quarta-feira, 25 de novembro de 2009

O PSOL é um partido "fukuyamista"?

O grande desafio da esquerda hoje no Brasil é um duplo distanciamento tanto da direita (PSDB) como da esquerda-liberal (PT). Para tal empreendimento, reconstruir um projeto socialista para além dessa dicotomia está na ordem do dia. O PSOL tem essa intenção explicita, mas, entretanto, com o desdobramento histórico do partido, está conseguindo essa difícil façanha se concretizar? Se o PSOL busca representar uma alternativa social em longo prazo, quais medidas seriam necessárias tomar hoje diante do refluxo político vivido pelo lulismo?



Sem dúvida, a estratégia ativa da cúpula do PSOL em articular uma aliança com o PV demonstra os limites trágicos desse projeto alternativo. Ao formalizar o pedido para uma comissão para discutir essa aliança, a senadora Heloísa Helena sobe em cima do partido estipulando as estratégias nacionais principais a serem tomadas para as eleições do ano que vem que, ao que parece, tem intenções eleitoreiras mais do que qualquer coisa. Por exemplo, quando questionada sobre as diferenças entre os dois partidos, veio à tona a questão do aborto por Heloísa Helena: “Na verdade, que essas diferenças existem todos nós sabemos, mas as vezes elas existem dentro do próprio partido”. Essa é a diferença essencial entre o PSOL e o PV? E a questão do socialismo, não importa? Não é a toa que, para a Sra. Heloísa Helena seria Marina Silva o único nome capaz de “promover o debate do desenvolvimento sustentável com inclusão social”. Com certeza o nome de Marina Silva seria o melhor para uma bandeira baseada no desenvolvimento sustentável, mas o que isso tem a ver com o PSOL? Isso quer dizer que o PSOL luta por um “desenvolvimento sustentável com inclusão social”? Esse é o horizonte ético-político-estratégico do principal nome do PSOL no Brasil? Consequentemente sua fala mostra bem esse limite: “eu pessoalmente me sinto profundamente feliz e realizada como mulher, como mãe, como cidadã brasileira em ter a oportunidade de votar em Marina para a presidência da República". Que lindo passar por cima do partido para buscar ativamente alianças que a realizem como mulher, cidadã e mãe, mas e a luta política pelo socialismo no Brasil? Seria coisa do passado crítico que hoje não tem mais sentido?



Talvez a lição de Marina Silva valha para Heloísa Helena, por mais que só tardiamente isso seja claro. Nenhuma delas conseguiu quebrar com o petismo realmente existente. Estão no final das contas lutando por um capitalismo mais humano, mais tolerante, mais ecológico e mais sustentável. Segundo a própria Marina “em linhas gerais, acho que o estado não deve se colocar como uma força que suplanta a capacidade criativa do mercado. Nem o estado deve ser onipresente, nem o mercado deve ser deificado. Também gosto da idéia do Banco Central com autonomia, como está, mas acho que estão certos os que defendem juros mais baixos”. Em outras palavras, ela é a favor da terceira via. O PSOL também é?



Outra questão importante: não nos enganemos em relação a capacidade do capitalismo introduzir em sua pauta a questão ecológica. Hoje, diante da crise do capitalismo, a questão ecológica não representa necessariamente um limite ao capitalismo. Ao contrário, é uma chave para sua expansão por mais destrutiva que seja. Essa lógica foi indicada por Brian Massumi quando indica que a lógica da normalidade no capitalismo contemporâneo já foi superada pela lógica do excesso:



Quando mais variado, e mesmo errático, melhor. A normalidade começa a perder sua força. As regularidades começam a afrouxar. Essa frouxidão da normalidade é parte da dinâmica do capitalismo. Não é uma simples libertação. É a própria forma de poder do capitalismo. Não é mais o poder institucional disciplinador que tudo define, é o poder do capitalismo de produzir variedade – porque os mercados ficam saturados. Produza variedade e você produzirá um mercado de nichos. As mais estranhas tendências afetivas são aceitas – desde que vendam. O capitalismo começa a intensificar ou a diversificar o afeto, mas apenas para extrair mais-valia. Ele seqüestra o afeto para intensificar seu potencial de lucro. Ele literalmente valoriza o afeto. A lógica capitalista de produção da mais-valia começa a dominar o campo das relações, que é também o domínio da ecologia política, o campo ético da resistência às identidades e às trajetórias previsíveis. É tudo muito perturbador e confuso, porque me parece que houve um certo tipo de convergência entre a dinâmica do poder capitalista e a dinâmica da resistência.





Em outras palavras, quando as resistências estão alinhadas com a própria lógica do capitalismo contemporâneo, essas resistências aceitam (por mais que digam ao contrário) em linhas gerais a reprodução do atual estado de coisas buscando, no máximo, pequenas melhoras pragmáticas. Nesse sentido, a pergunta é: o PSOL é um partido fukuyamista? Isso é, ele considera que a democracia-liberal não permite e nem precisa mais de mudanças radicais, mas sim apenas de mudanças paliativas como o desenvolvimento sustentável? Caberá ou não ao PSOL superar esse limite político que se instala, de forma mais paradoxal possível, no seio das camadas fundadoras do partido?





