Não existem dúvidas que o século XX foi profundamente
marcado pelo socialismo da experiência soviética, a
primeira vez na história mundial de uma sociedade complexa, com as forças
produtivas modernas, em que houve um projeto de planejamento centralizado
total. Quando caiu o muro de Berlim muitos falaram da “crise do socialismo
real”, como se a experiência da URSS fosse a única e melhor possibilidade de
construção do socialismo e que, assim, as experiências de China, Vietnam e Cuba
fossem seguir o mesmo caminho de restauração do capitalismo e que qualquer
tentativa de construção de uma sociedade para além do capital estaria fadada ao
fracasso. Como o socialismo real era eterno enquanto durou, com sua queda a
antiga referencia do “campo socialista” que ordenava a visão de mundo de todos
desapareceu. Até o termo “capitalismo” passou a ser substituído por
simplesmente “economia” numa naturalização de sua historicidade nunca vista. A
tese de Francis Fukuyama que a história teria chegado ao seu clímax com o
capitalismo democrático foi elevada ao inconsciente cultural de nossa época.
Ser “realista” passou a ser viver sob o signo do “fim da história” com a
democracia-liberal como horizonte ontológico último da humanidade. Tudo se
passa como que fossemos obrigados a aceitar a hegemonia do capitalismo e lutar
por “mudanças” no limites impostos pelas regras democráticas, sem nunca
postular superar o capital e fenecer
o Estado pela socialização dos meios de produção, do poder político, do
conhecimento e do planejamento social.
Com a exacerbação da crise capitalista e de novos contornos
geopolíticos nos últimos anos podemos afirmar que a complacência do período
pós-Guerra Fria está finalmente acabando e que estamos vivendo um retorno das
discussões sobre as alternativas ao capitalismo. Como sair da crise e iniciar
um processo de transição a uma sociedade radicalmente distinta? A idéia de um
“capitalismo mais humano” com preocupações ecológicas e sociais demonstra a
cada dia ser a maior utopia irrealizável. Encontrar uma alternativa viável e
desejável ao capitalismo está deixando de ser algo utópico para se converter
numa urgência histórica, a “crise terminal” do socialismo está passando a ser
uma crise momentânea que demanda novas elaborações e práticas políticas. Em
meio à confusão deste processo, o presidente bolivariano Hugo Chavez tentou
resolver este enigma com o desafio de construir o “Socialismo do Século XXI”. Quando se fala neste socialismo do século XXI, qual
socialismo é proposto? A resposta de estar simplesmente no futuro, ou uma mera
Utopia, não serve para responder esta pergunta. Temos que lidar com o desafio
de reelaborar o projeto do socialismo que durante décadas foi insultado e
ridicularizado, mas que agora volta para a agenda política.
Ainda bem que apesar da idéia relativa ao
“fim da história” e a “crise do socialismo real” podemos lutar por um
socialismo renovado a partir do amadurecimento da reflexão sobre as condições
de existência das experiências socialistas do passado e do presente. Em
primeiro lugar, quando se fala de socialismo do século XXI é necessário diferenciá-lo
do socialismo do século XX.
Os
socialistas do século XX se dividiram (e ainda se dividem) entre aqueles que
defendem que um “socialismo de mercado” e os que defendem o “socialismo estatal
centralmente planejado”. Esta dualidade é uma das principais marcas do
socialismo do século XX. O problema das relações entre a planificação
socialista e o mercado tem início com a revolução russa em 1917. Essa
problemática se desenvolve com a NEP (Nova Política Econômica) no início dos
anos vinte do século passado e continua até os dias atuais.
