvidas” do mundo, mas também, nos países capitalistas avançados: 1) um desemprego que cresce cronicamente em todos os campos de atividade, mesmo quando é disfarçado como “práticas trabalhistas flexíveis” – um eufemismo cínico para a política deliberada de fragmentação e precarização da força de trabalho e para a máxima exploração administrável do trabalho em tempo parcial; 2) uma redução significativa do padrão de vida até mesmo daquela parte da população trabalhadora que é necessária aos requisitos operacionais do sistema produtivo em ocupações em tempo integral. De qualquer forma, do ponto de vista do capital, a escassez de emprego não produz a necessidade de criação de empregos – muito menos formais. Ao tratar as causas como efeitos, o capital tem historicamente apenas uma imperiosa tendência de rever os níveis “aceitáveis” de desemprego. Como salienta Francisco Teixeira, na década de 1950 a taxa de desemprego normal era considerada de 2.5%, na década de 1960 esse índice passou para 3 e 4%, na década de 1970 e 1980 o normal passou para uma taxa de 5%. Na década de 1990 o nível normal subiu novamente para 6 e 7% de desemprego que, traduzido em números absolutos, significa mais de 800 milhões de pessoas desempregadas em todo o mundo. Não nos assustemos, portanto, se esse índice aumentar consideravelmente com o aprofundamento da crise estrutural do capital que aponta para um crescente número de desempregado por todo o globo.
Como corolário, todos os países capitalistas avançados são confrontados por numerosos exemplos de legislação autoritária, apesar das pretensões à “democracia liberal”. Essas medidas autoritárias se tornam cada vez mais necessárias pelas crescentes dificuldades de administração da crise estrutural da qual, além de deteriorar a vida socioeconômica dos trabalhadores, apóia (com a ameaça da lei) as posturas mais agressivas do capital com relação a sua força de trabalho. Uma das dimensões dessa escala do capital contra os subproletáriaros e desempregados é o desenvolvimento, principalmente desde 1970, de um Estado capitalista direcionado para a “penalização da pobreza”, principalmente com o incremento privado das prisões e, por conseguinte, no aumento da população carcerária. Nos Estados Unidos, um dos pioneiros na privatização dos presídios, já existem hoje mais de cinco milhões de presos – um quarto de toda a população carcerário do mundo. Esses “supérfluos” sociais, enquanto não tinham função econômica por não serem consumidores, empregadores e nem gerar impostos estavam fadados à exclusão, normalmente sem volta, do circuito econômico. Agora esse processo está se modificando: para as prisões privadas a presença massiva de pobres e marginalizados gera a produção de mais presídios dando mais renda para seus proprietários. Finalmente a geração sistêmica de excluídos está trazendo dinheiro para os donos privados das prisões. Dessa forma, o Estado depende cada vez mais da polícia e das instituições penais para conter a desordem produzida pelo desemprego, o emprego precário e o encolhimento da proteção social como uma “maquina institucional de administração da pobreza” com os objetivos de disciplinar as frações da classe operária que surgem nos precários empregos de serviços, neutralizar e armazenar os elementos mais disruptivos ou considerados supérfluos tendo em vista as transformações na oferta de trabalho e, não menos importante, reafirmar a autoridade do Estado. Um exemplo desse processo é que, até mesmo nas áreas mais desenvolvidas do mundo passando dos Estados Unidos a Europa, desde 1975, a curva do desemprego e dos efetivos penitenciários segue uma evolução rigorosamente paralela.
Entrementes, a criminalização é um meio a disposição do Estado para a realização de seus objetivos políticos. Em nossa democracia contemporânea não é a toa que a luta social é sinônima de crime a ser punido, na maioria das vezes com excessiva violência, pelas forças policiais. Por isso proponho que hoje vivemos numa era de estado de exceção democrático.
Uma definição clássica de estado de exceção é que, com a ameaça da ordem pública por agentes sociais, o Estado o suspende a lei para resolver seus problemas essencialmente políticos. É um mecanismo de controle do Estado que possibilita resistir a transformações sociais progressistas. O que estamos presenciando nos últimos anos é que o Estado democrático liberal está tomando medidas típicas de um estado de exceção como medidas normais de governo até mesmo nos países mais avançados e com uma "cultura democrática" mais longa. A categoria de Homo Sacer, desenvolvida por Giorgio Agamben, nos ajuda aqui: o homo sacer é aquele que, no antigo direito romano, poderia ser morto impunemente e cuja morte não tinha nenhum valor de sacrifício. Hoje, o que vemos é uma institucionalização da penalização dos Homo Sacer contemporâneos – o favelado, o imigrante, o terrorista, o precarizado, desempregado, os habitantes dos guetos nos EUA, informalizado, refugiado, os integrantes do MST, etc.
Se o Homo Sacer é a categoria de seres insacrificáveis por poderem ser mortos por qualquer um e, dessa forma, não ter valor de sacrifício, não é essa a mesma condição dos integrantes do Movimento dos(as) Trabalhadores(as) Sem Terra? No Brasil não são os integrantes do MST os verdadeiros “muçulmanos”, os Homo Sacer por excelência? Apenas como Homo Sacer é que as mortes aleatórias na luta por terra podem ser aplaudidas pela classe média e pela elite brasileira. Não seria sua condição de Homo Sacer que possibilita que as notícias vinculadas ao movimento estejam geralmente na parte policial dos jornais? Os jornais burgueses não noticiam que a ordem pública fica seriamente conturbada ou ameaçada com a atuação do MST?
Vivemos numa era em que a democracia-liberal está se mostrando como um dos grandes obstáculos a transformação social. Num momento de “fusão pornográfica” entre o Estado e o capital (agronegócio, produtivo e financeiro), a esquerda ainda busca se prender somente aos aparatos institucionais encontrando-se, assim, numa paralisia político-social estéril. Se o inimigo faz as regras do jogo e nós aceitamos, já estamos jogando segundo as regras deles. Como o bloqueio mental criado pela democracia atinge profundamente a esquerda, talvez um catalisador das lutas sociais seja o insuportável peso da criminalização e do desemprego da qual todos somos atingidos.
É necessário avistar o inimigo e conhecê-lo muito bem para superar as velhas inimizades que fragmentam a luta social e que apenas aabam por azeitam o capitalismo-destrutivo que vivemos hoje. É possível combater e vencer, mas não com as estratégias “de esquerda” que o capitalismo consegue digerir facilmente.
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