Quando falou sobre sua quebra com o petismo, Marina Silva falou: “mudei de casa, mas continuo na mesma rua, na mesma vizinhança”. O mesmo não valeria para Heloísa Helena? Talvez ela dissesse “sai de casa, fundei outra, mas continuo na mesma rua, na mesma vizinhança”. A questão que fica é: quando é a principal personagem nacional do partido (assim como Lula) que articula ativamente (junto com muitos outros) a desestruturação do partido que ajudou a fundar, o que fazer?

domingo, 22 de novembro de 2009

Estamos presenciando uma “pevização” do PSOL?

A candidatura de Marina Silva-PSOL é uma resolução pós-política para um problema essencialmente político. Isso se mostra claro num informe assinado por Luciana Genro, Martiniano Cavalcanti, Elias Vaz, Mario Agra, Edílson Silva, Pedro Fuentes, Jéfferson Moura e Roberto Robaína. Aí a obscenidade atual do PSOL se mostra clara. Nele somos informados que a Executiva Nacional do partido “tomou uma decisão correta e fundamental para armar nossa intervenção nas eleições de 2010: abrir as negociações com a candidatura de Marina Silva”. Que arma poderosíssima! O problema é que ela está direcionada contra o PSOL e suas potencialidades políticas e não como um ato progressista na construção do partido como uma alternativa ao projeto popular e socialista no Brasil.


Na continuação do informe está escrito que para tal decisão “partimos sempre da análise concreta da situação concreta: uma delas é a definição de que existe no Brasil uma tendência das classes dominantes a tentar resumir a disputa política aos dois projetos burgueses chefiados pelo PT ou PSDB. Ambos projetos, como sabemos, representam os interesses dos grandes capitalistas, dos banqueiros, dos latifundiários do agronegócio e do imperialismo, embora um incorpore a burocracia sindical com mais força e o outro incorpore com mais força a mídia patronal e dialogue mais com a direita golpista latinoamericana. Ambos também concordam em reduzir os espaços institucionais dos socialistas revolucionários, com medidas como cláusulas de barreira e perda dos direitos de debate nas disputas eleitorais”. Quer dizer então, literalmente, que diferença real existente entre PT e PSDB é que o primeiro incorpora a burocracia sindical e o segundo dialoga com mais força com a mídia e a direita golpista latinoamericana? Se fosse essa a real diferença acredito que muitos de nós estaríamos no PT. Ou ainda, talvez essa “análise concreta” seja a razão pela falta de adesões petistas ao PSOL. Conclusão: que análise concreta hein! Incrível que escrever ou dizer que “partindo da análise concreta da situação concreta” faça de qualquer análise por si só autolegitimadora. Talvez se Lênin estivesse por aqui diria algo como “hegelianamente estamos vendo a unidade dos contrários: análise concreta da situação concreta com oportunismo no seio do partido”. Seria também uma análise concreta da situação concreta concluir que “a ruptura com o PT foi uma opção progressista de Marina”? Em que sentido? Seria uma análise concreta da situação concreta a hipotética “defesa do partido da necessidade do desenvolvimento sustentável”? Se essa for uma análise concreta não seria essa, portanto, uma “pevização” do PSOL? Incorporar numa luta dita socialista o objetivo do desenvolvimento sustentável só equipara nossas demandas por transformações ecológicas as ONG`s de plantão. Até as propagandas de carro, geladeira, câmeras fotográficas, etc. já falam de desenvolvimento sustentável como solução da destruição ambiental.

Paradoxalmente, nossos “informantes” parecem desconhecer também os rachas que essa estratégia está criando internamente ao partido quando proclamarem cinicamente que “quanto maior a unidade partidária, mais chances de se
garantir o êxito desta tática... usando, sempre porque possível, os instrumentos que tivermos em
mãos, preservando nossa identidade, nossa política e construindo o partido como uma alternativa de massas”. Parece brincadeira, mas não é. Como o PSOL pode representar seriamente uma alternativa de massas e preservar nossa identidade política buscando ativamente alianças com o PV?

A questão é que os centralistas no PSOL parecem ter um profundo medo do isolamento nas eleições presidenciais ano que vem que seria “curado”, hipoteticamente, pela aliança com Marina Silva e o PV. Não nos animemos tanto: o PSOL não tem condições políticas-conjunturais de ganhar as próximas eleições presidenciais diante de tantas contradições internas, mesmo que se juntasse com Deus. O desafio do partido hoje é conseguirmos permanencer como uma lacuna entre a bipolaridade PT-PSDB para aglutinar as forças da esquerda pós-Lula e não buscar desesperadamente uma possível melhora eleitoral sob o resultado, ao que parece inevitável, de desestruturação radical do partido. Somente se o PSOL fosse um partido personalista, carreirista e regionalista é que essa movimentação rumo a “pevizacão” passaria sem, no mínimo, duras críticas.
Portanto, a postura pró-Marina do PSOL parece mais representar uma vitória para a direita do país do que uma resolução política que traga bons frutos para a rearticulação da esquerda. Com essa aliança o ciclo se fecha: PT e agregados, PSDB e agregados e PSOL-PV. Perfeito! A crítica não pode sair do governo Lula e suas políticas econômicas, políticas e ecológicas que tem aprovação de mais de 70% da população brasileira e, consequentemente, qualquer programa positivo alternativo fica, novamente, bloqueado ao rancor esquerdista ecológico. Ok, exagero um pouco, mas ao não existirem programas políticos e econômicos comuns entre PSOL e PV, resta mesmo a retórica do “desenvolvimento sustentável” que, como vimos, já está embalando alas do PSOL.

