Quando não se pensa está no vazio do sentimento. Para que isso não seja abstrato, o que significa esse vazio? Esse vazio significa a possibilidade de se despender da materialidade que nos prende a determinados tipos de relação humana. Não algo dado a priori, mas um trabalho contínuo. Esse vazio não significa estar fora do fluxo social ou qualquer coisa do tipo. Ao contrário, significa estar apto a responder a sua condição humana sob uma vulnerabilidade absoluta. Obviamente esse processo não é nada abstrato ou ocorre por meio de bonitas palavras ou que possam dar ao sujeito um ar de superioridade inexistente ou que só mascaram o real estado das coisas: um real desinteresse e desengajamento do contato e um cuidado com o outro. Tudo isso passa (para o pesadelo dos pós-modernos) por uma técnica rigorosa. Não está ligada ao “seja o que você realmente é interiormente” dentro “das mudanças contínuas do ser humano rumo a mais mudanças” provavelmente rumo a ligar nenhum. Também não está ligada ao individualismo possessivo que dominantemente perpassa essa conduta. Essa técnica perpassa obviamente uma autotécnica, mas mediada necessariamente pelo Outro da qual, em tempos de interpassividade pós-moderna, temos medo de nos identificar e, dessa forma, mantendo o narcisismo imaginário no topo das prioridades históricas.
Tudo isso só pode ser levado em conta se considerarmos o sujeito transcendental é exatamente esse sujeito negativo vazio, puramente formal, des-substanciado e sem nenhum tipo de agenciamento positivo. Sua autonomia é baseada na mesma lógica do não-Todo de Lacan, expressada por Zizek: sua posição “não é o “sou responsável por tudo”, mas antes o “não há nada pelo qual eu não seja responsável”, cuja contrapartida é o “não sou responsável por Tudo”: exatamente porque não posso ter a visão geral do Todo, não há nada de cuja responsabilidade eu possa me isentar. (E vice-versa, é claro: se sou responsável por tudo, então tem de haver alguma coisa pela qual não posso ser responsável.)”. Fazendo essas considerações sobre o sujeito transcendental, que para a psicanálise vai ser o sujeito do inconsciente, podemos trazer algumas notas sobre a Ética.
A Ética deve ser colocar em três termos da estrutura lacaniana: a ética imaginária, ética simbólica e a ética do Real. O primeiro nível delas, a ética imaginária, é aquela que o sujeito visa atender um Bem Supremo tendo em vista a completude de seu desejo. Como sabemos esse Bem Supremo não existe, assim como a completude do ser e seu desejo. Essa ética sustenta-se apenas baseada no imaginário mesmo e se desestrutura quando tentar ir além de suas prerrogativas. Em termos lacanianos, a impossibilidade de essa ética imaginária ser suportada pelo sujeito barrado é por que não existe o Outro, nem o Outro do Outro e nem a Coisa. Vale à pena enfatizar também que essa ética é predominante hoje. Para sustentarmos isso temos que recorrer à noção de interpassividade de Robert Pfaller interpretada por Zizek: ela ocorre quando sujeito é freneticamente ativo deslocando para outro sua passividade fundamental. Essa não é a busca pós-moderna: mais e mais ação diante da inexistência de o que fazer? Se hoje o que vivemos é a ascensão da interpassividade como relação social dominante onde meu distanciamento dos outros se legitima por jogar ao outro minha inexpressão ativa, é claro que a ética é baseada hoje no nível mais fundamental, no nível imaginário. Talvez seja esse o significado real da sociedade do espetáculo de Guy Debord onde “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediada por imagens”. O espetáculo representa o modo de vida dominante, pois é um reflexo dos modos de produzir e consumir. O mundo se torna uma relação de imagens que se tornam à realidade. Como indica Maria Rita Kehl, “o reconhecimento social depende inteiramente da visibilidade. O principio de diferenciação se da pela imagem. Dependemos do espetáculo para confirmar que existimos e para nos orientar no meio a nossos semelhantes dos quais nos isolamos”. Lembremos como Lacan, que a identificação com a imagem (o espelho) é a identificação mais primária existente: será que é essa pela qual devemos lutar?
Lembremos que entre o imaginário e o simbólico está o Sentido. Esse terreno pode nos dar mais explicações sobre os processos sociais que estão levando a ascensão dessa ética do imaginário em detrimento da ética do simbólico e do Real. Como sabemos, o capital como metabolismo global tem imperativos existenciais que precisa atender para se reproduzir. Um deles é a auto-expansão constante, independente das conseqüências humanas postas em jogo. Para que essa expansão tenha sucesso, podemos dizer, como Zizek, que o capitalismo destotaliza o Sentido, podendo haver um capitalismo com valores hindus, budistas, cristãos etc. O que estamos vendo sob o desenvolvimento histórico do capital é um processo de fragilização da ligação entre o imaginário e o simbólico que, além de possibilitar uma sociedade onde a diferença de dá pela imagem orgânica, destitui de sentido o próprio desenvolvimento histórico. Também é por esse viés que deve ser entendido o processo de fragilização dos laços sociais, o amor líquido de Zigmunt Bauman. Passemos a ética simbólica.