Nos marcos das diversas pressões existentes na república
soviética, a socialização da economia foi identificada com a total estatização
das atividades econômicas. Depois do fim da guerra civil, Lênin, em março de
1921, vislumbra o abandono temporário da estatização da economia e visualiza os
princípios da NEP para substituir o “comunismo de guerra”, que orientou a
política econômica na União Soviética desde a Revolução Russa em 1917. Com a
proposta da NEP, Lênin já destacava a situação contraditória de que um Estado
Socialista se via obrigado a se apoiar em relações de produção capitalistas e,
particularmente, no capitalismo de Estado para permitir a sobrevivência da
revolução. Graças a esta nova política os camponeses podiam vender seus
produtos ao mercado e não somente ao Estado com a iniciativa privada sendo
tolerada em pequenas escalas. O que levou Lênin a dizer que “a NEP era um
capitalismo de Estado, com conteúdo socialista, sob o controle dos
trabalhadores”. A NEP permitiu um crescimento limitado do comércio e das
concessões estrangeiras ao lado dos setores econômicos nacionalizados e
controlados pelo Estado. Também estimulou o crescimento de uma classe de
camponeses ricos e de uma burguesia comercial. Para os bolcheviques, tratava-se
de um encorajamento das tendências capitalistas, de um recuo estratégico em
virtude do atraso da revolução européia e das condições calamitosas de
construção do socialismo na Rússia. Dessa forma Lênin procurava desenvolver na
Rússia as forças produtivas com o crescimento de novas classes hostis a
construção socialista. Ao promover mecanismos de mercado, propriedade privada,
competição e integração na economia capitalista externa, a NEP evidenciou os
problemas inerentes da construção do socialismo numa região altamente atrasada,
em guerra e com pouca capacidade tecnológica. O governo bolchevique permitiu
também certo espaço aos capitais privados na indústria e no comércio,
permanecendo o Estado com a propriedade das grandes empresas industriais, dos
transportes, dos bancos, dos meios de comunicação e com o monopólio do comércio
exterior. Entre 1922 e 1924 o rublo foi sendo restaurado e um sistema monetário
foi minimamente estruturado para melhorar a racionalização da economia e o
ajuste dos preços. Muitos foram aqueles descontentes com o recuo da NEP
apontando que a revolução teria traído seus princípios, o que inclusive
impulsionou aquilo que depois ficou chamado como “stalinismo” que, de forma
esquerdista, finalizou a NEP e iniciou os planos qüinqüenais, os processo de
coletivização de terras, etc. Para muitos a NEP durou tão pouco que não pode
ser considerada um paradigma na construção do socialismo.
Algumas décadas depois na
China revolucionária, depois de anos de tentativas de elevar as forças
produtivas e transformar as relações de produção e de poder (culminando na
Revolução Cultural), começou a se desenvolver uma experiência que mescla
diversas formas de propriedade denominada de “Socialismo de Mercado”. Optou-se
por seguir a hegemonia modernizadora da propriedade estatal e cooperativa sem
excluir elementos privados e mistos para a dinamização da economia e o aumento
da produtividade e comercialização dos produtores do campo e das cidades. Longe
de se romper a aliança com os camponeses como fizera o stalinismo, os
comunistas chineses ampliaram os laços que deram sustentação ao pacto de poder
de 1949 dando mais estímulos e autonomia para a produção no campo
desdobrando-se nas empresas rurais de caráter territorial e coletivo - o
“grande segredo” da experiência chinesa contemporânea, responsável por mais de
um terço dos produtos exportados pelo país cumprindo um papel crucial na
absorção de excedentes populacionais vindo do campo e desenvolvendo indústrias
com alta tecnologia. Como argumenta Wladimir Pomar, a China aproveitou as
dificuldades de reestruturação do capitalismo desenvolvido, que não mais
conseguia manter as altas taxas médias de lucro, ou margens de rentabilidade,
necessárias para sua reprodução ampliada em seus países de origem. O que o
levou a criar novas corporações empresariais, de cadeias produtivas complexas,
com indústria, finanças, comércio e logística, a utilizar amplamente a
especulação financeira e o trabalho escravo, e a realizar uma profunda
fragmentação ou segmentação da produção industrial, transferindo para países da
periferia as plantas industriais dos países desenvolvidos. Os chineses
resolveram aproveitar, de forma calculada, essas necessidades das grandes
corporações e do capitalismo em geral. Abriram sua economia, apresentando como
atração o baixo custo relativo de sua mão-de-obra, a boa infra-estrutura de
energia, transportes e comunicação, a pouca burocracia nos processos de
investimentos e a estabilidade social e política. Mas o fizeram de modo
paulatino, condicionando os investimentos externos à associação com empresas
chinesas, à transferência de novas e altas tecnologias e à participação no
comércio internacional (POMAR, 2009, p. 193).
