Domenico
Losurdo
Quando se fala de socialismo do século XXI é necessário
diferenciá-lo do socialismo do século XX. Este último foi marcado profundamente
pela experiência soviética. Não é a toa que quando caiu o muro de Berlim muitos
falaram da “crise do socialismo real”, como se a experiência da URSS fosse a
única e melhor possibilidade de construção do socialismo e que, assim, as
experiências de China, Vietnam e Cuba fossem seguir o mesmo caminho de
restauração do capitalismo e que estavam inexoravelmente fadadas ao fracasso.
Mas qual seria a principal marca do socialismo do século
XX? Vários processos são apontados como marcas importantes, mas talvez um dos
pontos que mais chame atenção foi a ineficiência econômica devido ao papel do
Estado desde 1950. Afinal, a forma encontrada de socialização dos meios de
produção foi a estatização total. Isso se repetiu na experiência cubana e no
primeiro momento da chinesa. Sob esse formato, socialismo e estatismo pareciam
ser irmãos.
Como
salienta Wladimir Pomar, o que diferencia o PC da China dos partidos comunistas
da União Soviética e do Leste Europeu é que ele levou a sério o fracasso das
tentativas de construir o socialismo sem completar o desenvolvimento das forças
produtivas, que cabia ao capitalismo realizar. Por outro lado, embora
utilizando o mercado e formas de propriedade privada, o PC chinês não concorda
que o mercado e a propriedade privada subordinem o Estado a seus interesses. Na
China, a economia é de mercado, mas o mercado e a propriedade privada
encontram-se sob a direção do Estado, com a propriedade social tendo um peso
relevante. Não por acaso, os principais "críticos" ocidentais do modelo
chinês se voltam contra o que chamam de "Estado do sistema de partido
único". Segundo eles, tal Estado impediria a China de construir um
arcabouço jurídico de concorrência, o que limitaria sua competitividade, e de
construir um regime democrático e uma sociedade civil ativa, o que a impediria
de ocupar uma posição de liderança global. Na verdade, para esses críticos, com
partido único ou multipartidarismo, o problema é a existência de um Estado que
direciona e regula a ação do mercado e das formas de propriedade. E, ao
contrário do que afirmam, tem capacidade de estimular a competitividade, a
democracia e a sociedade civil além de ocupa uma posição cada vez mais importante
no cenário mundial.
Talvez seja por isso que a experiência chinesa cause tanto incomodo
para setores progressistas e de esquerda. A maioria considera que a China é
capitalista porque seria impossível conviver tanto tempo com a influência do
setor privado e que, assim, o “modelo chinês” não pode se apresentar como uma
alternativa estrutural e estratégica ao capitalismo em geral. Mas qual é a
novidade da experiência chinesa pós-Mao de socialismo?
Por mais que os comunistas chineses
não gostem na analogia, é possível encarar o socialismo de mercado como uma
repetição da NEP (Nova Política Econômica) implantada na Rússia na década de
1920 - só que melhorada, gigantesca e numa escala de tempo maior. O resultado
deste processo é a ascensão da China na hierarquia mundial de poder e riqueza sendo este um
dos fenômenos mais importantes da economia política internacional
contemporânea. Mas quais são as
causas do seu estonteante crescimento econômico nas últimas décadas? Quais são
os impactos da Economia Socialista de Mercado num contexto de crise mundial do
capitalismo?
Desde a formação da China moderna em 1949, seu
ciclo econômico vem apresentando alto ritmo de crescimento dos investimentos em
capital fixo. A partir de 1980 a China é o país que mais cresce no mundo. Com
um território de cerca de 9.597.000 de quilômetros quadrados e uma população de
1,5 bilhão de pessoas, a China é a principal oficina do mundo liderando a
produção de milhares de mercadorias. Em 2005 a China ultrapassou os Estados
Unidos na produção manufatureira chegando a 13,1% da produção global. Essa
liderança chinesa não se restringe a produtos de baixo valor agregado como
brinquedos e calçados, mas corresponde, por exemplo, a cerca de 30% da
fabricação mundial de equipamentos de computador. O PIB chinês teve um
crescimento médio do Produto Interno Bruto (PIB) de 10% entre 1980 e 2010 e um
crescimento do PIB per capita de US$ 205,1 em 1980 para US$ 4.282,9 em 2010.
