Hoje, com a crise estrutural do metabolismo global do capital, a centralidade do trabalho como sujeito revolucionário volta ao cenário da esquerda. Muito do que vimos nos últimos trinta anos foi uma tentativa desesperada da direita (e muito da esquerda, diga-se de passagem) de destituir o trabalho como sujeito revolucionário portando-se a explicações como “a tecnologia está ganhando o lugar do trabalho”, “o trabalhador fabril como Marx idealizará se foi com a sociedade pós-industrial”, “a classe trabalhadora está muito fragmentada e perdeu seu poder de barganha” etc.
Entretanto, o aceitamento generalizado dessas verdades não-verdades pós-modernas não foi à derrocada da classe trabalhadora como sujeito revolucionário, e sim a derrocada do pensamento de esquerda que via seu sujeito se esfacelar diante do fim da história, também aceito hegemonicamente pelo pensamento de esquerda pós-moderno. Aqui cabe muito bem uma intervenção de Fredric Jamenson: hoje é mais fácil pensar a destruição total da Terra por um desequilíbrio natural ou cósmico do que uma mudança radical no capitalismo como modo de organização social. Daqui podemos entender a ascensão do pensamento ecológico como grande fetiche político hoje.
Como já enfatizamos em outros textos desse blog, o que vivemos hoje não é simplesmente uma crise no sistema financeiro devido à posição subjetiva de determinados investidores que cobiçam demais a acumulação fictícia e sim uma crise estrutural da globalização capitalista. Em termos marxistas, é uma crise da realização do valor. Com a expansão global do número de trabalhadores, principalmente com a entrada da China e da Índia no mercado de trabalho mundial, a realização de mais-valia é impossibilitada. Segundo recente entrevista de Francisco de Oliveira para a Agência Carta Maior ele coloca esse processo nos seguintes termos: “isso produziu uma revolução na medida em que dobrou ou triplicou a oferta de mão-de-obra oferecida ao capitalismo, dilatando a fronteira da mais-valia, sem contudo propiciar uma expansão equivalente da capacidade de realizá-la”... porque “o custo de reprodução de mão-de-obra nas sociedades onde se expande a nova fronteira da mais-valia, casos da China e da Índia, principalmente, é muito baixo, ainda que a exploração esteja aliada à tecnologia de ponta. Estamos diante de uma crise clássica de realização do valor, amplificada; uma crise da globalização capitalista. O colapso das hipotecas nos EUA é a manifestação disso. De um lado, a produção na China e na Índia barateou o consumo norte-americano; propiciou também sobras de capital na periferia para financiar o Tesouro dos EUA. A China sozinha tem mais de US$ 1 trilhão aplicado em papéis do governo Bush. De onde saiu esse dinheiro? Certamente não foi geração espontânea. É mais-valia extraída do operário chinês que não se realiza lá porque o custo de reprodução da mão-de-obra local é baixíssimo”.
Vale algumas reflexões: hoje vivemos numa época-limite. O processo de reprodução do capital global entrou em parafuso devido sua impossibilidade material de produzir entrando num processo radical de produção destrutiva, como assinalou Mészáros a mais de 20 anos. O processo de financeirização e sua crise é apenas um epifenômeno desse processo da qual a esquerda pós-moderna considera natural, como o curso normal do capitalismo. Entretanto, aqui o grande desafio histórico, como Marx sempre enfatizou para a infelicidade de muitos radicais hoje, o capitalismo se supera e não se autodestrói. Nesse sentido as divisões teóricas dentro da esquerda são seu fracasso. Enquanto se pensa o capitalismo como limite intransponível, é claro que dentro do campo da esquerda só vão brotar neokeynesianos que buscam por mais regulações dentro do aparelho do Estado e das trocas de capitais a superação da atual crise. Triste verdade essa.
Como também frisa Jameson, ainda não temos hoje o “mapeamento cognitivo” para o entendimento do tempo histórico que estamos vivendo. Para a esquerda isso é mais problemático ainda, pois ela acaba se prendendo na validade dos pensamentos New Age pós-políticos ou na tentativa desesperada em buscar um melhoramento das condições reais do capitalismo hoje.
Infelizmente, essas duas posições de esquerda hoje fazem um pêndulo que perpassam o mesmo centro: a impossibilidade de pensar, dentro dos marcos da crise estrutural do metabolismo global do capital (e seus efeitos claros como a precarização do mundo do trabalho, a destruição ecológica generalizada, a produção destrutiva e seu consumo generalizado, a posição crescente do Estado de Força como mediador das lutas sociais) a superação radical dessa relação social e internacional conhecida como capital. Paremos com a indulgencia da interpassividade e lembremos entre essas duas esquerdas pós-modernas uma lacuna permanece, mesma que seja baseada numa mínima diferença. Essa mínima diferença que permanece é ter como pressuposto que o Real do capital, o Verdadeiro antagonismo social que sobredetermina no sentido althusseriano todos os outros antagonismos é a luta de classes, ele é o “universal concreto” de todo o campo de luta que, vale lembrar, torna-se cada vez mais internacionalizado.
Podemos dizer que essa posição está dentro dos marcos teóricos proporcionados por István Mészáros, Slavoj Zizek, Alain Badiou, Ricardo Antunes, David Harvey, Fredic Jameson, Giorgio Agamben, etc. Podemos dizer que o pressuposto teórico dessa gama poderia ser um clássico dito de Zizek, vindo de Badiou, sobre o que não fazer hoje: é melhor não fazer nada do que participar de atos localizados cuja principal função é fazer o sistema funcionar mais azeitado (atos como dar espaço à miríade de novas subjetividades etc.). Hoje, a ameaça não é a passividade, mas a pseudo-atividade, a ânsia de “ser ativo”, de “participar”, de mascarar a Nulidade do que acontece. Todos intervêm o tempo todo, “fazem alguma coisa”, os acadêmicos participam de “debates” sem sentido e assim por diante, mas a verdadeira dificuldade é dar um passo para trás, é se afastar disso tudo. Os que estão no poder muitas vezes preferem até a participação “crítica”, o diálogo, ao silêncio – só para nos envolver num “diálogo”, para garantir o rompimento da nossa agoureira passividade (Zizek, A visão em paralaxe, p. 437). Em outras palavras, a expectativa angustiada de revolucionar o capitalismo com a exigência desesperada de fazer alguma coisa é falsa.
2 comentários:
Teoria cultural como tamagochi da esquerda pós-moderna! Agora, se pensarmos com Safatle a respeito do cinismo como ideologia contemporânea (o que em si já é um grande passo em direção ao mapeamento cognitivo), como é possível conciliar Safatle e Zizek na medida em que para o esloveno "hoje cremos mais do que nunca. Cremos que algum dia, no passado, as pessoas acreditavam mais do que hoje!". Ou será que o paradoxo entre os autores é apenas aparente?
Peixe, complicada questão. O interessante é que tanto o Safatle quanto o Zizek fazem uma revisão lacaniana a partir do Hegel tentando dar um aporte novo ao kegevismo de Lacan. Rio me parece interessante para conversar.
Postar um comentário