Estas experiências, muitas
vezes negligenciadas pela esquerda, demonstram que a estatização total da
economia não é a única alternativa para a implementação dos primeiros estágios
do socialismo. Para além das antigas antinomias, a verdadeira pergunta hoje é:
o socialismo planejado de mercado é uma alternativa ao capitalismo neoliberal
(e pós-neoliberal)? Este forma de socialismo se articula com um mercado regulado pelo planejamento das forças
socialistas e será dividido
em diversas formas de propriedade diferenciadas entre si pela relação de posse
e comando das forças produtivas. Como salienta Atílio Borón,
trata-se de um socialismo superador da anacrônica antinomia
“planejamento centralidade ou mercado incontrolado” e que, diferentemente
disso, abra espaços para a imaginação criadora dos povos na busca de novos
dispositivos de controle popular dos processos econômicos, dotados da
flexibilidade suficiente para responder com rapidez à corrente de inovações que
dia a dia modifica a fisionomia do capitalismo contemporâneo. Um socialismo que
potencialize a descentralização e a autonomia das empresas e unidades
produtivas e, ao mesmo tempo, faça possível a efetiva coordenação das grandes
orientações da política econômica. Um socialismo que promova diversas formas de
propriedade social, desde empresas cooperativas até empresas estatais e associações
destas com capitais privados, passando por um amplo leque de formas
intermediárias nas quais trabalhadores, consumidores e técnicos estatais se
combinem de diversas formas para engendrar novas relações de propriedade
sujeitas ao controle popular. Um dos problemas mais sérios que teve a
experiência soviética, e todas as que nela se inspiraram, foi confundir
propriedade pública com propriedade estatal. Um dos desafios maiores do
socialismo do século XXI será demonstrar que existem formas alternativas de
controle público da economia, distintas do passado (2010, p. 37- 38).
Como
se vê, existe muita má fé quando se debate o socialismo de mercado. Quando não
se defende implicitamente a estatização total, muitas vezes se busca demonstrar
que o mercado é incompatível com o socialismo ou que a existência de um
socialismo com mercado estaria negligenciando a dimensão do planejamento
social. Nada disso ocorreu tanto na experiência da NEP como no Socialismo de
Mercado aplicado na China. Para lidar com o mercado se impõe um nível de
planejamento mais flexível, mas que delimita progressivamente o comportamento
do setor privado na economia pela modernização da propriedade estatal e
cooperativa. O Socialismo de Mercado, assim, não é para o mercado manter suas relações caóticas e anárquicas, mas para
utilizar os mecanismos dos mercados para uma melhor alocação dos recursos e
estimular a competição entre os capitais visando alcançar os limites do capitalismo
junto com uma transição socialista que prevê o controle da reprodução social
pelos produtores associados de diversas formas que se sustentam reciprocamente.
O objetivo é uma transição em que o capital se oponha a este processo com uma
posição historicamente retrógrada e insustentável devido ao dinamismo das propriedades
públicas, estatais e não estatais, com um sistema orgânico entre produção e
distribuição, descentralização do poder político e radical transcendência da divisão social hierárquica do trabalho. Afinal, como escreve Borón,
Porque não pensar num ordenamento econômico mais flexível e
diferenciado, no qual a propriedade estatal dos recursos estratégicos e dos
principais meios de produção – questão esta não negociável – conviva com outras
formas de propriedade pública não estatal, ou com empresas mistas nas quais
alguns setores do capital privado se associem com corporações públicas ou
estatais, ou com companhias controladas por seus funcionários em associação com
os consumidores, ou com cooperativas ou formas de “propriedade social” de
diverso tipo – como as que estão se promovendo na Venezuela bolivariana – fora
da lógica da acumulação capitalista? Obviamente, não se trata de um experimento
simples (idem, p. 109).
Lembremos
também das teses controversas de Alec Nove. Para ele existiriam cinco formas de
propriedade no “socialismo de mercado”: 1) Empresas Centralizadas de posse e
comando do Estado. Concentradas em setores estratégicos, serão responsáveis por
setores onde o custo de descentralização seja muito alto (tanto em termos
econômicos, incluindo aí custos de externalidades, possibilidade de informação
e ganhos de escala, como por questões sociais de distribuição e ineficiência).
Exemplos para esse tipo de empresa seria o de produção de energia, crédito, a
indústria siderúrgica, construção civil ou petroquímica; 2) Empresas
socializadas. São empresas de posse do Estado, mas, com sua gestão partilhada
com os trabalhadores. É uma proposta de se criar uma empresa mista onde o dono,
Estado, permite que seus trabalhadores exerçam a autogestão; 3) Cooperativas.