Esse processo dinâmico e altamente produtivo deixa claro que o mundo depende
cada vez mais da China, em especial num meio internacional de recessão
econômica e desnorteamento político generalizado. Como escreve Giovanni Arrighi,
As
conseqüências da ascensão da China são grandiosas. A China não é vassala dos
Estados Unidos, como o Japão ou Taiwan, nem é uma reles cidade-Estado como Hong
Kong e Cingapura. Embora seu poderia militar empalideça quando comparado ao dos
Estados Unidos e o crescimento de suas indústria ainda dependa das exportações
para o mercado norte-americano, a riqueza e o poder dos Estados Unidos dependem
igualmente, ou ainda mais, da importação de mercadorias chinesas baratas e da
comprar, por parte da China, de títulos do Tesouro norte-americano. O mais
importante é que, cada vez mais, a China vem substituindo os Estados Unidos
como principal motor da expansão comercial e econômico na Ásia oriental e em
outras partes do mundo (2008, p. 23).
Mesmo nesse panorama, os marxistas ocidentais
descartam a idéia de que ainda exista algum socialismo na China,
independentemente que seja de mercado ou qualquer outro tipo. Uma economia de
mercado socialista seria um paradoxo insolúvel que deveria ser descartado como
mais uma anomalia pós-revolucionária, como o stalinismo. Afinal, o capitalismo
foi restabelecido na China?
As reformas de Deng introduziram um novo curso na
“institucionalização da revolução chinesa” que não remontam ao modelo
kruschoviano de “desestanilização”. Depois de sua morte, Mao não foi o culpado
das dificuldades anteriores e nem demonizado, como fora Stálin. A Mao foram
ligados os enormes avanços históricos conquistados na construção do partido
comunista e na direção da luta revolucionária – junto com valorosos
companheiros como Zhu Enlai. Também houveram críticas sobre os graves erros
cometidos, em especial a partir de 1955, mas que foram colocados sob o prisma
geral de um contexto de experiências extremamente complexas que acompanham o
processo de construção de uma sociedade nova, sem precedentes históricos.
Esse
caminho evitou a perda de legitimidade do poder revolucionário e fez surgir
gradualmente o “Socialismo de Mercado” com características chinesas. As reformas de Deng foram construídas sobre os
princípios maoístas que elevaram a expectativa de vida, a alfabetização e a
produção de alimentos. O governo pós-Mao também investiu na criação das
Zonas de Processamento para Exportação, na expansão e modernização da educação
superior, em grandes projetos de infraestrutura e intervém diretamente para
promover a colaboração entre universidades e indústrias para o desenvolvimento
tecnológico. O tamanho continental e o excedente populacional permitiram a
China aceitar a industrialização voltada para a exportação com forte teor
competitivo, induzida em parte pelo investimento estrangeiro, com a vantagem de
ter uma economia nacional centrada em si mesma e resguardada pelo idioma, pelos
costumes, pelas instituições e pelas redes, aos quais os estrangeiros só tinham
acesso por intermediários locais. O mais interessante é que na China moderna
não houve traições ao processo revolucionário e está se procurando encontrar
novos caminhos (mais pragmáticos) para os dilemas de construir uma sociedade
socialista, uma verdadeira negação prática do stalainismo. Depois da Revolução
Cultural fica mais clara a necessidade do Partido Comunista colocar como centro
político um recuo estratégico voltado para acumular forças produtivas numa
situação em que o modelo soviético mostrava-se capengando e apenas a
mobilização das massas não conseguiam elevar o padrão tecno-científico chinês
aos dos países do centro do capitalismo mundial. Este recuo, diferentemente da
experiência soviética, não promoveu a estatização total dos meios de produção e
nem a coletivização forçada do campo. Essa estratégia estatista foi vista como
ineficiente para o desenvolvimento das forças produtivas levando a divisão
da propriedade estatal com a propriedade coletiva e privada. Por isso não se
optou pela privatização das estatais, mas por sua modernização. Com isso, estas
três formas de propriedade competem incentivando um maior dinamismo na economia
deixando para trás a equiparação mecânica entre socialismo e estatismo. Com uma
experiência fortemente empírica, o governo
estimula várias formas de propriedade e com seu sucesso produtivo elas se consolidam
como resultado da mistura de associações de trabalhadores estatais e coletivos
com capitalistas individuais, relações público-privadas e público-público.
