domingo, 22 de abril de 2012

Dilma e o pós-neoliberalismo




Na década de 1990, os países latino-americanos, em sua grande maioria, adotaram práticas de cunho neoliberal em seus sistemas sócio-econômico, político e ideológico. Além do Chile, Bolívia, México, Argentina e Venezuela, países pioneiros na implantação do regime, o neoliberalismo surge no Brasil em momento crítico à política nacional-desenvolvimentista. Após a crise da dívida, diversas tentativas de estabilização inflacionária, fracassos dos planos econômicos, o projeto neoliberal vai ganhando espaço político no país.
No Brasil, o neoliberalismo nasce associado à abertura econômica e à democratização, culminando com a derrota do protecionismo e com a diminuição dos direitos trabalhistas provenientes do populismo. As orientações neoliberais foram acolhidas por amplos setores da sociedade brasileira, de governantes e empresários a lideranças do movimento popular e sindical e intelectuais. Embora iniciada desde a década de 1980, as medidas neoliberais tiveram no Brasil sua maior ofensiva durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.
Com o esgotamento deste projeto anti-democrático e anti-popular, veio a eleição de Lula para Presidente do Brasil. Sem uma estratégia pré-definida, Lula buscou avançar pelas linhas de menor resistência. Durante seus mandados (2003 – 2010), o governo Lula manteve-se na defensiva, muito acuado pela oposição que perdia suas bases sociais, mas que era amplificada pela mídia hegemônica.
Como principais tarefas domésticas, centrou seu governo na utilização das forças capitalistas predominantes no país para desenvolver a indústria, a agricultura e os serviços, reconstruir a infra-estrutura de energia, transportes e comunicações e a infra-estrutura urbana, estimular a criação de novos empregos, criar mecanismos de redistribuição de renda e de democratização da propriedade agrária além de dar maior musculatura ao mercado interno brasileiro. Para isso a estratégia governamental é de estimular o desenvolvimento capitalista, ao mesmo tempo em que aproveita essa aliança com setores da burguesia nacional e internacional para adotar mecanismos de “democratização do capital”, multiplicação das formas de propriedade e produção (estatais, públicas, solidárias, etc.) e instrumentos mais efetivos de redistribuição constante da renda e de elevação do poder de compra e da educação das camadas mais pobres da população. 
É possível afirmar que ainda não ocorreu uma reversão completa do caminho trilhado pelos governos neoliberais, por mais que algumas mudanças importantes tenham ocorrido. Passamos da estagnação para o crescimento econômico. Saímos da privatização das empresas públicas para a consolidação das empresas estatais, que sobraram do processo de privatização, e para as parcerias público-privadas, com concessões ao setor privado. O desmantelamento do planejamento estatal foi deixado de lado e há um processo de retomada do planejamento macroeconômico e macro-social.
                Mas o que dizer agora do governo Dilma em relação ao desenvolvimento deste projeto pós-neoliberal? Isso considerando o momento da conjuntura internacional de crise generalizada do neoliberalismo, desmonte da oposição política da direita as orientações do governo e uma parcial defensiva da mídia hegemônica. Sem contar a pequena margem de manobra dos partidos aliados para pressionar o governo e desgaste no Legislativo. Qual projeto pode unificar os diversos setores contraditórios que a levaram ao governo?
Podemos enumerar alguns pontos prioritários que requerem medidas adequadas neste programa pós-neoliberal, que apontam planos para a industrialização, superação de seus gargalos na produção, distribuição, consumo interno, logística, infra-estrutura etc., além de identificar os setores considerados estrategicamente “especiais” para o desenvolvimento do Brasil. Para isso é necessário passar cada vez mais da defensiva para a ofensiva política no tratamento das relações com o sistema
financeiro. Nesse plano, aponta-se a maior participação das empresas estatais, em especial nos setores estratégicos, estímulos para as micros e pequenas empresas privadas, urbanas e rurais, inclusive com ampliação do comércio exterior. O que não significa abandonar a política de reforço das empresas privadas, para que adensem as cadeias produtivas industriais e agrícolas, e desenvolvam mais rapidamente as forças produtivas do país, embora seja necessária uma ação permanente do Estado para evitar que elas tornem o mercado mais caótico do que normalmente é.

1)                 Adotar políticas macroeconômicas coerentes, que mantenham a inflação baixa, utilizem os juros para incentivar os investimentos e tratem do câmbio como instrumento de política de desenvolvimento industrial. A política de crescimento necessita se transformar em política de desenvolvimento industrial, científico e tecnológico junto com políticas de apoio à existência de formas econômicas capitalistas, micro e pequenas empresas, além do reforço da propriedade estatal, pública e solidária. Como salientou Wladimir Pomar, a decisão de rebaixar os juros cobrados por essas empresas, em especial o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, representou o primeiro tiro direto no pior inimigo do desenvolvimento econômico e social brasileiro. Até que ponto o governo está preparado para sustentar a disputa com esse monstrengo, não se sabe ainda. A reação inicial da fera, embora ainda soft, foi de uma desfaçatez total, exigindo compensações do poder público, como se fosse um miserável à míngua.