O PSOL é um partido que representa ainda de forma embrionária a construção de uma alternativa social (por mais que seu conteúdo continue não muito claro, assim como na história do PT), mas que está prestes a fazer de uma aliança que põem seriamente em risco a integridade de seu projeto político, paradoxalmente, sob as iniciativas ativas da companheira Heloísa Helena acompanhada de perto por Luciana Genro. Qual a razão disso tudo, falta de orientação na tempestade lulista ou personalismo político mesmo?

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Marina Silva: Lula Light para a esquerda centralista do PSOL

O debate sobre os caminhos do PSOL nas próximas eleições está na ordem do dia. O racha no partido teve seu início: será para algo positivo? Esse debate envolve ao mesmo tempo tanto as possíveis coligações externas ao partido como as contradições internas que emergem da falta de organização tática diante da atual conjuntura política lulista. Em conseqüência, como bem dizia Lukács, sem tática não há estratégia.


Primeiro: o ponto positivo da possível candidatura de Marina Silva é que todos os seus oponentes terão que se posicionar perante a questão ambiental quer queiram ou não (ecocapitalismo ou ecossocialismo?). Entretanto, não podemos nos enganar que um projeto ambiental que não envolva um profundo debate sobre as causas da destruição ambiental e o modelo de crescimento do país poderia ter algum tipo de veracidade para além da retórica. Portanto, a pergunta é a seguinte: existe um horizonte comum no projeto de Marina e do PSOL? Difícil enxergar algo além de uma aliança tática que está caminhando para a desestruturação do PSOL, mais rápido do que poderíamos imaginar.


Segundo: aparentemente existem duas opções para o PSOL: candidatura própria ou apoio a Marina Silva. Entretanto, essa não seria uma oposição falsa? Sabemos que o espaço da esquerda nessas eleições está pequeno diante do enorme capital político que o Sr. Lula possui, por mais que desejemos o contrário. As perspectivas de que uma crise sem precedentes iria abater o lulismo não se mostrou apenas completamente equivocada como estamos presenciando exatamente o contrário. Está sendo colocada em prática a superação da “condição prussiana” do Brasil exatamente pelo governo Lula numa mistura de social-democracia tardia com financeirização internacional. O balanço a se fazer com o decorrer da campanha eleitoral entre FHC e Lula ainda aprofundará a visibilidade do projeto lulista para a população. Até mesmo Aécio Neves não fala de um governo anti-Lula e sim pós-Lula. Portanto, um projeto de esquerda para as próximas eleições terá que dialogar com amplos setores de resistência, inclusive Marina Silva (como já está sendo feito). Entretanto, esse diálogo não poderia de forma alguma reduzir o próprio PSOL às diretrizes pragmáticas do ecocapitalismo que, por maior visibilidade que possa ter hoje, não diz respeito à luta socialista.


Terceiro: a pré-candidatura do Plínio está feita. Enquanto isso, o diálogo principalmente da cúpula do partido parece se orientar para o debate ativo com Marina. Essa história não é nova. Estamos diante de uma centralização política-pragmática do PSOL que complica ainda mais a rearticulação das forças de esquerda no país. Diante desse panorama, a escolha entre Lula e Marina pareceria indistinta se ela não fosse mais light que Lula, abordando as questões ambientais que obviamente continuariam insolúveis sob o modelo econômico e político adotado pelo PT. Portanto, para onde vamos? Vamos apoiar (e apreciar) uma versão light do Lula ou enfrentar ativamente as posturas centralistas da luta política atual no PSOL?

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Economia Política do Lixo

Economia Política do Lixo

Por toda a história existem exemplos de estagnação e recessões econômicas assim como de degradação ambiental causadas pela atividade humana. Com a ascensão do capitalismo, entretanto, as crises econômicas e ambientais se tornam características fundamentais de seu desenvolvimento, delineando novas relações com a natureza que são progressivamente criadas e recriadas. Em seu movimento ilimitado de expansão por todo o globo, o capital se tornou uma força que, ao se alimentar da apropriação do trabalho alheio, tem pouco ou nenhum apreço pelos estragos ecológicos causados pelos impactos de sua inexorável expansão.

Marx e Engels trataram de diversos problemas ecológicos com que a sociedade humana capitalista teria que lidar: a divisão entre cidade e campo, depredação do solo, poluição industrial, desenvolvimento urbano, o declínio das condições de vida dos trabalhadores, má nutrição, deflorestação, desertificação, mudanças climáticas regionais, a exaustão dos recursos naturais, conservação de energia, entropia, a necessidade de reciclar os produtos industriais, a conexão entre as espécies e seus ambientes, superpopulação, as causas da fome, a utilização da ciência e tecnologia na sociedade, toxidade, etc. Para Marx, a prática humana é parte de um metabolismo homem-natureza. A novidade histórica do capitalismo que Marx aponta, já na metade do século XIX, é que o desenvolvimento expansionista do capitalismo trás consigo “ruptura metabólicas” em que os ciclos naturais da natureza não conseguem mais se estabelecer e se repor colocando em risco a reprodução humana e da natureza. Hoje, por exemplo, dados informam que o consumo humano ultrapassou em 30% sua capacidade de reposição.

Segundo Marx, o capital tem um incontrolável impulso à universalidade adentrando até nos cantos mais remotos do mundo. Esse caráter expansionista esteve sempre presente e é uma condição ineliminável de seu modo de operação e controle. Foi com base nesse dinamismo que o capital conseguiu suplantar todas as formas anteriores de reprodução social e afirmar-se como modo dominante de controle e metabolismo social.

