segunda-feira, 23 de abril de 2012

Pós-neoliberalismo: do que se trata?


É verdade que um dos problemas da esquerda socialista é que continua não distinguindo neoliberalismo de pós-neoliberalismo.
As experiências pós-neoliberais se caracterizam ao mesmo tempo pela recusa retórica do neoliberalismo e por conter muitos de seus traços fundamentais. O pós-neoliberalismo é baseado em continuidades e descontinuidades que configuram um novo contexto histórico que não tem nada de parecido com a forte intervenção estatal na economia dos tempos do pós-guerra, seja do keynesianismo ou do desenvolvimentismo, mas que reconfigura a ação estatal em relação à sociedade civil e deixa de lado a retórica dos livres mercados como o único horizonte da condução das políticas econômicas. É correto caracterizar o pós-neoliberalismo como um período de transição, com duração variável, para a reorganização da economia, a articulação de um novo papel do Estado, emergência de novos atores sociais e superação da retórica dos livres mercados. Em suma, o pós-neoliberalismo possui a marca de ser uma transição de uma forma de capitalismo para outra e uma mutação na configuração do bloco de poder.
 No caso brasileiro ocorre uma forma de pós-neoliberalismo que aponta para profundas transformações no desenvolvimento do capital e na estrutura de classes no Brasil recente. É verdade que o termo “pós-neoliberal” corre o risco de centralizar as discussões em se algo é “pós” ou “neo”, mas é crucial lembrar que o “pós-neoliberal” continua tendo profundas determinações do “neoliberal” e não constitui nem um programa coerente contra o neoliberalismo e nem uma estratégia positiva para além do capitalismo.
Qualquer pode perceber que ainda não ocorreu uma reversão completa do caminho trilhado pelos governos neoliberais, por mais que algumas mudanças importantes tenham ocorrido. Por exemplo, passamos da estagnação para o crescimento econômico. Saímos da privatização dos ativos das empresas públicas para a consolidação das empresas estatais que sobraram da privataria neoliberal, e para as parcerias público-privadas, com concessões ao setor privado. O desmantelamento do planejamento estatal foi deixado de lado e há um processo, ainda não consolidado, de retomada do planejamento macroeconômico e macro-social.
Em suma, o pós-neoliberalismo é um limbo histórico, um intervalo que ainda tem em aberto qual será o próximo capítulo. Embora o socialismo continue internacionalmente em crise, o mesmo ocorre com o capitalismo neoliberal e com as potências hegemônicas. Nessa situação, mesmo sendo parte do governo, os socialistas ainda não têm condições de romper com a hegemonia das relações capitalistas e o capital também se encontra enredado em suas próprias contradições e sem condições de restabelecer seu antigo domínio. Vive-se um imbróglio. Emergem agora enormes desafios quanto à capacidade de o governo ampliar sua agenda pós-neoliberal num país em que predomina o modo capitalista de produção e em que a revolução socialista não está na ordem do dia. Que fazer?
Ainda nos falta uma estratégia que deve favorecer a transformação do pós-neoliberalismo no socialismo, caracterizando-se como um efetivo programa de transição ao socialismo. Os socialistas tem o desafio de formulação de uma estratégia para encontrar a forma adequada de luta e de organização, com um caminho e suas alianças de classe para a revolução brasileira e latino-americana, uma verdadeira abertura na história em que se possa espelhar os povos de todo o mundo. Deve-se ter em mente que é cada vez mais necessário encontrar este caminho para que as transformações pós-neoliberais se tornem irreversíveis. É cada vez mais claro que sem este caminho, é uma grande ingenuidade acreditar que é possível a superação do neoliberalismo apenas na linha de menor resistência do pós-neoliberalismo.
Está claro que, dadas às condições de crise e recessão no centro do capitalismo, este é um ótimo momento para a retomada do socialismo como estratégia de luta política na América Latina. Se não avançarmos nesta perspectiva estratégica em nossas lutas, talvez terminemos tragados por uma inflexão histórica que aniquile o que foi conquistado. Ainda pode demorar um tempo, mas é a apenas esta perspectiva estratégica que pode transformar a América Latina numa força hegemônica, impulsionando projetos pós-neoliberais em escala mundial.