Sua característica principal seria ter tanto gestão como a posse dos próprios
trabalhadores. Sua administração deve ser formada por uma comissão de
trabalhadores escolhidos por eleição ou plenárias. Essa condição seria
princípio de legitimidade das cooperativas. Elas também serviriam, do mesmo
modo que as empresas socializadas, para serem formadas a partir de empresas
privadas individuais que aumentassem em muito os seus lucros; 4) Empresas será
o das empresas privadas não cooperativas e nem estatais. Sem ser considerado um
mal social, a empresa privada deverá apenas ter limites quanto ao seu tamanho,
poder e lucros; 5) Empreendimento produtivo de iniciativa individual. Nesta
estão incluídos do barbeiro ao dentista, do pipoqueiro ao advogado que não
querem fazer parte de nenhuma organização coletiva. Essas iniciativas são tidas
como importantes para dinamizar a sociedade em diversas produções de pequena
escala e serviços. Neste caso, não poderia também, essa iniciativa, ultrapassar
limites socialmente estabelecidos de concentração e crescimento. Este
socialismo de mercado – não de livre mercado! – é baseado na planificação
consciente com predominância da propriedade estatal, social e cooperativas
(NOVE, 1989).
De
alguma forma esta concepção encontra ressonância nas experiências do socialismo
do século XXI. Para Michael Lebowitz, como o capitalismo é um sistema orgânico,
a alternativa socialista também deve ser um sistema orgânico, uma combinação
específica de produção, distribuição e consumo, um sistema de reprodução. Ele
aponta um passo adiante em direção a uma concepção de tal sistema foi dada por
Hugo Chavez enfatizando o “triângulo básico do socialismo” composto por
propriedade social, produção social e satisfação das necessidades sociais onde
todos os elementos coexistem e apóiam um ao outro (2011, p. 27).
Outro ponto que devemos ter em
mente no processo de transição socialista é o que fazer diante da expansão do
chamado trabalho imaterial e seu papel nos meios de produção a serem
socializados. Quando falamos de trabalho imaterial, cognitivo,
intelectual, subjetivo – termos que estão hoje na moda – não estamos nos
aludindo a transformações essenciais no modo de produção que tornariam
anacrônicos os termos de Marx. Conforme Marx, com a passagem da manufatura a
grande indústria, o processo de trabalho depende menos do trabalho vivo
imediato e mais da elaboração científica (e simbólica) dos meios de produção. O
desenvolvimento das forças produtivas chega ao ponto de que as forças de
trabalho tornam-se, em si, meios de produção pelo papel que cumprem no sistema
de máquinas. Com isso a capacidade da maquinaria de “objetivação” das funções
mais abstratas do intelecto humano torna possível a transformações profundas
nas atividades intersubjetivas. Além disso, a maquinaria da grande indústria
tem a capacidade de corrigir-se e adaptar-se a demandas variáveis dependendo
cada vez mais dos trabalhos imateriais.
Nos Grundrisse Marx aponta que a maquinaria da grande indústria aparece
como sendo uma encarnação da apropriação de trabalho vivo através de trabalho
objetivado, isso é, como dominação do trabalho morto sobre o trabalho vivo: na
maquinaria, o trabalho objetivado se confronta materialmente com o trabalho
vivo como sendo um poder que o domina e como subordinação ativa do segundo ao
primeiro, não só através da apropriação do trabalho vivo, como também no
próprio processo real de produção (MARX, 1973, p. 220). O aperfeiçoamento das
máquinas, enquanto aplicação consciente da ciência, “só ocorre quando a grande indústria
já alcançou um nível superior e o capital capturou e colocou ao seu serviço
todas as ciências; por outro lado, a própria maquinaria existente já garante
grandes recursos” (MARX, 1973, p. 227). Nesse estágio de desenvolvimento, a
atividade inventiva torna-se objeto de um ramo particular da economia: “as
invenções se convertem, então, em um ramo da atividade econômica e a aplicação
da ciência à própria produção imediata se torna um critério que determina e
incita a esta.” (idem, p. 227,). O próprio Marx reconhece que este “não é o
caminho pelo qual surgiu em geral a maquinaria e menos ainda o caminho pelo
qual ela prosseguiu em detalhes.” (MARX, 1973, p. 227). Ele descreve esse curso
assim:
Esse caminho é
a análise através da divisão do trabalho, a qual transforma cada vez mais em
mecânicas as operações dos trabalhadores, de tal modo que em certo momento o
mecanismo pode ser introduzido no lugar deles. O modo determinado de trabalho
se apresenta aqui, portanto, diretamente transferido do trabalhador para o
capital sob a forma da máquina (MARX, 1973, p. 227).
