quarta-feira, 4 de novembro de 2009

O desemprego no sistema do capital

Para Karl Marx, o trabalho é a mediação orgânica entre o homem e a natureza que, “ao atuar, por meio desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza” (Marx, 1983, p. 149). Nas belas palavras de Lukács, o trabalho é a protoforma do ser social (Lukács, 1979). Entretanto, o que acontece com um metabolismo social em que uma de suas características centrais é a condição do não-trabalho, não por um capricho da natureza, mas por manifestar uma das dimensões mais explosivas da crise estrutural do capital?

Segundo Marx (nos Grundrisse), em diferentes modos de produção, diferentes leis regem o aumento da população e a existência de uma “superpopulação relativa” . Essas leis estão diretamente ligadas com as formas com que os indivíduos se relacionam com as condições de produção. Na fase particular capitalista de produção de capital, a produção para troca é dominante; a própria força de trabalho, tanto qualquer outra coisa, é tratada como mercadoria; a motivação do lucro é a força reguladora fundamental da produção; o mecanismo vital de extração de mais-valia, que é a separação radical entre meios de produção dos produtores, assume a forma inerentemente econômica que é apropriada privadamente pelos membros da classe capitalista; e de acordo com seus imperativos econômicos de crescimento e expansão, a produção de capital tende a integração global por intermédio do mercado internacional, com um sistema totalmente interdependente de dominação e subordinação econômica. Assim, o capitalismo é uma forma específica de funcionamento do capital como relação social onde bens e serviços, inclusive as necessidades mais básicas da vida, são produzidas tendo como fim a troca lucrativa; os requisitos da competição e da maximização de lucro são regras fundamentais da vida social e, devido a essas regras, é um sistema voltado singularmente para o desenvolvimento das forças produtivas e o aumento da produtividade do trabalho através de mudanças tecnológicas e organizativas que tem como conseqüência uma diminuição progressiva do trabalho socialmente necessário. Esse é, ao mesmo tempo, o norte de seu desenvolvimento e seu fardo já que necessita transformar-se constantemente para adequar-se a suas próprias mudanças.

Por ser um sistema composto, em sua grande maioria, por trabalhadores livres sem posses e obrigados a vender sua mão-de-obra por um salário a fim de subsistir, vemos que toda a produção de bens e serviços está subordinada à produção de capital e não a qualquer tipo de organização e distribuição de riqueza para os seres sociais que trabalham. Portanto, o objetivo básico do sistema capitalista é a auto-expansão do capital, e não a criação de empregos ou o suprimento das necessidades humanas.

Com o capital conseguindo libertar-se dos constrangimentos dos sistemas orgânicos anteriores, superando principalmente as proibições da compra e venda de terra e trabalho, ele pode afirmar-se como sistema orgânico oniabrangente que visa à auto-expansão reduzindo e degradando os seres humanos à condição de meros “custos de produção” como “força de trabalho necessária” tratando o trabalho vivo como “mercadoria comercializável”. Como escreve István Mészáros, se os sistemas orgânicos anteriores eram orientados para a produção de valores de uso e tinham um alto grau de auto-suficiência, o capital pôde emergir e triunfar sobre seus antecessores históricos como um sistema de controle sociometabólico pelo abandono de todas as considerações em relação à necessidade humana às limitações dos valores de uso não-quantificáveis, sobrepondo-lhes os imperativos fetichistas do valor de troca quantificável e sempre expansivo. Segundo Mészáros, “eis como a forma historicamente específica do sistema do capital: sua variedade burguesa capitalista passou a existir. Teve de adotar o modo esmagadoramente econômico de extrair trabalho excedente pela mais-valia estritamente quantificável” (Mészáros, 2007, p. 56) . Entretanto, como salientou Marx, o capital não é a forma absoluta para o desenvolvimento das formas de produção. Suas contradições se inserem no seu próprio desenvolvimento histórico que produz, inexoravelmente, crises. É sob o movimento delas que grande parte do argumento de Marx em relação ao desemprego se estabelece.

Por exemplo, Marx relaciona a superprodução de mercadorias com a superpopulação trabalhadora excluída da produção. A estagnação no mercado abarrotado de determinadas mercadorias obstrui o processo de reprodução do trabalhador que, diante do crescimento de produtividade, se torna supérfluo. Marx utiliza o exemplo do percal: com a superprodução de roupas de algodão, o primeiro a ser afetado é o tecelão.

