Trabalhamos
com a idéia de que não há socialismo sem revolução, e não há revolução sem
crescimento exponencial da luta de massas no país. Mas como orientar, quando
necessário, as massas para seu destino revolucionário?
Consideramos
massas os conjuntos de trabalhadores e elementos populares que convivem numa
determinada coletividade, normalmente altamente heterogênea em
termos de valores, crenças políticas e comportamentos. Em outras
palavras, não consideramos as massas populares ou trabalhadoras um conjunto
uniforme, mesmo que pertencentes à mesma classe ou segmento social. Massa é
muita gente, é multidão. As massas nada têm a ver com passividade, gente
manipulável e dependente. As massas são vivas, às vezes explosivas, possuidoras
de memória, consciência, projetos e decisões.
Claro que nem sempre as massas são assim. Pode-se
encontrar massas de todo o tipo: ingênua ou consciente, passiva ou ativa, solta
ou coesa, conservadora ou inventiva. Mesmo dentro da massa do povo é possível
encontrar as correntes mais diversificadas: participantes e curiosos, exaltados
e conformados, a turma do “bota pra quebrar” e a turma do “deixa disso”. O que
importa enfatizar é que a massa possui dentro dela um potencial de força, de
esperança, de vida e de criação que é preciso valorizar e desenvolver.
A
dinâmica de aprendizado e desenvolvimento das massas é dispersa e diferenciada,
em virtude de suas próprias condições de trabalho e de vida. Além disso,
disperso e diferenciado é também seu conhecimento sobre a realidade econômica,
social, cultural e política, na qual essas massas estão inseridas. Afora o fato
de possuírem baixa instrução escolar, elas são ainda bombardeadas intensamente
por informações que, em geral, procuram mistificar e embaralhar a realidade.
Nessas
condições, a escola de aprendizado das massas, onde quer que estejam, num chão
de fábrica, numa ocupação urbana, numa vila rural, ou em qualquer outro tipo de
coletividade, só pode ser a prática da luta, seja pela sobrevivência, seja pela
conquista de direitos. É na luta que elas descobrem seus próprios problemas, ou
os aspectos negativos de sua existência. É na luta que elas começam negando
aqueles aspectos negativos, como passo necessário para aprender a apresentar
propostas positivas e ganhar coragem para lutar e vencer.
É na luta de negação dos aspectos negativos de sua
vida, seja a pouca comida do dia-a-dia, o pouco teto para se proteger, a pouca
ou nenhuma terra para plantar, o baixo salário para fazer frente aos custos da
vida etc. etc., que as massas apreendem a realidade. Mesmo que essa apreensão
ainda seja parcial, e um início de busca de soluções, essa é sua dinâmica
"normal" de aprendizado.
Por outro lado, a realidade está em constante
mutação. Ela é histórica e nada tem de linear. Às vezes, produz fatos e
aspectos negativos que fogem daquela "normalidade", rompem com a
dinâmica "normal" e obrigam as massas a negações mais radicais.
Crises econômicas e sociais, guerras, conflitos políticos etc. são aspectos de
grande tensão na realidade. Mudam a vida das massas de forma ainda mais brutal,
obrigando-as a buscar soluções impensáveis em tempos "normais".
Os voluntaristas, em geral, desprezam a dinâmica
"normal" das massas. Acham que podem chegar, qualquer que seja o
momento, e propor soluções próprias para momentos de grande tensão, acreditando
que as massas os seguirão, dependendo apenas de capacidade de convencimento.
Recusam-se a partir do nível real de aprendizado delas, e da realidade
"normal", participando do processo real, às vezes lento, de luta e
descoberta de problemas e soluções. Com isso, frustram-se ao tentar impor uma
dinâmica que nada tem a ver com a realidade, e para a qual as massas ainda não
amadureceram. Culpam aos que procuram adaptar-se à dinâmica "normal",
pela suposta inação das massas. E isolam-se atuando como comentaristas estéreis.
Assim, quando os momentos de grande tensão se apresentam, não possuem elos de
contato com as massas, que lhes permitam influenciar os acontecimentos.
