Estou postando um comentário muito interessante de meu amigo Cristiano em relação a meu post "biopolítica da vida cotidiana" e uma resposta logo após.
Como se daria esse "arrancar o ser de seu lugar"? Porque, pensando sob um viés heideggeriano, o Ser-aí é o desde já aberto ao outro Ser-aí - o estar aberto é já estar-junto-a, e já ser-com como o a priori da existência - de modo que essa relação constitui o Ser-com-o-outro próprio de todo Ser-aí. O que eu quero dizer com isso é: como há a possibilidade de um Outro arrancar, pelo amor, o Ser de seu lugar (ou o Ser do Outro de seu lugar), sendo que é propriamente esse lugar (o 'aí' do Ser-aí) que permite a inter-relação entre ambos os sujeitos que compartilham um mundo em comum? Ou você tratou esse "arrancar" sob uma ordem metafórica, como se fosse abertura ou irrupção do sujeito anteriormente fechado à relação amorosa propriamente dita, e que daí entraria na idéia de "empatia" como a "porta por meio da qual um sujeito que se encontra fechado em uma couraça passa de certo modo para o outro lado.(Heidegger)"? Mas, ainda aqui, Heidegger opta pela interpretação de Leibniz, em contraposição a esta idéia de empatia que libertaria a essência do sujeito, quando diz que "os homens não precisam de nenhuma janela [a empatia seria a janela], não porque precisem ir pra fora, mas porque já estão essencialmente fora."
Talvez o arrancar pudesse entrar num terceiro momento, se é que estamos falando da mesma coisa: num primeiro o Ser é o desde já aberto (a priori); a posteriori, o sujeito pode se fechar à manifestação de Outrem [isso é afirmado por Heidegger, mas só num momento a posteriori], mantendo-se recluso; e, por último, este mesmo Outro que clama por resposta (já que a linguagem obriga), arranca o Ser deste Outro de seu casulo fazendo irromper toda a sua plenitude inicial.
Mas aqui, parece, surgiria um novo problema: é o amor uma relação de poder? há, nesse mesmo amor como abertura, uma pseudo-relação entre sujeito-objeto onde prevalece a vontade do primeiro? Caso seja sim a resposta, isso entraria em choque com a filosofia ontológica de Heidegger e a idéia de Ser elaborada por ele. Enfim, não sei se você se baseou em Heidegger (deduzi porque o Zizek parece que trabalha com ele, não?), mas são essas algumas dúvidas que surgiram.
Caro Cristiano, fico muito feliz com seu comentário, muito complexo por sinal. Vou tentar abordar a altura tentando estabelecer ligações sob um paradoxal elogio e uma crítica às posições heideggerianas.
Primeiro ponto: se para Heidegger o Ser é a caserna do ser, quando o ser se distancia do Ser é exatamente quando ele se distancia de outros seres e vice-versa. Parece-me que o Ser-aí esta relacionado com essa dinâmica: o homem é chamado pelo próprio ser e escolhido para sua guarda. Aqui se encontraria a linguagem que seria “a casa do ser. Ao morar nela o homem existe [ek-sistiert], à medida que compartilha a verdade do ser, guardando-a. O que importa, portanto, a definição da humanidade do ser humano enquanto existência [Ek- sistenz], é que o essencial não é o ser humano, mas o ser a dimensão do extático da existência”. Sob essa formulação, podemos dizer que para Heidegger entende que a tarefa do ser humano é guardar o Ser, e corresponder ao Ser. Aqui o ser humano por ser entendido como criatura que fracassou em seu ser-animal ou em seu permanecer-animal. Sob esse fracasso é que existe a virada ontológica... O que queremos dizer com isso? Que algo que Heidegger já havia notado desde 1946 quando clamada por um humanismo, além da sua época, que pudesse dar conta da tarefa de criar condições de estabelecer uma relação positiva entre o ser humano e o Ser, algo que o processo de desenvolvimento da técnica e da própria sociedade industrial tornava cada vez mais distante. É sob esse viés que o amor deve ser entendido, uma busca por uma relação transferêncial de linguagem que aproxime os seres. Aqui a importância do discurso do analista (que é o amor em movimento lingüístico) lacaniano no sentido de fundar uma forma de intercâmbio interhumano que possibilite o trabalho com o sujeito transcendental, o sujeito dividido sob sua falta-a-ser...
Segundo ponto: parece-me que trabalhas com o segundo Heidegger enquanto pessoalmente prefiro o terceiro. Em minha opinião ali existe uma ontologia congelada: vou explicar. Em o Ser e o Tempo Heidegger opta pela não existência de uma distinção entre o indivíduo e a humanidade de qual forma que é possível a existência de um sujeito dessocializado. Seu ponto é liberal no sentido de que, ao invés de afirmar que o indivíduo é “derretido” sob o processo de alienação especificando as condições sócio-históricas do capitalismo, ele “sublima” as relações construídas historicamente e as transforma em “dimensões ontológicas” da Existência. Seguindo nosso autor “a alienação não pode significar que o Dasein esteja facticamente afastado de si mesmo. Pelo contrário, essa alienação o leva a um tipo de Ser que se aproxima da mais exagerada autodissecação tentando a se mesmo com todas as possibilidades de explicação, de modo que as “caracterologias” e “tipologias” que o Dasein provocou já que estão tornando, elas mesmas, algo que não pode ser examinado de uma vez só. Essa alienação isola o Dasein de sua autenticidade e possibilidade, mesmo que seja apenas a possibilidade genuínas de falhar” (Ser e o Tempo, p.222). Aqui podemos ver que as características da alienação da sociedade capitalista são naturalizadas por intermédio de sua ontologia que glorifica a “condição inconsciente da humanidade” como a “estrutura existencial do próprio Dasein”. Heidegger está errado nesse ponto. A ontologia humana é uma ontologia social em constante mutação – lembremos Marx aqui para quem existem sim potencialidades reais de desenvolvimento muito além da “estrutura ontológica-existencial do Dasein” que é exatamente o processo de realização do “indivíduo realmente social” que quando mais se desenvolve menor é o conflito entre indivíduo e sociedade, indivíduo e humanidade, considerando que hoje a grande contradição que permeia o Mundo é, sem dívidas, entre o indivíduo e a Totalidade. Aqui a busca por estratégias socialista de criar mediações que estejam a par dessas contradições. O sonho anarquista é acabar com as mediações. Para Marx, o caminho encontra-se por meio da automediação, mediar-se a si mesmo ao invés de ser mediado por instituições reificadas...
Um comentário:
Não consegui encontrar uma diferença substancial entre o ser-aí mediado pelo público heideggariano, que assume a mediação e a medianidade como constituição positiva do próprio ser-aí, e o indivíduo mediado pela totalidade. Heidegger, se erra, erra apenas em deixar de fazer um programa concreto da automediação em Ser e Tempo, programa de qual desconfiaria muito quando o ser-aí é jogado à própria responsabilidade. Podemos concordar que essa própria responsabilidade seja exagerada, dadas as barreiras externas do social e as próprias vicissitudes inconscientes do desejo. Mas esse é o nosso problema: como instar o outro a automediar-se quando o ser-aí na idade da técnica tende à impessoalidade decadente da alienação? A segurança do social que derrete o indivíduo talvez seja um valor querido por esse próprio indivíduo, e o filósofo, que julga ter um contato privilegiado com a verdade, quer salvá-lo da alienação apesar de sua disposição para a alienação.
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