Agora, eles são em uma medida menor ainda, ou nada em absoluto, consumidores de sua mercadoria – roupas de algodão – e de outras mercadorias que entram em seu consumo. É verdade que eles precisam de roupa de algodão, mas não podem comprá-la porque não possuem os meios, e não possuem os meios porque não podem continuar a produzir e eles não podem continuar a produzir porque já foi produzido em demasiado, demasiadas roupas de algodão já estão no mercado. Nem o conselho de Ricardo de “aumentar sua produção” nem sua alternativa de “produzir outra coisa” podem ajudá-los. Eles agora formam uma parte da população excedente temporária, da produção excedente de trabalhadores, neste caso dos produtores de algodão, porque há uma produção em excesso das fábricas de algodão no mercado (idem, p. 59).

Entretanto, por que o conselho de Ricardo não poderia atenuar ou acabar com esse processo de produção de trabalhadores excedentes? Marx explica esse processo a partir das condições para a venda das mercadorias. Como o objetivo da produção capitalista é a apropriação da maior quantidade possível de tempo de trabalho imediato com o capital disponível, seja com o prolongamento do dia de trabalho ou pela redução do tempo necessário, através do desenvolvimento da força produtiva do trabalho por meio da cooperação, divisão do trabalho, maquinaria, a produção de trabalho excedente está dialeticamente ligada com o trabalho socialmente necessário para a produção de mercadorias. Quanto mais incrementos nas técnicas de produção, máquinas e equipamentos que possam tornar o trabalho mais produtivo com um número menor de trabalhadores, menos trabalho é necessário e, consequentemente, o trabalho excedente se expande. Para o capital não existe alternativa a esse processo contraditório de desenvolvimento pela ligação estrutural entre a valorização ampliada do capital e o trabalho socialmente necessário. Segundo Marx, é uma condição para a venda de mercadorias que seu valor contenha apenas o tempo de trabalho socialmente necessário. Se mais trabalho for usado, o capital corre o risco de desvalorização. Portanto, do ponto vista do capital, não faz sentido algum ter empregados a mais do que o socialmente necessário para a produção. Em momentos de crise isso fica claro já que quem paga primeiramente pelo excesso de trabalhadores são os próprios trabalhadores sendo, do ponto de vista do capital, inadmissível a superação de suas crises periódicas sem um “enxugamento” de custos – dos salários e empregos, por exemplo. Dessa forma, o constante revolucionamento das condições de produção capitalista envolve a reorientação dos trabalhadores necessários e dos desnecessários das quais os últimos se tornam figuras supérfluas para a acumulação de capital. Para Marx, o processo de acumulação capitalista “sempre produz, e na proporção da sua energia e de sua extensão, uma população trabalhadora supérflua relativamente, isto é, que ultrapassa as necessidades médias da expansão do capital, tornando–se, desse modo, excedente” (Marx, 1983, p. 731). Entretanto, esse “excedente” não significa que não tenha nenhuma importância para o sistema do capital. Ao contrário, ao aumentar a “população trabalhadora supérflua relativamente”, o poder de barganha do capital para diminuir os custos da produção aumenta, além de intensificar a competição entre os trabalhadores diante do crescente risco de estar completamente fora do campo de trabalho. Nesse sentido, o fenômeno do desemprego é inerente e funcional à própria lógica auto-expansiva do capital que subordina estruturalmente o trabalho. Historicamente, é a transformação do trabalho socialmente necessário para a produção de mercadorias em trabalho excedente, a partir da lógica contraditória e expansiva do capital que não tolera, de forma alguma, que esse trabalho supérfluo seja integrante da produção já que iria inevitavelmente desvalorizar o processo de valorização do capital.

Duas tendências são operantes simultaneamente e de forma contraditória na produção capitalista. Por um lado, existe a luta do capital para extrair a quantidade máxima de trabalho vivo com o ímpeto de aumentar a massa potencial de mais-valia. Por outro lado, o capital possui um impulso em direção à mais-valia relativa que se manifesta pelo aumento no capital constante em detrimento do capital variável induzindo o capital a colocar como supérfluos muitos trabalhadores periodicamente. Portanto, o desemprego não é uma falha eventual no mercado de trabalho e sim um fenômeno estrutural da dinâmica do capital. Continuando com a abordagem de Marx:

A superpopulação relativa é inseparável do desenvolvimento da capacidade produtiva do trabalho, que se traduz na redução da taxa de lucro, e este desenvolvimento acelera seu processo. Quanto mais se desenvolve em um país o regime capitalista de produção, mais agudo se apresenta nele o fenômeno da superpopulação relativa. E está é, por sua vez, a causa de que, por um lado, perdure em muitos ramos de produção a sujeição mais ou menos incompleta do trabalho ao capital, sustentando-se durante mais tempo do que à primeira vista corresponderia ao estado geral do desenvolvimento; isto é conseqüência da barateza e da abundância dos operários assalariados disponíveis ou desocupados e da maior resistência que alguns ramos de produção opõem, por sua natureza, à transformação do trabalho manual em trabalho mecanizado (Marx in Romero, p. 94).