Na qualidade de órgão material
do trabalhador coletivo, as máquinas são meios de apropriação da natureza. Se
observadas como capital fixo, elas também são uma medida do desenvolvimento da
objetivação das forças produtivas sociais. Nas palavras de Marx,
O
desenvolvimento do capital fixo revela até que ponto o conhecimento ou o knowledge
social geral se converteu em força produtiva imediata e,
portanto, até que ponto as próprias condições do processo social de vida
passaram ao controle do general intellect e foram remodeladas conforme o
mesmo. Até que ponto as forças produtivas sociais são produzidas não apenas na
forma do conhecimento [in der Form des Wissens], como também enquanto
órgãos imediatos [unmittelbare Organe] da práxis social, do
processo real de vida (MARX, 1973, p. 230).
O
capitalismo contemporâneo – matéria-prima da transição socialista – é muito
diferente do capitalismo manufatureiro dominante no século XX possuindo
diversas características da grande indústria. A transição para o socialismo,
conforme Marx, depende desta grande indústria estimulada pelo conhecimento
cooperativo e compartilhado, e não da manufatura com trabalhadores manuais a lá
Charles Chaplin.
O
socialismo nascerá da transformação do capitalismo, vamos partir da sociedade
que o capitalismo criou. Hoje o trabalho imaterial, cognitivo ou intelectual
estimulador do General Intellect se apresenta como um dos componentes
principais do capitalismo. Sua política busca a todo custo privatizar este
General Intellect (Intelecto Coletivo). Talvez o melhor exemplo deste processo
de privatização do Intelecto Coletivo nasceu da imbricação das redes
informáticas e telemáticas na internet: o ciberespaço
com seu fomento generalizado de regras de conduta que não violem a “propriedade
intelectual” além do controle de dados, nomes, relações, interesses,
conhecimento, fotos, músicas, e-mails, hábitos de navegação, conversas,
imagens, plataforma de uso e toda forma de criação. O ciberespaço capitalista
funciona como um gigantesco Shopping Center: uma nova forma de apropriação do
espaço com novos hábitos para fugir dos aspectos “negativos” da realidade.
Cria-se então um espaço virtual ideal que concentra inúmeras opções de consumo
para os mais variados gostos e necessidades acabando por se tornar uma unidade
simbólica de reprodução do capital. Seu formato constituído em redes
“rizomáticas” e “desterritorializadas” em expansão ilimitada com processos de
trabalho amplamente fragmentados não deve nos enganar: o ciberespaço não é um espaço público e aberto, mas
privado com o objetivo de capturar, manipular e privatizar o substrato
subjetivo da interatividade virtual e o intelecto coletivo. A materialidade
do ciberespaço gera a ilusão abstrata de ser um espaço livre, sem as mediações
capitalistas reais disseminando a idéia de que haja espaços puramente
tecnológicos, sem envolvimento com os processos produtivos. Este é o espaço
fundamental para o processo corrente que Arakin Monteiro chama de ciberespoliação:
O processo de ciberespoliação
ganhou amplitude, sobretudo, com o desenvolvimento dos mecanismos de
buscas, no bojo de uma profunda reestruturação produtiva da Internet comercial
após a queda da Nasdaq em 2000. Valorizadas mais pela especulação
financeira que pela sua capacidade de auferir lucros reais, após o crash da
bolsa tornou-se necessário repensar os modelos dos empreendimentos. A ciberespoliação
surge como a forma contraditória encontrada para dar escoadouros lucrativos
aos excedentes de capital investidos no setor. Ela permitiu ao capital expandir
suas formas de dominação e controle sobre a reprodução social, ao transformar a
própria interatividade da rede em um ativo capaz de dar-lhe sustentação e
lucratividade, ou seja, transformando-a em uma força produtiva do capital.
A
virtualização radical da vida social “real” no World Wide Web tem como suposto
a idéia que a rede é um organismo “natural” que se desenvolve por si mesmo fora
da censura “estatal” da internet. O ciberespaço seria aparentemente dotado de
uma lógica própria com a suspensão do conjunto das relações de poder e de
classe. Mas o que esconde esta naturalização do ciberespaço é que sua
“substância” advém de uma massa acumulada
de trabalho morto sob a forma de capital fixo virtual. Na realidade, o
próprio ciberespaço poderia ser considerado, assim como o capital fixo,
“produto do trabalho, um certo quantum de trabalho em uma forma objetificada”.
