A atual crise não é a “brincadeira” que está sendo televisionada na mídia internacional e nacional. Suas fundamentações além de serem essencialmente pobres, recorrem ao recurso de pensamento liberal ou abertamente neokeynesiano. Tudo se passa como se as causas da atual crise que se aprofunda pudessem ser facilmente sanadas pelo Estado ou por medidas técnicas de economistas especializados.
A crise que se desdobra hoje é a mais a profunda de toda a história do capital e, conseqüentemente, impõem formas de ação que consigam lidar com a destrutividade do capital não num sentido de “regulação” ou “formalização do Estado como comitê central dos negócios da burguesia financeira global” e sim, muito especificamente, num sentido de superação radical do capital da qual os capitalistas não podem prover qualquer resposta já que passa por um processo tortuoso de massa, cheio de conflitos, contra-revoluções, ditaduras militares em alguns países subdesenvolvidos, o estado de exceção numa progressiva atuação na forma de governo democrático-liberal, penalização massiva da pobreza, crescente concentração de riqueza em nível mundial, e, talvez o mais importante para a esquerda, uma crescente urgência histórica necessária para impedir a extinção humana. A crise que se desdobra é a progressiva destrutividade da condição do capital como mediador do homem com a natureza, destruindo tanto homem quanto natureza. Essa crise, portanto, é de longa duração e problematiza toda a história do capital desde seus primórdios quando a subordinação estrutural sobre o trabalho ainda era embrionária, mas já baseada em sangue.
Em 2009 estamos ainda nas primeiras etapas desse processo que se desdobra de forma acelerada e destrutiva. O sistema financeiro internacional ainda não ruiu. A tendência que se desdobra desde 1970 inicia uma a progressão que aprofunda os antagonismos estruturais do capital fazendo, inevitavelmente, uma queda brusca no comercio mundial, aumento progressivo do desemprego crônico com importantes tensões sociais tanto nos países mais desenvolvidos como nos países menos desenvolvidos. Em sua dimensionalidade econômica e financeira, a atual crise parece um “assopro de anjo” em relação à crise de 1929-33. Sua escala de tempo também é diferenciada já que envolve uma simultaneidade global a partir do coração do sistema do capital. A escala de tempo se transforma exatamente pelo espectro ampliado da atual crise, que deixa até os apologistas do capital mais viscosos, muitas vezes embaraçados quando necessitam legitimar seu querido sistema social de controle que, diante do aprofundamento da crise, está aprofundando suas contradições e antagonismos acumulados historicamente.
A atual crise não é imediata. Ela ascende a partir da década de 1970 e desdobra desde lá com uma voracidade social e ecológica nunca sem precedentes. Isso porque, desde lá, os fundamentos do capital estão sendo questionados pelo próprio capital que, por uma crescente incapacidade de atender seus imperativos existenciais de acumulação e expansão, inicia um processo altamente destrutivo num período de época histórica onde a totalidade de seus elementos expansivos são prejudicados progressivamente pela impossibilidade objetiva da valorização do capital na esfera da produção, isso é, de acumulação de capital.
A mudança estratégica presente sobre a “administração da crise” trouxe uma fina ironia onde os fundamentalistas neoliberais tiveram que se ajoelhar o Estado para um “socorro de emergência” numa ridicularização do discurso pregado nas últimas décadas baseado na metafísica da “mão invisível” como a capacidade da liberdade e igualdade. Num curtíssimo tempo desapareceram do cenário econômico mundial os cinco maiores bancos de investimento dos Estados Unidos (o vértice da pirâmide do capital financeiro), as duas maiores hipotecárias do planeta, a maior empresa seguradora do mundo e o que foi em grande parte do século XX a maior empresa do mundo faliu. Se alguém desse esse prognostico há alguns anos ou meses atrás desses catastróficos eventos provavelmente seria convidado a integrar um hospício. A ironia subjacente desse processo está exatamente na falência, junto com essas enormes empresas, do pensamento neoliberal.
O desdobramento da atual crise já traz como conseqüência uma “falência do pensamento neoliberal” com seus prognósticos de liberalização econômica financeira como o caminho da liberdade. Principalmente porque o caráter de classe do Estado neoliberal se escancara sendo forçosamente expulso das “férias da história” que muitos esquerdistas teorizam como a construção de um Império sem fronteiras e sem polarização de poder global . A atual crise, ao invés da milagrosa acumulação de capital, advém da superacumulação de capitais e sua impossibilidade objetiva de valorização na esfera produtiva encontrando, entre outras formas, a financeirização como uma resposta capenga para redistribuição do lucro capitalista global. Como acentuava Marx, o capital tem como impulso vital a valorização, a criação de mais-valia para absorver o máximo possível de trabalho excedente, motivado pelo objetivo determinante do processo de produção capitalista: a auto-valorização do capital. Desde meados de 1970 esse objetivo está, de forma crescente e antagônica, apresentando problemas críticos à totalidade da ordem estabelecida. A resposta desses problemas críticos no campo da produção (que muitas vezes os apologistas do capital encaram como causa) se deu com a neoliberalização. Existiu uma intensificação da desregulamentação das regras para o investimento estrangeiro, comércio internacional e privatizações, sob ditaduras ou democracias, que criaram as condições favoráveis para a financeirização econômica global, isso é, uma escalada para a contínua expansão do dinheiro mediado apenas pelo dinheiro. Marx formulou esse capital fictício como D – D’, isso é, dinheiro que se expande não passando pela produção de mercadorias que, nas últimas décadas, tomou diversas formas, como escreve David Harvey, “por meio da especulação, da predação, da fraude e da roubalheira. Operações fraudulentas com ações, esquemas Ponzi, a destruição planejada de ativos por meio da inflação, a dilapidação de ativos por meio de fusões e aquisições agressivas, a promoção de níveis de endividamento que reduziram populações inteira, mesmo em países capitalistas avançados, à escravidão creditícia, para não falar das fraudes corporativas, da espoliação de ativos (o assalto aos fundos de pensão e sua dizimação pelo colapso do valor de títulos e ações e de corporações inteiras) por manipuladores de crédito e de títulos e ações – tudo isso constitui a verdadeira natureza do atual sistema financeiro capitalista. Há incontáveis maneiras de extrair dinheiro do sistema financeiro. Como ganham por comissões a cada transição realizada, os corretores podem maximizar seus lucros mediante a negociação freqüente de seu portfólio de títulos (prática conhecida como churning – transação supérflua), pouco importando se as transações adicionam ou não valor à conta dos clientes (2008, p. 174).
Não menos importante e alarmante, junto com esse processo, uma redistribuição de renda altamente desigual foi colocada em prática. Como exemplo recente, entre 2000 e 2006, nos Estados Unidos os 10% mais ricos da população viram sua renda crescer 32% enquanto a renda média dos trabalhadores caiu 1,1% em termos reais sob um crescimento de 18% da economia. No caso do 1% mais rico, o crescimento foi de 203% e, para o segmento representante dos 0,1% mais alto na pirâmide de renda houve um aumento de 425%. Esses números estrondosos mostram a face com que teremos que, cedo ou tarde, lidar.
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