A ética simbólica acontece quando a identificação imaginária começa a ser recortada e quando, conseqüentemente, é possível existir um aprofundamento para além da imagem. Ela surge pela necessidade do sujeito se sujeitar as normas, a Lei. Como escreve Lacan, “ética não é o simples fato de haver obrigações, um laço que encadeia, ordena e constitui a lei da sociedade”. Ela vai além da existência formal das obrigações e se estrutura também pela estrutura de parentesco, consangüinidade, etc. Essa ética simbólica tem sua eficácia devida à qualidade de introdução do significante-mestre no sujeito e é o que possibilita ao sujeito a intromissão de normas, regras, etiqueta, etc. Essa ética é que estabiliza os laços sociais no sentido de possibilitar uma transformação na cadeia significante. O simbólico aqui pode ser entendido como o Outro, como a cultura. Com as conseqüências do que ficou conhecido como pós-modernismo, estamos passando hoje por o que Eric Santner chamou de “crise de investidura” onde a eficácia simbólica começa a se perder fazendo com o sujeito tenha medo de exercer e assumir seu mandato de autoridade simbólica. Essa mudança se mostra pelas mudanças na figura paternal.
Como expressa Zizek, no registro simbólico quando o pai é “repressivo” diz a uma criança “Tem que a casa da sua avó e tem que se portar bem, por mais que isso signifique ser horrível para você – o que você sente não me interessa; é isso que você tem que fazer, e mais nada!”. A figura patenal hoje se conforma mais com a do supereu que diz a criança: “Embora saiba que sua avó gosta de te ver, só deveria ir se for isso que você querer de verdade – de outra forma, é melhor ficar em casa!”. Aqui está a astúcia do supereu: dar uma falsa aparência de livre escolha enquanto existe uma escolha forçada passando de “Tem que ir a casa da sua avó, e o que sente não conta nada” para “Tem que ir a casa da sua avó e, além disso, tem que se sentir encantado de poder fazer isso”: o supereu ordena que adoremos fazer o que temos que fazer. Essa é a desistegração do Nome-do-Pai (O Significante-Mestre) que tem duas conseqüências: as normas proibitivas simbólicas são cada vez mais substituídas por ideais imaginários (de sucesso social, beleza corporal...) e, pela ausência das proibições simbólicas são reforçadas as figuras do supereu. Nesse sentido que pode ser entendido o pós-modernismo. Se enquanto o imperativo moderno era a repressão da satisfação dos desejos, no pós-modernismo a lógica cultural se inverte com a indeferenciação entre economia e cultura: o novo imperativo é o do supereu dizendo expressamente Goza! Goza! Goza!
Pois bem. Estamos sob um paradoxo sócio histórico e lógico. Vamos propor a busca pela ética do Real hoje mesmo que estejamos regredindo a uma ética imaginária. O que parece mais impactante é que estamos regredindo e considerando natural. Deixando essa questão em suspenso, o que seria a ética do Real? A Ética do Real, colocada por Lacan como a ética da psicanálise, é aquela que está fora do terreno da Lei, da ordem. Podemos dizer que a ética do Real é uma ética do impossível. A ética de Wittgenstein está diretamente ligada a seu aforismo “sobre o que não se pode falar, sobre isso deve-se calar” propondo que o silêncio está entre o dito e não-dito. Para Lacan, a função da psicanálise é escutar a verdade, mesmo que ela seja indizível, vinda do Real, levando o sujeito a esquecer o seu dizer. Paradoxalmente, o indizível é o que leva o sujeito a falar, caminho ético em que o desejo está em sua raiz. Obviamente não é um desejo qualquer, mais uma ética de fidelidade ao desejo.
Para Lacan, dentro da cadeia que estrutura o sujeito (imaginário, simbólico e Real), o simbólico se articula com o Real por um furo de um núcleo não-simbolizável. Dessa forma, o simbólico é não totalizável na medida em que todo senso carrego consigo um não-senso indicando a impossibilidade de um saber pleno. Essa dimensão radical do significante recai sob o sob o sujeito como o Real. A ética do Real, portanto, como ética do desejo articula-se com referencia a esse Real onde se localiza a causa do desejo do sujeito, o objeto pequeno a. Esse é o plano ôntico do evasivo estatuto do inconsciente que é ético. Dessa forma, a ética do Real não uma ética por um Bem maior, mas por um Bem-dizer sobre o desejo. Infelizmente, enquanto as mínimas regras sociais simbólicas de convivência são completamente desobedecidas ou não-introjetadas, até mesmo falar é uma complicação. Sem uma escuta por excelência, a fala é tosca. Enquanto se escuta esperando para falar compulsivamente não dando o direito ao outro falar, que desejo pode desabrochar?
Nenhum comentário:
Postar um comentário