domingo, 22 de abril de 2012

Dilma e o pós-neoliberalismo




Na década de 1990, os países latino-americanos, em sua grande maioria, adotaram práticas de cunho neoliberal em seus sistemas sócio-econômico, político e ideológico. Além do Chile, Bolívia, México, Argentina e Venezuela, países pioneiros na implantação do regime, o neoliberalismo surge no Brasil em momento crítico à política nacional-desenvolvimentista. Após a crise da dívida, diversas tentativas de estabilização inflacionária, fracassos dos planos econômicos, o projeto neoliberal vai ganhando espaço político no país.
No Brasil, o neoliberalismo nasce associado à abertura econômica e à democratização, culminando com a derrota do protecionismo e com a diminuição dos direitos trabalhistas provenientes do populismo. As orientações neoliberais foram acolhidas por amplos setores da sociedade brasileira, de governantes e empresários a lideranças do movimento popular e sindical e intelectuais. Embora iniciada desde a década de 1980, as medidas neoliberais tiveram no Brasil sua maior ofensiva durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.
Com o esgotamento deste projeto anti-democrático e anti-popular, veio a eleição de Lula para Presidente do Brasil. Sem uma estratégia pré-definida, Lula buscou avançar pelas linhas de menor resistência. Durante seus mandados (2003 – 2010), o governo Lula manteve-se na defensiva, muito acuado pela oposição que perdia suas bases sociais, mas que era amplificada pela mídia hegemônica.
Como principais tarefas domésticas, centrou seu governo na utilização das forças capitalistas predominantes no país para desenvolver a indústria, a agricultura e os serviços, reconstruir a infra-estrutura de energia, transportes e comunicações e a infra-estrutura urbana, estimular a criação de novos empregos, criar mecanismos de redistribuição de renda e de democratização da propriedade agrária além de dar maior musculatura ao mercado interno brasileiro. Para isso a estratégia governamental é de estimular o desenvolvimento capitalista, ao mesmo tempo em que aproveita essa aliança com setores da burguesia nacional e internacional para adotar mecanismos de “democratização do capital”, multiplicação das formas de propriedade e produção (estatais, públicas, solidárias, etc.) e instrumentos mais efetivos de redistribuição constante da renda e de elevação do poder de compra e da educação das camadas mais pobres da população. 
É possível afirmar que ainda não ocorreu uma reversão completa do caminho trilhado pelos governos neoliberais, por mais que algumas mudanças importantes tenham ocorrido. Passamos da estagnação para o crescimento econômico. Saímos da privatização das empresas públicas para a consolidação das empresas estatais, que sobraram do processo de privatização, e para as parcerias público-privadas, com concessões ao setor privado. O desmantelamento do planejamento estatal foi deixado de lado e há um processo de retomada do planejamento macroeconômico e macro-social.
                Mas o que dizer agora do governo Dilma em relação ao desenvolvimento deste projeto pós-neoliberal? Isso considerando o momento da conjuntura internacional de crise generalizada do neoliberalismo, desmonte da oposição política da direita as orientações do governo e uma parcial defensiva da mídia hegemônica. Sem contar a pequena margem de manobra dos partidos aliados para pressionar o governo e desgaste no Legislativo. Qual projeto pode unificar os diversos setores contraditórios que a levaram ao governo?
Podemos enumerar alguns pontos prioritários que requerem medidas adequadas neste programa pós-neoliberal, que apontam planos para a industrialização, superação de seus gargalos na produção, distribuição, consumo interno, logística, infra-estrutura etc., além de identificar os setores considerados estrategicamente “especiais” para o desenvolvimento do Brasil. Para isso é necessário passar cada vez mais da defensiva para a ofensiva política no tratamento das relações com o sistema
financeiro. Nesse plano, aponta-se a maior participação das empresas estatais, em especial nos setores estratégicos, estímulos para as micros e pequenas empresas privadas, urbanas e rurais, inclusive com ampliação do comércio exterior. O que não significa abandonar a política de reforço das empresas privadas, para que adensem as cadeias produtivas industriais e agrícolas, e desenvolvam mais rapidamente as forças produtivas do país, embora seja necessária uma ação permanente do Estado para evitar que elas tornem o mercado mais caótico do que normalmente é.