2)                 Concentração dos investimentos estatais em áreas estratégicas e elevação da taxa nacional de investimentos para 25% a 30% do PIB, levando em conta a instalação de plantas de fabricação dos setores produtivos estratégicos que possam aplicar às terras-raras brasileiras em processos e produtos de cadeias produtivas do mais alto valor agregado como na aeronáutica, automobilística, carros elétricos, defesa, softwares, tablets, além do desenvolvimento de investimentos em áreas relacionadas a biogenética; biotecnologia; nanotecnologia; biomassa; energias renováveis; indústria aeroespacial (um projeto de satélite para internet comum sul-americano?); o setor de base química, envolvendo a indústria farmacêutica, de vacinas, hemoderivados e reagentes; o setor de base mecânica e eletrônica, envolvendo as indústrias de equipamentos médico-hospitalares e de materiais médicos; o setor de serviços, envolvendo de hospitalar, laboratorial e serviços de diagnóstico e tratamento; serviços de telecomunicações e infra-estrutura digital a partir do desenvolvimento da banda larga (comunicações, ópticas, wireless e comunicações por rádio e satélite) com ou sem fio para abrir caminho para provedores de serviços multimídia como áudio e vídeo, teleconferência, jogos interativos e telefonia de voz sobre IP (VoIP), sistemas avançados de acesso à banda larga como o FTTH e VDSL (very high data rate digital subscriber loop), TV de alta definição (HDTV) e vídeo sob demanda (VoD). 

3)         Políticas de construção de uma infra-estrutura moderna, sobretudo de malha ferroviária que cubra o território nacional, montagem dos meios para estender a navegação fluvial e de cabotagem e edificação de portos, hidrelétricas, sistemas de transportes integrados etc. A expansão dos investimentos em infra-estrutura está ligada ao desenvolvimento industrial, seja como fonte de demanda importante para sistemas industriais de insumos básicos e bens de capital seriados e sob encomenda ou enquanto um fator de competitividade que permite a redução de custos de produção, logística, transporte, distribuição e comercialização, além de ter um forte impacto sobre o desenvolvimento regional, integrando e promovendo novos mercados. O vetor de demanda doméstica pode ser também uma alavanca poderosa para promover a reestruturação competitiva de setores e atividades industriais, tanto através do reforço das economias de escala empresariais quanto da intensificação do processo de inovação e difusão tecnológica. Para isso é necessário aprofundar medidas de distribuição de renda, cujos ramos principais são a poupança para a reprodução ampliada do processo produtivo, os salários, a educação, a saúde e as demais demandas sociais.

4)         Articular política de exportação e importação. No plano externo, ao se consolidar como um dos maiores exportadores globais de alimentos, fornecimento de energia e de commodities minerais e metálicas, o Brasil deverá aprofundar sua integração ao sistema de produção e de consumo asiático com uma ampla cadeia logística de serviços, fornecimento, armazenagem, distribuição e transporte. É necessário elaborar políticas que guiem os investimentos estrangeiros, impulsionando o adensamento das cadeias produtivas industriais e apenas aceitando os empreendimentos com novas ou altas tecnologias, associando-se em joint venture com empresas estatais ou cooperativas. Também é crucial uma política de importações que facilite a entrada de mercadorias que contribuam ao desenvolvimento industrial e científico. Sem regras claras para investimentos e importações que busquem elevar as cadeias produtivas nacionais, as empresas brasileiras não conseguirão disputar os caminhos competitivos do mercado mundial.

É crucial elevar o adensamento das cadeias produtivas e da infra-estrutura com maior participação das empresas nacionais nos setores monopolizados por empresas estrangeiras e investimentos na construção de parques industriais de alta tecnologia, elevar os investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento para o patamar de 2% do PIB como via da política industrial, transformando a inovação em efetiva alavanca do desenvolvimento nacional. Para que isso ocorra é necessário incrementar os investimentos estratégicos, focando nas mudanças tecnológicas de produtos e processos, nas mudanças no padrão de concorrência da indústria e em investimentos focados em preencher novos mercados diante das tendências de relocalização industrial e de gestão da cadeia de valor em nível global, seja no espaço brasileiro, com a transferência de pólos de produção de outros países para o Brasil, seja no movimento de internacionalização das grandes, médias e pequenas empresas brasileiras.