O capital em seu impulso ilimitado e infinito de superar as barreiras que encontra, sejam culturas, nacionais ou naturais, não se importa com as implicações em jogo. Como salienta István Mészáros, a degradação da natureza ou a dor da devastação social não tem qualquer significado para seu sistema de controle onde seu imperativo absoluto é o de sua auto-reprodução numa escala cada vez maior. Uma vez que o capital não visa produzir para atender as necessidades humanas, qualquer “obstáculo externo” em seu caminho deve ser superado por mais que esse impulso signifique uma ameaça à humanidade. Nesse sentido, o uso sem limites dos recursos naturais para sua existência faz o capital não poder, de forma alguma, introduzi uma racionalidade abrangente com o objetivo de uma alocação correta dos recursos humanos e naturais. Por sua condição básica de reprodução estar vinculada à necessidade de contínuo crescimento da produção e da disputa pelo domínio de mercados, o capital torna indispensável à incorporação de crescentes recursos naturais não importando o quanto destrutivas sejam em termos globais (que para as empresas privadas não constitui uma preocupação além do marketing).

A questão é: não se trata apenas de vivermos num mundo de recursos naturais finitos, mas também a ausência de qualquer tipo de regulação que possa se contraposto a lógica de expansão do capital. Como a produção destrutiva é positiva para o capital no atual estágio histórico, um dos meios para o capital se expandir é a redução deliberada da vida útil das mercadorias com o intuito de tornar possível o lançamento de um contínuo suprimento de mercadorias para uma venda que se acelera no mercado. Com esse processo, torna-se necessário ativar um “consumo destrutivo” que tem como resultado o progressivo aumento dos volumes de lixo produzido. Existe uma divisão internacional da destruição: os ricos destroem a natureza muito mais que os pobres. Em 1999, a emissão do CO2 de um cidadão médio nos Estados Unidos era de 20,2 toneladas, dez vezes mais do que a emissão de um brasileiro médio que polui a atmosfera com 1,8 de toneladas de anidrido carbônico.

A luta contra a destruição do meio-ambiente – a terra, ar, a água degradada pelos venenos químicos, a destruição de grandes áreas de florestas, a extinção de inúmeras espécies e ecossistemas – vai ao mesmo sentido e funciona de forma similar a luta de classes. Do ponto de vista do capital, existem basicamente duas formas de lidas com os problemas ecológicos: estender o mercado para todos os aspectos da natureza e criar ilhas de preservação num mundo baseado universalmente pela exploração e destruição dos recursos naturais. Dessa forma, as contradições entre o capitalismo e a destruição ecológica tendem a se aprofundar e não a se revolver. Entretanto, a Terra é um planeta limitado que nas últimas décadas entra numa profunda e gigantesca crise que está sendo levada a cabo essencialmente pela destruição ecológica e social. Transformar esse estado de crise longa e permanente só pode ser o resultado de uma ação coletiva que, ao mesmo tempo, negue as condições de apropriação capitalista da força de trabalho e da natureza e aponte para uma saída positiva em relação à prática entre os homens e do homem em relação à natureza superando as contradições e antagonismos enraizados e destrutivos que marcam a condição do capitalismo contemporâneo.

A urgência da organização social pelo lixo

Uma das principais características do capitalismo contemporâneo é a produção incontrolável de crescentes volumes de lixo, abrindo um desafio para aqueles empenhados na construção de uma sociedade qualitativamente diferente. O volume crescente de lixo demonstra que a economia capitalista está produzindo muito mais do que as necessidades humanas ao mesmo tempo em que um incontável número de seres humanos vivem sob condições de extrema miséria, pobreza, fome, marginalidade e exclusão social. Esse crescente volume de lixo que está sendo produzido também demonstra a progressiva diminuição da vida útil das mercadorias que, para serem consumidas mais rapidamente, necessitam ter um caráter supérfluo e descartável. Quando mais descartável e utilizado instantaneamente são as mercadorias, mais lixo se produz trazendo profundos estragos sociais e ecológicos. Não podemos ignorar a existência desse processo destrutivo que, na maioria das vezes, passa longe dos olhos e desafia a convicção socialista de transformação social. Nesse sentido, a gestão do lixo, desde o planejamento, a coleta, o destino final com o adequado tratamento e a educação ambiental se torna essencial à qualidade sócio-ambiental das cidades.

As enormes quantidades de lixo produzido, especialmente nas cidades, é uma das preocupações cruciais no mundo hoje. O processo de industrialização trouxe consigo uma veloz modificação do espaço urbano dominando, por um lado, as forças da natureza e, por outro lado, produzindo os meios necessários para a formação da sociedade capitalista. A cidade é construída sob esses parâmetros, consolidando uma situação de desigualdade substantiva. Curitiba também é um resultado de processos contraditórios e desiguais de produção do espaço urbano em decorrência dos moldes do sistema capitalista, além de estar profundamente relacionado com os problemas da estrutura fundiária da terra no Estado do Paraná. Os interesses dos ricos e da classe média sobre o espaço urbano de Curitiba fizeram com que as populações mais pobres fossem expulsas das partes valorizadas pelo mundo imobiliário da cidade.
O crescimento populacional em grandes áreas urbanas, conjuntamente com o aumento da produção e do consumo constituem fatores decisivos na elevação do volume de lixo nas grandes metrópoles. Com isso, a gestão do lixo se torna um desafio para a qualidade de vida das populações urbanas, principalmente nas áreas pobres das cidades, como Curitiba, onde as desigualdades sociais mais gritantes se fazem presente no espaço urbano.