1)                 Adotar políticas macroeconômicas coerentes, que mantenham a inflação baixa, utilizem os juros para incentivar os investimentos e tratem do câmbio como instrumento de política de desenvolvimento industrial. A política de crescimento necessita se transformar em política de desenvolvimento industrial, científico e tecnológico junto com políticas de apoio à existência de formas econômicas capitalistas, micro e pequenas empresas, além do reforço da propriedade estatal, pública e solidária. Como salientou Wladimir Pomar, a decisão de rebaixar os juros cobrados por essas empresas, em especial o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, representou o primeiro tiro direto no pior inimigo do desenvolvimento econômico e social brasileiro. Até que ponto o governo está preparado para sustentar a disputa com esse monstrengo, não se sabe ainda. A reação inicial da fera, embora ainda soft, foi de uma desfaçatez total, exigindo compensações do poder público, como se fosse um miserável à míngua.

2)                 Concentração dos investimentos estatais em áreas estratégicas e elevação da taxa nacional de investimentos para 25% a 30% do PIB, levando em conta a instalação de plantas de fabricação dos setores produtivos estratégicos que possam aplicar às terras-raras brasileiras em processos e produtos de cadeias produtivas do mais alto valor agregado como na aeronáutica, automobilística, carros elétricos, defesa, softwares, tablets, além do desenvolvimento de investimentos em áreas relacionadas a biogenética; biotecnologia; nanotecnologia; biomassa; energias renováveis; indústria aeroespacial (um projeto de satélite para internet comum sul-americano?); o setor de base química, envolvendo a indústria farmacêutica, de vacinas, hemoderivados e reagentes; o setor de base mecânica e eletrônica, envolvendo as indústrias de equipamentos médico-hospitalares e de materiais médicos; o setor de serviços, envolvendo de hospitalar, laboratorial e serviços de diagnóstico e tratamento; serviços de telecomunicações e infra-estrutura digital a partir do desenvolvimento da banda larga (comunicações, ópticas, wireless e comunicações por rádio e satélite) com ou sem fio para abrir caminho para provedores de serviços multimídia como áudio e vídeo, teleconferência, jogos interativos e telefonia de voz sobre IP (VoIP), sistemas avançados de acesso à banda larga como o FTTH e VDSL (very high data rate digital subscriber loop), TV de alta definição (HDTV) e vídeo sob demanda (VoD). 

3)         Políticas de construção de uma infra-estrutura moderna, sobretudo de malha ferroviária que cubra o território nacional, montagem dos meios para estender a navegação fluvial e de cabotagem e edificação de portos, hidrelétricas, sistemas de transportes integrados etc. A expansão dos investimentos em infra-estrutura está ligada ao desenvolvimento industrial, seja como fonte de demanda importante para sistemas industriais de insumos básicos e bens de capital seriados e sob encomenda ou enquanto um fator de competitividade que permite a redução de custos de produção, logística, transporte, distribuição e comercialização, além de ter um forte impacto sobre o desenvolvimento regional, integrando e promovendo novos mercados. O vetor de demanda doméstica pode ser também uma alavanca poderosa para promover a reestruturação competitiva de setores e atividades industriais, tanto através do reforço das economias de escala empresariais quanto da intensificação do processo de inovação e difusão tecnológica. Para isso é necessário aprofundar medidas de distribuição de renda, cujos ramos principais são a poupança para a reprodução ampliada do processo produtivo, os salários, a educação, a saúde e as demais demandas sociais.