5)         Uma estratégia nacional de internacionalização das empresas nacionais, com intensa participação de agências estatais e do governo de forma direta e indireta. Estas empresas estarão alinhadas com certas prioridades do país. Atividades da Apex-Brasil como os centros de distribuição em Dubai, Frankfurt, Lisboa, Miami, Varsóvia são importantes e devem se expandir para outros locais na África, Ásia e América Latina. Mais escritórios de cooperação internacional devem ser criados em diferentes cidades de países com os quais o Brasil possui uma relação estratégica. Isso junto com assessoria para ajudar exportadores a colocarem seus produtos no mercado internacional, por terceirização ou incorporação técnica do comércio exterior, com inteligência comercial para dividir informações relevantes para tomada de decisões de investimentos em mercados específicos. Deve-se também ampliar as secretarias especializadas em comércio exterior em nível regional, estadual e municipal. O BNDES também desempenha um papel fundamental no financiamento de operações estrangeiras das empresas nacionais, devendo se ampliar para o médio capital, criação de bases no exterior e financiamento de plantas industriais que utilizem insumos, partes, peças ou componentes importados do Brasil.

A internacionalização deve ser considerada um instrumento essencial para a sobrevivência das firmas no próprio mercado doméstico e não apenas como a busca de novos mercados no exterior. A principal motivação para a internacionalização deve ser o aumento de competitividade. Os benefícios não se restringem apenas às empresas: a necessidade de políticas de apoio deliberado à internacionalização se justifica pelos ganhos gerados para o país como um todo a partir do aumento das exportações, geração de divisas e acesso a novas tecnologias. É por isso que as ações pontuais devem se consolidar numa política de internacionalização de empresas, envolvendo o BNDES, CADE, SDE, Apex-Brasil, o Ministério das Relações Exteriores, Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e até mesmo Petrobrás e Eletrobrás. Nessa linha, também é crucial fortalecer o Fundo Soberano do Brasil e utilizá-lo para comprar empresas estrangeiras (total ou parcialmente) e numa atuação contra a volatilidade cambial.

6)         Expansão de corredores para melhorar a logística da exportação de commodities e utilizar o excedente comercial para políticas industriais, inclusive para o adensamento industrial de matérias-primas e a agroindustrialização dos assentamentos da reforma agrária, incentivando um importante instrumento de expansão de propriedades coletivas, além de frear o aumento da inflação, puxado principalmente pelo aumento do preço dos serviços e dos alimentos.

7)         Um novo modelo agrícola contra as pressões inflacionárias. Conforme o Dieese, durante os últimos anos, a alimentação fora do domicílio registrou expressivo aumento de preços devido a dois fatores: 1) aumento do emprego, da massa de salários e conseqüente elevação na demanda por refeições fora de casa; 2) aumento no preço dos alimentos, fato que também provocou aumento no custo da alimentação no domicílio. A alimentação no domicílio registrou grande aumento de preços devido, basicamente, ao aumento no preço dos alimentos e, de forma colateral, à elevação do preço do gás de botijão, derivado do petróleo. Uma política industrial necessita desenvolver um novo modelo agrícola baseado na pequena e na média propriedade, na prioridade à produção de alimentos para o mercado interno, na criação de uma nova matriz produtiva no campo.
Qualquer dado confiável aponta que a agricultura familiar é responsável pela maioria da produção nacional voltada a alimentar a população e que, ao mesmo tempo, são os alimentos que representam o principal componente que impulsiona a inflação. O governo Dilma está procurando se antecipar em relação às eventuais altas nos alimentos durante o próximo período, dando um reforço no caixa da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) para que em 2012 amplie fortemente as compras diretas e as aquisições da nova safra de grãos e cereais. Seu objetivo é adquirir alimentos diretamente do produtor a preços de mercado, garantindo boa remuneração no auge da colheita, e formar estoques estratégicos maiores para enfrentar uma eventual elevação das cotações ao longo da entressafra.
Para o próximo período estas medidas antiinflacionárias devem ser acompanhadas por outra frente crucial: uma política de industrialização dos assentamentos de Reforma Agrária, que impulsionaria o aumento da produção para o mercado interno. Para isso também é necessário uma política de barrar a expansão da compra de terras pelo agronegócio, assentar milhares de acampados e sem-terra, estimular o crédito e o financiamento para dar início à produção de alimentos, retirar taxações pelo uso da terra e comercialização de produtos, levar estrutura básica e infra-estrutura a projetos dos assentamentos para dar acesso à saúde, escola, e construir estradas que facilitem o escoamento da produção, logística rural, assessoria técnica para desenvolvimento de pesquisas de sementes e instituir todas as terras devolutas do país como território de reforma agrária. Para cumprir esse objetivo a EMPRAPA deve continuar uma empresa pública e cada vez mais voltada à agricultura familiar.

Outros pontos são cruciais – como a reforma nas comunicação e uma política de deflação generalizada do mercado imobiliário -, mas essas linhas gerais de políticas macroeconômicas podem desenvolver a capacidade de remediar as distorções do mercado pelo poder dos meios de produção públicos e estatais. Para isso eles devem estar à prova de constantes reformas modernizadoras, para ganharem eficiência econômica e servir como instrumentos chaves para um planejamento macroeconômico capaz de dirigir e regular o mercado. É a partir daí que podemos buscar elementos mínimos para avançar no projeto democrático-popular pós-neoliberal com características brasileiras.

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