A dificuldade de realização da coleta de lixo nos leva as condições de trabalho dos coletores – garis, carrinheiros e lixeiros – que muitas vezes passam desapercebidos pela população. Começam no amanhecer e entram pela madrugada, sábados, domingos e feriados, independentemente das condições de tempo e relevo. Sobem e descem escadarias, becos e vielas e, com muita freqüência, com excesso de peso. Seu trabalho é considerado por muitos como aquele de pior status social recebendo baixos salários que mal servem para atender as suas necessidades básicas e as de sua família.

Entretanto, a coleta de lixo é bastante lucrativa, por mais que os trabalhadores desse setor e os moradores das áreas do destino final do lixo tenham condições de vida contrárias à fantasia do consumo, do excesso, do descartável que regem as cidades sob a égide do capital.

A expansão da produção de lixo é a realidade do mundo regido pelo capital que, para se reproduzir, necessita diminuir constantemente a vida útil das mercadorias para aumentar sua rotatividade no mercado. Portanto, a produção sempre ampliada do lixo é indissociável e incorrigível no sistema do capital. A degradação da natureza não é externa a economia, mas pertence ao seu desenvolvimento contraditório voltado sempre a expansão. O lixo representa que o consumo de uma determinada mercadoria se finalizou abrindo espaço para novas mercadorias a serem consumidas.
Diante do atual colapso do lixo devido essa lógica de expansão, as opções parecem ser as seguintes: privatização dos aterros tornando o lixo uma mercadoria com destinação a ganhos privados ou um projeto popular de controle dos serviços e destinação final do lixo.

Um grande fator limitador dessa proposta popular acerca do lixo advém dos conflitos políticos e econômicos sobre a prestação dos serviços de limpeza urbana entre empresas terceirizadas, municípios, o Estado e a população. Com a privatização das empresas estatais de serviços de limpeza urbana, eles são entregues as empresas privadas que tem como objetivo único o lucro que, além de beneficiar poucos, contribuem ativamente para a continuidade da destruição ecológica contemporânea e a piora das condições de trabalho e vida daqueles que estão, direta ou indiretamente, sofrendo as conseqüências da atual crise.

Do ponto de vista social, os serviços públicos urbanos representam, ou deveriam representar, garantias básicas para melhorar as condições de vida da população urbana. Serviços como transporte, água e coleta de lixo, entre outros, não deveriam ser pensados e planejados com base no imediatismo e tendo como pressuposto o lucro privado. A gestão dos serviços de coleta de lixo e dos aterros deve ser pensada de forma metropolitana, juntamente com a população, desde a coleta até o destino final do lixo produzido. Os problemas urbanos de escala metropolitana só podem ser geridos para a melhora das condições de vida na perspectiva de ações públicas interligadas e, não menos importante, reconhecendo diferentes territórios que passam pelo mesmo problema.

sábado, 7 de novembro de 2009

Não vamos nos calar

Parcelas da classe dominante – setores do Poder Judiciário, do Congresso Nacional, do Tribunal de Contas da União, do Ministério Público e da mídia – estão articulando mais uma ofensiva contra o MST e os trabalhadores. Podemos observar essa ofensiva na criação de mais uma CPI para investigar o Movimento, a terceira instalada nos últimos quatro anos. Isso se mostra também pela reação dos meios de comunicação frente aos protestos no Pará.

Além da perseguição policial direta e do Estado atuar como protetor do latifúndio, agora se busca construir uma deslegitimação do movimento camponês, com a intenção de se criar uma repulsa social contra os trabalhadores organizados. Apresentam nosso Movimento não apenas como violento, mas como agente de corrupção.

Isso não quer dizer que as antigas fórmulas tenham sido abandonadas. Em diversos estados, os pistoleiros ainda abrem fogo contra os sem-terra, às vezes à luz do dia. Recentemente, podemos lembrar o assassinato de Elton Brum, no Rio Grande do Sul, ou os 18 trabalhadores baleados pela escolta armada da Agropecuária Santa Bárbara, no Pará.

O que os agentes defensores da estrutura agrária do país não querem mostrar é que o Brasil apresenta a pior concentração de terra do mundo. Nunca fez Reforma Agrária, ao contrário de todos os países desenvolvidos. O agronegócio, que se diz desenvolvido, produz menos de 15% dos alimentos que vão para a mesa da população. Os índices de produtividade estão atrasados desde 1975. Ainda existe latifúndio, agora aliado com transnacionais, e ele ainda mata, tortura, explora e oprime os trabalhadores rurais.

O Brasil ainda não respondeu sua dívida histórica com os pobres do campo. E nós não vamos desistir de lutar, de denunciar os crimes que são cometidos dia após dia. Essas empresas que fazem propaganda na televisão estão roubando as terras da União, como é o caso da Cutrale, em São Paulo. Estão explorando o solo com uma quantidade absurda de agrotóxicos, dando ao Brasil o título de maior consumidor de venenos do mundo.

E porque não nos calamos, seguem nos perseguindo. Estamos fazendo uma campanha internacional para denunciar o processo de criminalização que o MST e os pobres do campo vêm sofrendo. Damos o nome de criminalização às ações de agentes estatais, como os políticos e a mídia, que visam reprimir os movimentos sociais e seus militantes como criminosos, ou criar condições para que a repressão aconteça.