Engraçado notar que não se costumar falar que foi a Grande Revolução
Cultural do Proletariado que estimulou à criação de novas relações de produção
cuja melhor representação são as empresas rurais de caráter territorial e
coletivo - o “grande segredo” da experiência chinesa contemporânea, responsável
por mais de um terço dos produtos exportados pelo país cumprindo um papel
crucial na absorção de excedentes populacionais vindo do campo. Elas se
tornaram indústrias leves e surpreendentes que impulsionam a invasão chinesa
nos mercados externos com mercadorias simples que iam de camisas de seda a
brinquedos e que hoje já se inserem na produção relacionada a alta pesquisa
tecnológica com biogenética, fabricação de aviões, etc. Estes são os famosos
“dragõezinhos” que inviabilizam qualquer equiparação com a experiência
soviética deixando claro que, mesmo no século XX, existiram socialismos e não
apenas a estrela-guia soviética. Talvez agora isso seja mais claro diante da ascensão
chinesa e da derrocada URSS.
Esta é uma lição para o socialismo do século XXI: se no
século XX a estatização completa era o único caminho que se abria para as
sociedades pós-revolucionárias, nada indica que hoje este seria a melhor saída
para construir uma nova sociedade. Um ordenamento mais flexível onde a
propriedade estatal dos recursos estratégicos dos meios de produção se conjuga
com outras formas de propriedade pública não-estatal, com empresas mistas e
diversos tipos se associação não é livre de contradições, mas é uma forma de
conjugar socialismo e capitalismo em países que necessitam desenvolver forças
produtivas para impulsionar os limites do capital ao seu transbordamento
abrindo espaço para uma ofensiva socialista. Este processo depende
da articulação competitiva entre os capitais estatais, associações
público-privadas, público-público, público-cooperativas e cooperativas. Esse
processo deve acabar deixando claro que a propriedade privada dos meios de
produção não é necessariamente aquela mais produtiva e dinâmica. Quanto mais
dinâmicas forem as iniciativas da propriedade coletiva, pública e associativa
melhor. Isso com políticas macroeconômicas com capacidade de remediar as
distorções do mercado pelo poder dos meios de produção públicos e estatais que
devem estar a prova de constantes reformas modernizadoras para ganharem
eficiência econômica e servir como instrumentos chaves para um planejamento
macroeconômico capaz de dirigir e regular o mercado.
Essa
forma de lidar com os meios de produção singulariza a experiência chinesa. Como
resultado desta gigantesca NEP a experiência chinesa agora é calcada em bases
industriais sólidas que se aproximam cada vez mais de uma verdadeira “grande
indústria” no sentido marxiano com uma importante relevância no mercado
mundial, política ativa em ciência e tecnologia e uma solidez financeira jamais
sonhada pelas antigas gerações. A questão que se coloca para quando a NEP à
chinesa se completar é se o Partido Comunista vai conseguir a mobilização popular
e política para caminhar com vigor para o segundo passo ao socialismo, mas este
é um risco inerente ao heterodoxo caminho chinês. Como diria Wladimir Pomar, é
evidente que há, sempre, a possibilidade de a situação se inverter, e o Estado
chinês subordinar-se ao mercado e à propriedade privada. Esse parece ser um dos
riscos inerentes aos países em desenvolvimento, que buscam realizar processos
mais profundos de transformação social. Com
certeza não é o socialismo utópico tão impregnado na esquerda ocidental, mas é
o socialismo real que talvez esteja mais próximo de dar início a transição para
uma sociedade igualitária.
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