Já os
espontaneístas se subordinam totalmente à dinâmica "normal" das
massas. Não vislumbram a possibilidade de saltos, nas descobertas das massas,
quanto aos aspectos negativos da realidade, nem na criação de negações que
correspondam a essas novas descobertas. Não se preparam para as grandes tensões
e, quando estas se apresentam, são atropelados pelos acontecimentos. É preciso
lembrar, portanto, que ninguém é capaz de mobilizar
as massas para algo além dos que elas pretendam no momento e que um dos
aspectos importantes da participação de líderes e militantes dos partidos
populares nesse aprendizado "normal" consiste, justamente, em poderem
medir essa tendência e contribuir de forma ativa na organização e na
mobilização propriamente dita.
Quando
tais líderes e militantes estão presentes, e são ativos, há uma propensão de
assumirem a direção das mobilizações. Isto dá a impressão de que se deveu a
eles o fato de as massas haverem se mobilizado. No entanto, eles só assumiram a
direção porque estavam presentes e porque captaram as razões e os limites da
luta. Não é por acaso que, mesmo estando presentes, há lideres e militantes que
não conseguem ser reconhecidos como dirigentes. Tentaram impor objetivos e
formas de luta mais avançados, ou mais atrasados, por incapacidade de captar as
razões e limites a que as massas haviam chegado em seu aprendizado
"normal". Os
líderes e militantes que possuem consciência das contradições da realidade,
como a luta entre as classes e a luta pelo poder, têm importância tanto na
organização e decisão, quanto na avaliação da luta, de modo a elevar o
aprendizado e a mobilização. Mas, se não levarem em conta o nível real de
aprendizado das massas, certamente cometerão erros que os distanciarão dessas
massas.
E o que acontece quando as massas se
juntam para alguma manifestação ou ação coletiva?
Podemos
identificar ao menos três processos: 1) fusão numa identidade coletiva: a
nação, a classe, o partido, a religião, a religião, o time, etc. Cria-se uma
personalidade coletiva ligada a uma Causa; 2) cria-se entre as pessoas uma
comunicação de sentimentos, há emoção, intensidade de experiência; 3) há uma
tendência para percepções e escolhas na base do tudo ou nada, do isto ou
aquilo, do sim ou não. A massa é em geral plebiscitária. Mesmo na sua
desconfiança, a massa tende ao oito-ou-oitenta.
Para aqueles
que se envolvem com as massas, costuma se apostar nisto: as massas são quem
devem se tornar donas de seu destino. Nosso trabalho supõe a convicção que as
massas tem cabeça (consciência, liberdade) e coração (sonhos, projetos,
vontade). A aposta de quem trabalha com as massas é que estas podem deixar de
ser objeto para ser cada vez mais sujeito, que elas são capazes de aumentar a
consciência, a autonomia e a capacidade de iniciativa. E essa é sua vocação
profunda, muito clara na perspectiva bíblica – vós que outrora não éreis povo,
agora sois o Povo de Deus (1Pd 2, 10). Se não se acreditar nisso, não há menor
sentido em trabalhar com a massa do povo. Aqueles que não acreditam nisso e se
entregam ao ceticismo são aqueles que entregam o povo nas mãos dos
manipuladores de toda espécie. Sabemos que sem a participação das massas é
impossível transformar a sociedade de maneira profunda e em favor do próprio
povo. A mensagem é clara: a sociedade não se muda sem mexer com as massas.
É preciso distinguir também o trabalho
de comunidade (de base, em grupos) e o trabalho de massa. No primeiro a
reflexão é mais desenvolvida, enquanto que na massa é a emoção que mais conta.
Em suma, na comunidade a metodologia é de conscientização, na massa é a
sensibilização. Grupo e massa devem estar articulados, um ajudado o outro. Os
grupos ativam dinamismos internos à própria massa. Sem a organização em grupos,
a massa permanece como que invertebrada e exposta à manipulação dos grandes. Os
grupos devem estar na massa como peixes na água.
É
importante se dar conta de que trabalhar com a massa não é só entrar na
direção, estar à frente, pegar no microfone. Também é trabalhar em meio ao
povo, dinamizando sua participação, suscitando a tomada da palavra, despertando
a intervenção.
O que falar as massas? A regra geral é
falar sobretudo das coisas essenciais, das questões vitais. A análise detalhada
das coisas e doutrinas se faz em outro momento, não frente às massas. As massas
entendem a linguagem do coração, toca-se facilmente por tudo que é
“sensacional” e “impressionante”. Toda linguagem de massa deve buscar inflamar,
empolgar. Só as massas entusiasmadas participam, se movem e mudam.