Querem nos isolar, retirar o apoio que a sociedade brasileira historicamente deu à Reforma Agrária. Mas estamos atentos. Recentemente, um manifesto assinado por intelectuais teve a adesão de mais de cinco mil pessoas, que denunciam a criminalização de nossa luta. Agora estamos percorrendo organismos internacionais para que o mundo saiba o que setores retrógrados do Brasil fazem com seus trabalhadores. Fomos à Organização Internacional do Trabalho (OIT), na Suíça, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, um órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA), em Washington, nos Estados Unidos.

E principalmente: nos comprometemos a seguir defendendo a Constituição Federal, que diz que a terra deve cumprir sua função social. Se querem criminalizar a luta por um direito, é nosso dever denunciar as imensas injustiças que forjaram a construção desse país. Não vamos nos calar.

Secretaria Nacional do MST

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Militante contra o Nada

Que é o militante
em tempos de não-partilha?
E como seguir lutando
exalando auto-crítica?
Quem espera pelo avesso
quando perde a solidão,
ou recai no entendimento
ou se vira com a razão.

Não um acadêmico, perdido na ciência,
Que agoniza na vivência,
“ser ilustrado,
mesmo na impotência”.

Oh Lênin! Que deixaste para nós?
Doce cólera acumulada,
que com palavras não resiste.
O desfecho da história,
só num abismo ela persiste:
na ação companheiro,
voltada para um crime*.

* Complementaridade de todos movimentos socialistas; superação das relações antagônicas do homem com a natureza e com o homem; transcendência positiva da alienação; consciência comunista em massa; resolução do conflito entre existência e essência, liberdade e necessidade, indivíduo e gênero. Por o modo de reprodução sociometabólica global do capital ser estruturalmente incapaz de estabelecer e manter uma relação historicamente sustentável dos seres humanos com a natureza além da negação usurpadora do poder de decisão não apenas na economia e na política, mas também no campo da cultura, aos indivíduos que constituem o sujeito histórico real, o trabalho, como o possuidor e realizador potencial da energia criativa humana sob uma imposição cega sobre a sociedade dos imperativos expansivos irracionais do valor de troca (não importando o quão destrutivas possam ser), a elaboração prática de um sistema alternativo exige um reexame das premissas práticas fundamentais do sistema do capital em sua totalidade combinada para ser suplantado historicamente por uma alternativa não menos abrangente e orgânica. Como as mediações antagônicas hierarquicamente consolidadas do pelo capital não podem ser reformadas, corrigidas ou controladas por constituírem um sistema perversamente interbloqueado num caráter centrífugo, a transição historicamente sustentável para além do capital envolve um conjunto de princípios e determinações operativos mais substantivos e orgânicos sob a forma de deliberações autônomas e conscientes, críticas e também autocríticas, dos indivíduos orientados para a elaboração estratégica das mediações não antagônicas exigidas pela “nova forma histórica”. Esse tipo de mediação não se refere a algum futuro mais ou menos remoto, mas ao processo histórico agora em curso. A única mediação historicamente sustentável e viável para a alternativa socialista é a mediação de si própria por parte de um sujeito social ativo que seja capaz de intervir autonomamente e conscientemente no processo de transformação exigida em nosso “destino histórico” sob uma tomada de decisão substantiva pelo corpo social em sua totalidade – uma automediação.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

O desemprego no sistema do capital

Para Karl Marx, o trabalho é a mediação orgânica entre o homem e a natureza que, “ao atuar, por meio desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza” (Marx, 1983, p. 149). Nas belas palavras de Lukács, o trabalho é a protoforma do ser social (Lukács, 1979). Entretanto, o que acontece com um metabolismo social em que uma de suas características centrais é a condição do não-trabalho, não por um capricho da natureza, mas por manifestar uma das dimensões mais explosivas da crise estrutural do capital?

Segundo Marx (nos Grundrisse), em diferentes modos de produção, diferentes leis regem o aumento da população e a existência de uma “superpopulação relativa” . Essas leis estão diretamente ligadas com as formas com que os indivíduos se relacionam com as condições de produção. Na fase particular capitalista de produção de capital, a produção para troca é dominante; a própria força de trabalho, tanto qualquer outra coisa, é tratada como mercadoria; a motivação do lucro é a força reguladora fundamental da produção; o mecanismo vital de extração de mais-valia, que é a separação radical entre meios de produção dos produtores, assume a forma inerentemente econômica que é apropriada privadamente pelos membros da classe capitalista; e de acordo com seus imperativos econômicos de crescimento e expansão, a produção de capital tende a integração global por intermédio do mercado internacional, com um sistema totalmente interdependente de dominação e subordinação econômica. Assim, o capitalismo é uma forma específica de funcionamento do capital como relação social onde bens e serviços, inclusive as necessidades mais básicas da vida, são produzidas tendo como fim a troca lucrativa; os requisitos da competição e da maximização de lucro são regras fundamentais da vida social e, devido a essas regras, é um sistema voltado singularmente para o desenvolvimento das forças produtivas e o aumento da produtividade do trabalho através de mudanças tecnológicas e organizativas que tem como conseqüência uma diminuição progressiva do trabalho socialmente necessário. Esse é, ao mesmo tempo, o norte de seu desenvolvimento e seu fardo já que necessita transformar-se constantemente para adequar-se a suas próprias mudanças.

Por ser um sistema composto, em sua grande maioria, por trabalhadores livres sem posses e obrigados a vender sua mão-de-obra por um salário a fim de subsistir, vemos que toda a produção de bens e serviços está subordinada à produção de capital e não a qualquer tipo de organização e distribuição de riqueza para os seres sociais que trabalham. Portanto, o objetivo básico do sistema capitalista é a auto-expansão do capital, e não a criação de empregos ou o suprimento das necessidades humanas.