Ao invés de um espaço de entretenimento social externo aos mecanismos privados
do mercado, o ciberespaço está profundamente conectado com a grande indústria
como um todo. Sobre esse processo de privatização progressiva do ciberespaço
global, como salienta Zizek, “não existe
nada de “natural” no fato de que duas ou três empresas, em posição quase monopolista,
possam determinar os preços a seu bel-prazer, além de filtrar os programas que
fornecem, dando a essa “universalidade” nuances específicas que dependem de
interesses comerciais e ideológicos (2011, p. 10).
Sem dúvida uma das grandes
lutas socialistas contemporâneas gira em torno da organização do cyberespaço. O
paradoxo é que quanto mais comunal é o espaço virtual maior o perigo de este
espaço ser privatizado. Além disso, atividades como produção de idéias, códigos,
textos, programas, figuras, informação, etc. alarga o vasto domínio dos
“comuns”: conhecimento compartilhado, formas de cooperação e comunicação que
não podem mais ser contidos na forma da propriedade privada já que seus
produtos não são objetos materiais, mas novas relações sociais (interpessoais),
produção direta de vida social que reconfigura o acúmulo de conhecimento
produzido pela humanidade, ou seja, tudo que “a humanidade” sabe. É a partir
deste conhecimento acumulado que somos capazes de “inventar” coisas e idéias
novas que vão por sua vez também fazer parte do Intelecto Coletivo. Um processo
de transição ao socialismo além da “desprivatizar” o Intelecto Geral deve criar
mecanismos para estimular sua produção, expansão, filtragem e consumo
experimentando propriedades cooperativas e públicas para quebrar o monopólio da
“propriedade intelectual” que busca alavancar grandes rendas pela apropriação
privada de conteúdos sociais que são universais – vide a Microsoft que cerceia
a criação e acesso ao conhecimento. A expansão do uso do software livre – como
na experiência venezuelana e outras – entra nesta linha de desprivatizar o
acesso ao conhecimento ao permitir seu uso, estudo e distribuição para
generalizar novas produções de conhecimento ao permitir modificá-lo além de
atuar como um instrumento de integração social.
É possível dizer que qualquer
projeto socialista no século XXI depende da descentralização do conhecimento e
do estímulo ao desenvolvimento de meios para fazê-lo com um planejamento
flexível cortando as relações de dependência com o imperialismo virtual que
cerceia o acesso aos “comuns”. O planejamento do socialismo
do século XXI será estimulado pelo processo de socialização e descentralização
do Intelecto Coletivo – internet rápida de graça e irrestrita ao menos,
software livre, filtragem dos conteúdos virtuais, etc. As formas de propriedade
privada entram em contradição com o Intelecto Coletivo e qualquer política
socialista deve aprofundar esta tensão com crescente expansão e
descentralização do conhecimento.
A dinâmica das diversas formas de
propriedade num processo de transição socialista deixa claro que a propriedade
privada não seria o fator determinante numa economia de mercado
predominantemente socializada. Esse “socialismo de mercado” é uma forma de
superar o fetichismo do mercado baseado na propriedade privada que governa o
mundo capitalista aprofundando a coexistência de formas de propriedade estatal,
pública não-estatal, cooperativas, empreendimentos de economia solidária e de
propriedade privada com diversos mecanismos de controle dos
trabalhadores, consumidores e técnicos descentralizando os poderes de decisão e
a produção/circulação de conhecimentos de forma material e imaterial. Superar a
antinomia falsa entre planificação socialista e o mercado faz parte deste
processo de transição, ainda mais quando os objetos veiculados pelo mercado são
materiais e imateriais. Qualquer socialismo de mercado depende de ampla e
complexa planificação. Um socialismo de mercado não é uma convivência pacífica
com o mercado dominado pelo capitalismo. Não devemos confundir mais capitalismo
ou “livre iniciativa” com mercado. Qualquer socialismo demanda formas de
controle dos elementos que produzem o mercado. Devemos mostrar que é possível
um mercado sem a dominação da propriedade privada. Claro que um dos objetivos
do socialismo é suprimir o mercado, mas isso não se dará de maneira imediata
por decreto, estatização total ou isolamento num só país, mas pelas próprias
contradições do mercado mundial. É a partir daí que podemos buscar elementos
mínimos para elaborar o projeto do socialismo do século XXI que, felizmente,
ainda está trilhando apenas seus primeiros
passos.