Para as massas, o coração é que manda.
Mas a linguagem do coração é a imagem. Quando bem escolhida, a imagem possui um
poder mágico: ela encanta, fascina, seduz. Quando falamos “imagens” que tocam
as massas, estamos nos referindo à: 1) símbolos que evocam valores profundos
como a cruz, bandeiras, etc; 2) analogias e comparações como parábolas. Aí
funciona a lógica da associação, e não a do encadeamento teórico; 3) exemplos
com ilustrações de casos concretos e descrições do cotidiano; 4) gestos que
comovem as massas, como abraços, beijar o chão. Para as massas, as palavras
funcionam quando ligadas à imagem. Aí a linguagem se torna eficaz e
mobilizadora.
Outra regra de ouro na linguagem com as
massas é falar das coisas de modo simples. Fugir do complicado e difícil.
Deixar de lado os detalhes. Isso não significa repetir banalidades. Estamos
falando de simplicidade como o tratamento das coisas essenciais, vitais,
nucleares. Quando possível deve-se usar a língua do povo, suas palavras,
expressões e referências. Só assim a linguagem passa e cria uma sintonia
inconsciente com a massa. A boa simplificação consiste em encontrar o núcleo
essencial e dizê-lo numa fórmula simples e eficaz. É fruto de um processo de
concentração no essencial, na medida do possível buscando fazer referências à
própria experiência concreta das massas.
Estas são algumas coisas que temos que
ter em mente quando trabalhamos com as massas. Isso é crucial pois a principal
tarefa de qualquer revolucionário hoje é trabalhar
na base das classes populares da sociedade brasileira, vivenciando e
contribuindo para sistematizar suas pequenas experiências de luta, elevando sua
consciência de classe. Esse processo não é imediato. É uma missão estratégica,
de longo prazo, orientando essas classes no momento que decidirem lutar.
As classes populares no Brasil ainda necessitam de água,
luz, esgoto, moradia, educação, saúde e infra-estrutura e estão colocando-se em
luta para socializar a riqueza. A combinação
e unidade entre esses sujeitos, demandas e ações tem seu próprio ritmo e
mobilização. Nosso dever é saber transformar suas reivindicações em ações
massivas, independentes do governo e seus correligionários. Isso só surgirá,
entretanto, se retomarmos a velha lição de organização junto à base popular, em
seu dia a dia, em lutas diárias e miúdas. Não existem atalhos cujas cúpulas
poderiam encaminhar para avançar na luta pelo socialismo. A única forma de os
socialistas ganharem espaço na atual situação na luta de classes é dirigindo a
luta imediata, cotidiana, por melhores condições de vida da classe
trabalhadora. Pessoas insensíveis a estas lutas nunca serão aceitos para
dirigir uma luta maior, por outra sociedade. E é nesta luta que os
trabalhadores ganham consciência e desenvolvem suas habilidades organizativas e
políticas. Se não for por este meio, quando se tornar mais claro os
delineamentos da luta de classes e emergir uma generalização da luta de massas,
restará apenas o papel dos espectadores debatendo traições em reuniões de
“direção” para esconder seu isolamento elitista.
É evidente que não haverá revolução no Brasil
sem que, em primeiro lugar, haja uma retomada da
luta de massas. Sem luta de massas e sem fortes organizações da classe,
não apenas torna-se pouco provável que
ocorra uma crise de dominação como torna-se praticamente impossível transformar
esta crise de dominação numa situação revolucionária. É a
generalização da luta de massas que cria as condições para a disputa do poder. Somente as grandes mobilizações, o estímulo a todas as formas
de luta de massa por necessidades imediatas e o trabalho de base podem alterar
nossa situação diante da luta de classes e apontar para a emancipação popular. Para
liquidar os inimigos do povo, precisamos retificar o trabalho com as massas.
Uma vez que o estilo de trabalho seja totalmente correto, todo o povo aprenderá
com nosso exemplo. É um trabalho árduo, mas que valerá a pena.
2 comentários:
E isso ai meu amigo suas análises estão a cada dia melhores. Os dois últimos textos são de uma visão e sensibilidade impar. Continue assim, que suas análises estão se tornado uma grande fonte de reflexão.
Obs: pô, quem diria, citação até da bíblia.
Quanta bobagem...
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