4)         Articular política de exportação e importação. No plano externo, ao se consolidar como um dos maiores exportadores globais de alimentos, fornecimento de energia e de commodities minerais e metálicas, o Brasil deverá aprofundar sua integração ao sistema de produção e de consumo asiático com uma ampla cadeia logística de serviços, fornecimento, armazenagem, distribuição e transporte. É necessário elaborar políticas que guiem os investimentos estrangeiros, impulsionando o adensamento das cadeias produtivas industriais e apenas aceitando os empreendimentos com novas ou altas tecnologias, associando-se em joint venture com empresas estatais ou cooperativas. Também é crucial uma política de importações que facilite a entrada de mercadorias que contribuam ao desenvolvimento industrial e científico. Sem regras claras para investimentos e importações que busquem elevar as cadeias produtivas nacionais, as empresas brasileiras não conseguirão disputar os caminhos competitivos do mercado mundial.

É crucial elevar o adensamento das cadeias produtivas e da infra-estrutura com maior participação das empresas nacionais nos setores monopolizados por empresas estrangeiras e investimentos na construção de parques industriais de alta tecnologia, elevar os investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento para o patamar de 2% do PIB como via da política industrial, transformando a inovação em efetiva alavanca do desenvolvimento nacional. Para que isso ocorra é necessário incrementar os investimentos estratégicos, focando nas mudanças tecnológicas de produtos e processos, nas mudanças no padrão de concorrência da indústria e em investimentos focados em preencher novos mercados diante das tendências de relocalização industrial e de gestão da cadeia de valor em nível global, seja no espaço brasileiro, com a transferência de pólos de produção de outros países para o Brasil, seja no movimento de internacionalização das grandes, médias e pequenas empresas brasileiras.

5)         Uma estratégia nacional de internacionalização das empresas nacionais, com intensa participação de agências estatais e do governo de forma direta e indireta. Estas empresas estarão alinhadas com certas prioridades do país. Atividades da Apex-Brasil como os centros de distribuição em Dubai, Frankfurt, Lisboa, Miami, Varsóvia são importantes e devem se expandir para outros locais na África, Ásia e América Latina. Mais escritórios de cooperação internacional devem ser criados em diferentes cidades de países com os quais o Brasil possui uma relação estratégica. Isso junto com assessoria para ajudar exportadores a colocarem seus produtos no mercado internacional, por terceirização ou incorporação técnica do comércio exterior, com inteligência comercial para dividir informações relevantes para tomada de decisões de investimentos em mercados específicos. Deve-se também ampliar as secretarias especializadas em comércio exterior em nível regional, estadual e municipal. O BNDES também desempenha um papel fundamental no financiamento de operações estrangeiras das empresas nacionais, devendo se ampliar para o médio capital, criação de bases no exterior e financiamento de plantas industriais que utilizem insumos, partes, peças ou componentes importados do Brasil.

A internacionalização deve ser considerada um instrumento essencial para a sobrevivência das firmas no próprio mercado doméstico e não apenas como a busca de novos mercados no exterior. A principal motivação para a internacionalização deve ser o aumento de competitividade. Os benefícios não se restringem apenas às empresas: a necessidade de políticas de apoio deliberado à internacionalização se justifica pelos ganhos gerados para o país como um todo a partir do aumento das exportações, geração de divisas e acesso a novas tecnologias. É por isso que as ações pontuais devem se consolidar numa política de internacionalização de empresas, envolvendo o BNDES, CADE, SDE, Apex-Brasil, o Ministério das Relações Exteriores, Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e até mesmo Petrobrás e Eletrobrás. Nessa linha, também é crucial fortalecer o Fundo Soberano do Brasil e utilizá-lo para comprar empresas estrangeiras (total ou parcialmente) e numa atuação contra a volatilidade cambial.