Com o capital conseguindo libertar-se dos constrangimentos dos sistemas orgânicos anteriores, superando principalmente as proibições da compra e venda de terra e trabalho, ele pode afirmar-se como sistema orgânico oniabrangente que visa à auto-expansão reduzindo e degradando os seres humanos à condição de meros “custos de produção” como “força de trabalho necessária” tratando o trabalho vivo como “mercadoria comercializável”. Como escreve István Mészáros, se os sistemas orgânicos anteriores eram orientados para a produção de valores de uso e tinham um alto grau de auto-suficiência, o capital pôde emergir e triunfar sobre seus antecessores históricos como um sistema de controle sociometabólico pelo abandono de todas as considerações em relação à necessidade humana às limitações dos valores de uso não-quantificáveis, sobrepondo-lhes os imperativos fetichistas do valor de troca quantificável e sempre expansivo. Segundo Mészáros, “eis como a forma historicamente específica do sistema do capital: sua variedade burguesa capitalista passou a existir. Teve de adotar o modo esmagadoramente econômico de extrair trabalho excedente pela mais-valia estritamente quantificável” (Mészáros, 2007, p. 56) . Entretanto, como salientou Marx, o capital não é a forma absoluta para o desenvolvimento das formas de produção. Suas contradições se inserem no seu próprio desenvolvimento histórico que produz, inexoravelmente, crises. É sob o movimento delas que grande parte do argumento de Marx em relação ao desemprego se estabelece.

Por exemplo, Marx relaciona a superprodução de mercadorias com a superpopulação trabalhadora excluída da produção. A estagnação no mercado abarrotado de determinadas mercadorias obstrui o processo de reprodução do trabalhador que, diante do crescimento de produtividade, se torna supérfluo. Marx utiliza o exemplo do percal: com a superprodução de roupas de algodão, o primeiro a ser afetado é o tecelão.

Agora, eles são em uma medida menor ainda, ou nada em absoluto, consumidores de sua mercadoria – roupas de algodão – e de outras mercadorias que entram em seu consumo. É verdade que eles precisam de roupa de algodão, mas não podem comprá-la porque não possuem os meios, e não possuem os meios porque não podem continuar a produzir e eles não podem continuar a produzir porque já foi produzido em demasiado, demasiadas roupas de algodão já estão no mercado. Nem o conselho de Ricardo de “aumentar sua produção” nem sua alternativa de “produzir outra coisa” podem ajudá-los. Eles agora formam uma parte da população excedente temporária, da produção excedente de trabalhadores, neste caso dos produtores de algodão, porque há uma produção em excesso das fábricas de algodão no mercado (idem, p. 59).

Entretanto, por que o conselho de Ricardo não poderia atenuar ou acabar com esse processo de produção de trabalhadores excedentes? Marx explica esse processo a partir das condições para a venda das mercadorias. Como o objetivo da produção capitalista é a apropriação da maior quantidade possível de tempo de trabalho imediato com o capital disponível, seja com o prolongamento do dia de trabalho ou pela redução do tempo necessário, através do desenvolvimento da força produtiva do trabalho por meio da cooperação, divisão do trabalho, maquinaria, a produção de trabalho excedente está dialeticamente ligada com o trabalho socialmente necessário para a produção de mercadorias. Quanto mais incrementos nas técnicas de produção, máquinas e equipamentos que possam tornar o trabalho mais produtivo com um número menor de trabalhadores, menos trabalho é necessário e, consequentemente, o trabalho excedente se expande. Para o capital não existe alternativa a esse processo contraditório de desenvolvimento pela ligação estrutural entre a valorização ampliada do capital e o trabalho socialmente necessário. Segundo Marx, é uma condição para a venda de mercadorias que seu valor contenha apenas o tempo de trabalho socialmente necessário. Se mais trabalho for usado, o capital corre o risco de desvalorização. Portanto, do ponto vista do capital, não faz sentido algum ter empregados a mais do que o socialmente necessário para a produção. Em momentos de crise isso fica claro já que quem paga primeiramente pelo excesso de trabalhadores são os próprios trabalhadores sendo, do ponto de vista do capital, inadmissível a superação de suas crises periódicas sem um “enxugamento” de custos – dos salários e empregos, por exemplo. Dessa forma, o constante revolucionamento das condições de produção capitalista envolve a reorientação dos trabalhadores necessários e dos desnecessários das quais os últimos se tornam figuras supérfluas para a acumulação de capital. Para Marx, o processo de acumulação capitalista “sempre produz, e na proporção da sua energia e de sua extensão, uma população trabalhadora supérflua relativamente, isto é, que ultrapassa as necessidades médias da expansão do capital, tornando–se, desse modo, excedente” (Marx, 1983, p. 731). Entretanto, esse “excedente” não significa que não tenha nenhuma importância para o sistema do capital. Ao contrário, ao aumentar a “população trabalhadora supérflua relativamente”, o poder de barganha do capital para diminuir os custos da produção aumenta, além de intensificar a competição entre os trabalhadores diante do crescente risco de estar completamente fora do campo de trabalho. Nesse sentido, o fenômeno do desemprego é inerente e funcional à própria lógica auto-expansiva do capital que subordina estruturalmente o trabalho. Historicamente, é a transformação do trabalho socialmente necessário para a produção de mercadorias em trabalho excedente, a partir da lógica contraditória e expansiva do capital que não tolera, de forma alguma, que esse trabalho supérfluo seja integrante da produção já que iria inevitavelmente desvalorizar o processo de valorização do capital.