Para Marx a relação entre “desenvolvimento da capacidade produtiva do trabalho” e o aumento agudo da “superpopulação relativa” não é conflituosa. Ao contrário, o desenvolvimento da produção capitalista é acompanhado pelo fenômeno do desemprego que pressiona os salários para baixo e ajuda a retomada das taxas de lucro. Para Marx, com o processo de reprodução social do capital global, seu componente variável aumenta em proporção decrescente. Nesse sentido, a “superpopulação relativa” compensa e neutraliza os efeitos da lei geral da acumulação e expansão de capital, isso é, a expansão dos desempregados é uma resposta diante da tendência de queda da taxa geral de lucro tornando-a menor e menos rápida . O crescimento da “superpopulação relativa” esta ligada, portanto, com o processo de superprodução de capital que, ao elevar a capacidade produtiva do trabalho, cria trabalho supérfluo. Entretanto, para pensarmos sobre o desdobramento de um desemprego de cunho estrutural (de longa duração e amplitude) temos que nos deter sobre desenvolvimento histórico do sistema do capital. Para Marx, a “suposição extrema” de uma superprodução absoluta de capital (meios de produção, meios de trabalho e subsistência) que se destina a funcionar como capital cria uma “superpopulação artificial”. Em outras palavras, quando o capital não encontra condições de explorar o trabalho em um grau de exploração condicionado pelo desenvolvimento “sadio” do processo de exploração capitalista que, pelo menos, aumente a massa de lucro com a crescente massa de capital empregado, cria-se um excedente de operários que são supérfluos. Dessa forma, superprodução de capital e aumento da superpopulação “existem um ao lado do outro e se condicionam mutuamente” (idem, p. 118).

Os mesmo fatores que elevam a capacidade produtiva do trabalho, que aumentam a massa dos produtos-mercadorias, que ampliam mercados, que aceleram a acumulação de capital tanto em relação à massa quanto em relação ao valor, e que reduzem a taxa de lucro, criaram e criam constantemente uma superpopulação relativa, uma superprodução de operários que o capital excedente não empregada pelo baixo grau de exploração do trabalho que teria ao empregá-los ou, ao menos, pela taxa de lucros baixa que seria obtida por este grau de exploração (idem, p. 118).

Essa “suposição extrema” de superprodução absoluta se encontra em desdobramento desde meados de 1970 no sistema do capital. É uma espécie de superprodução crônica que demonstra um dos limites absolutos do capital conjuntamente com a emergência do desemprego estrutural. Como escreve Mészáros,
Alcançamos um ponto no desenvolvimento histórico em que o desemprego se coloca como um traço dominante do sistema capitalista como um todo. Em sua nova modalidade, constitui uma malha de interrelações e interdeterminações pelas quais hoje se torna impossível encontrar remédios e soluções parciais para o problema do desemprego em áreas restritas, em agudo contraste com as décadas do pós-guerra de desenvolvimento em alguns países privilegiados, nos quais os políticos liberais podiam falar sobre pleno emprego em uma sociedade livre (Mészáros, 2007, p. 145).

Não é possível compreender a emergência do desemprego estrutural sem nos debruçar sobre a crise de acumulação e expansão do capital que, desde meados de 1970, se torna uma marca crucial de nossa atual época histórica como um todo. Como salienta Alain Bihr, a ofensiva (neo)liberal após 1970 não abriu caminho para a superação da crise capitalista. Na realidade, só poderia ser uma Vitória de Pirro já que “ao provocar o agravamento do desemprego, a diminuição do poder de compra dos assalariados, a compressão dos gastos públicos, a alta das taxas de juro, ela agrava a crise latente de superprodução com a qual se debate o capitalismo ocidental desde o início da década de 70” (Bihr, 1999, p. 77) . Tratemos dessa questão no próximo post.

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