6)         Expansão de corredores para melhorar a logística da exportação de commodities e utilizar o excedente comercial para políticas industriais, inclusive para o adensamento industrial de matérias-primas e a agroindustrialização dos assentamentos da reforma agrária, incentivando um importante instrumento de expansão de propriedades coletivas, além de frear o aumento da inflação, puxado principalmente pelo aumento do preço dos serviços e dos alimentos.

7)         Um novo modelo agrícola contra as pressões inflacionárias. Conforme o Dieese, durante os últimos anos, a alimentação fora do domicílio registrou expressivo aumento de preços devido a dois fatores: 1) aumento do emprego, da massa de salários e conseqüente elevação na demanda por refeições fora de casa; 2) aumento no preço dos alimentos, fato que também provocou aumento no custo da alimentação no domicílio. A alimentação no domicílio registrou grande aumento de preços devido, basicamente, ao aumento no preço dos alimentos e, de forma colateral, à elevação do preço do gás de botijão, derivado do petróleo. Uma política industrial necessita desenvolver um novo modelo agrícola baseado na pequena e na média propriedade, na prioridade à produção de alimentos para o mercado interno, na criação de uma nova matriz produtiva no campo.
Qualquer dado confiável aponta que a agricultura familiar é responsável pela maioria da produção nacional voltada a alimentar a população e que, ao mesmo tempo, são os alimentos que representam o principal componente que impulsiona a inflação. O governo Dilma está procurando se antecipar em relação às eventuais altas nos alimentos durante o próximo período, dando um reforço no caixa da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) para que em 2012 amplie fortemente as compras diretas e as aquisições da nova safra de grãos e cereais. Seu objetivo é adquirir alimentos diretamente do produtor a preços de mercado, garantindo boa remuneração no auge da colheita, e formar estoques estratégicos maiores para enfrentar uma eventual elevação das cotações ao longo da entressafra.
Para o próximo período estas medidas antiinflacionárias devem ser acompanhadas por outra frente crucial: uma política de industrialização dos assentamentos de Reforma Agrária, que impulsionaria o aumento da produção para o mercado interno. Para isso também é necessário uma política de barrar a expansão da compra de terras pelo agronegócio, assentar milhares de acampados e sem-terra, estimular o crédito e o financiamento para dar início à produção de alimentos, retirar taxações pelo uso da terra e comercialização de produtos, levar estrutura básica e infra-estrutura a projetos dos assentamentos para dar acesso à saúde, escola, e construir estradas que facilitem o escoamento da produção, logística rural, assessoria técnica para desenvolvimento de pesquisas de sementes e instituir todas as terras devolutas do país como território de reforma agrária. Para cumprir esse objetivo a EMPRAPA deve continuar uma empresa pública e cada vez mais voltada à agricultura familiar.

Outros pontos são cruciais – como a reforma nas comunicação e uma política de deflação generalizada do mercado imobiliário -, mas essas linhas gerais de políticas macroeconômicas podem desenvolver a capacidade de remediar as distorções do mercado pelo poder dos meios de produção públicos e estatais. Para isso eles devem estar à prova de constantes reformas modernizadoras, para ganharem eficiência econômica e servir como instrumentos chaves para um planejamento macroeconômico capaz de dirigir e regular o mercado. É a partir daí que podemos buscar elementos mínimos para avançar no projeto democrático-popular pós-neoliberal com características brasileiras.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Socialismo do século XXI: sobre os meios de produção e o General Intellect