Duas tendências são operantes simultaneamente e de forma contraditória na produção capitalista. Por um lado, existe a luta do capital para extrair a quantidade máxima de trabalho vivo com o ímpeto de aumentar a massa potencial de mais-valia. Por outro lado, o capital possui um impulso em direção à mais-valia relativa que se manifesta pelo aumento no capital constante em detrimento do capital variável induzindo o capital a colocar como supérfluos muitos trabalhadores periodicamente. Portanto, o desemprego não é uma falha eventual no mercado de trabalho e sim um fenômeno estrutural da dinâmica do capital. Continuando com a abordagem de Marx:

A superpopulação relativa é inseparável do desenvolvimento da capacidade produtiva do trabalho, que se traduz na redução da taxa de lucro, e este desenvolvimento acelera seu processo. Quanto mais se desenvolve em um país o regime capitalista de produção, mais agudo se apresenta nele o fenômeno da superpopulação relativa. E está é, por sua vez, a causa de que, por um lado, perdure em muitos ramos de produção a sujeição mais ou menos incompleta do trabalho ao capital, sustentando-se durante mais tempo do que à primeira vista corresponderia ao estado geral do desenvolvimento; isto é conseqüência da barateza e da abundância dos operários assalariados disponíveis ou desocupados e da maior resistência que alguns ramos de produção opõem, por sua natureza, à transformação do trabalho manual em trabalho mecanizado (Marx in Romero, p. 94).

Para Marx a relação entre “desenvolvimento da capacidade produtiva do trabalho” e o aumento agudo da “superpopulação relativa” não é conflituosa. Ao contrário, o desenvolvimento da produção capitalista é acompanhado pelo fenômeno do desemprego que pressiona os salários para baixo e ajuda a retomada das taxas de lucro. Para Marx, com o processo de reprodução social do capital global, seu componente variável aumenta em proporção decrescente. Nesse sentido, a “superpopulação relativa” compensa e neutraliza os efeitos da lei geral da acumulação e expansão de capital, isso é, a expansão dos desempregados é uma resposta diante da tendência de queda da taxa geral de lucro tornando-a menor e menos rápida . O crescimento da “superpopulação relativa” esta ligada, portanto, com o processo de superprodução de capital que, ao elevar a capacidade produtiva do trabalho, cria trabalho supérfluo. Entretanto, para pensarmos sobre o desdobramento de um desemprego de cunho estrutural (de longa duração e amplitude) temos que nos deter sobre desenvolvimento histórico do sistema do capital. Para Marx, a “suposição extrema” de uma superprodução absoluta de capital (meios de produção, meios de trabalho e subsistência) que se destina a funcionar como capital cria uma “superpopulação artificial”. Em outras palavras, quando o capital não encontra condições de explorar o trabalho em um grau de exploração condicionado pelo desenvolvimento “sadio” do processo de exploração capitalista que, pelo menos, aumente a massa de lucro com a crescente massa de capital empregado, cria-se um excedente de operários que são supérfluos. Dessa forma, superprodução de capital e aumento da superpopulação “existem um ao lado do outro e se condicionam mutuamente” (idem, p. 118).

Os mesmo fatores que elevam a capacidade produtiva do trabalho, que aumentam a massa dos produtos-mercadorias, que ampliam mercados, que aceleram a acumulação de capital tanto em relação à massa quanto em relação ao valor, e que reduzem a taxa de lucro, criaram e criam constantemente uma superpopulação relativa, uma superprodução de operários que o capital excedente não empregada pelo baixo grau de exploração do trabalho que teria ao empregá-los ou, ao menos, pela taxa de lucros baixa que seria obtida por este grau de exploração (idem, p. 118).

Essa “suposição extrema” de superprodução absoluta se encontra em desdobramento desde meados de 1970 no sistema do capital. É uma espécie de superprodução crônica que demonstra um dos limites absolutos do capital conjuntamente com a emergência do desemprego estrutural. Como escreve Mészáros,
Alcançamos um ponto no desenvolvimento histórico em que o desemprego se coloca como um traço dominante do sistema capitalista como um todo. Em sua nova modalidade, constitui uma malha de interrelações e interdeterminações pelas quais hoje se torna impossível encontrar remédios e soluções parciais para o problema do desemprego em áreas restritas, em agudo contraste com as décadas do pós-guerra de desenvolvimento em alguns países privilegiados, nos quais os políticos liberais podiam falar sobre pleno emprego em uma sociedade livre (Mészáros, 2007, p. 145).

Não é possível compreender a emergência do desemprego estrutural sem nos debruçar sobre a crise de acumulação e expansão do capital que, desde meados de 1970, se torna uma marca crucial de nossa atual época histórica como um todo. Como salienta Alain Bihr, a ofensiva (neo)liberal após 1970 não abriu caminho para a superação da crise capitalista. Na realidade, só poderia ser uma Vitória de Pirro já que “ao provocar o agravamento do desemprego, a diminuição do poder de compra dos assalariados, a compressão dos gastos públicos, a alta das taxas de juro, ela agrava a crise latente de superprodução com a qual se debate o capitalismo ocidental desde o início da década de 70” (Bihr, 1999, p. 77) . Tratemos dessa questão no próximo post.