Não existem dúvidas que o século XX foi profundamente marcado pelo socialismo da experiência soviética, a primeira vez na história mundial de uma sociedade complexa, com as forças produtivas modernas, em que houve um projeto de planejamento centralizado total. Quando caiu o muro de Berlim muitos falaram da “crise do socialismo real”, como se a experiência da URSS fosse a única e melhor possibilidade de construção do socialismo e que, assim, as experiências de China, Vietnam e Cuba fossem seguir o mesmo caminho de restauração do capitalismo e que qualquer tentativa de construção de uma sociedade para além do capital estaria fadada ao fracasso. Como o socialismo real era eterno enquanto durou, com sua queda a antiga referencia do “campo socialista” que ordenava a visão de mundo de todos desapareceu. Até o termo “capitalismo” passou a ser substituído por simplesmente “economia” numa naturalização de sua historicidade nunca vista. A tese de Francis Fukuyama que a história teria chegado ao seu clímax com o capitalismo democrático foi elevada ao inconsciente cultural de nossa época. Ser “realista” passou a ser viver sob o signo do “fim da história” com a democracia-liberal como horizonte ontológico último da humanidade. Tudo se passa como que fossemos obrigados a aceitar a hegemonia do capitalismo e lutar por “mudanças” no limites impostos pelas regras democráticas, sem nunca postular superar o capital e fenecer o Estado pela socialização dos meios de produção, do poder político, do conhecimento e do planejamento social. 
Com a exacerbação da crise capitalista e de novos contornos geopolíticos nos últimos anos podemos afirmar que a complacência do período pós-Guerra Fria está finalmente acabando e que estamos vivendo um retorno das discussões sobre as alternativas ao capitalismo. Como sair da crise e iniciar um processo de transição a uma sociedade radicalmente distinta? A idéia de um “capitalismo mais humano” com preocupações ecológicas e sociais demonstra a cada dia ser a maior utopia irrealizável. Encontrar uma alternativa viável e desejável ao capitalismo está deixando de ser algo utópico para se converter numa urgência histórica, a “crise terminal” do socialismo está passando a ser uma crise momentânea que demanda novas elaborações e práticas políticas. Em meio à confusão deste processo, o presidente bolivariano Hugo Chavez tentou resolver este enigma com o desafio de construir o “Socialismo do Século XXI”. Quando se fala neste socialismo do século XXI, qual socialismo é proposto? A resposta de estar simplesmente no futuro, ou uma mera Utopia, não serve para responder esta pergunta. Temos que lidar com o desafio de reelaborar o projeto do socialismo que durante décadas foi insultado e ridicularizado, mas que agora volta para a agenda política.
Ainda bem que apesar da idéia relativa ao “fim da história” e a “crise do socialismo real” podemos lutar por um socialismo renovado a partir do amadurecimento da reflexão sobre as condições de existência das experiências socialistas do passado e do presente. Em primeiro lugar, quando se fala de socialismo do século XXI é necessário diferenciá-lo do socialismo do século XX.
Os socialistas do século XX se dividiram (e ainda se dividem) entre aqueles que defendem que um “socialismo de mercado” e os que defendem o “socialismo estatal centralmente planejado”. Esta dualidade é uma das principais marcas do socialismo do século XX. O problema das relações entre a planificação socialista e o mercado tem início com a revolução russa em 1917. Essa problemática se desenvolve com a NEP (Nova Política Econômica) no início dos anos vinte do século passado e continua até os dias atuais.
Nos marcos das diversas pressões existentes na república soviética, a socialização da economia foi identificada com a total estatização das atividades econômicas. Depois do fim da guerra civil, Lênin, em março de 1921, vislumbra o abandono temporário da estatização da economia e visualiza os princípios da NEP para substituir o “comunismo de guerra”, que orientou a política econômica na União Soviética desde a Revolução Russa em 1917. Com a proposta da NEP, Lênin já destacava a situação contraditória de que um Estado Socialista se via obrigado a se apoiar em relações de produção capitalistas e, particularmente, no capitalismo de Estado para permitir a sobrevivência da revolução. Graças a esta nova política os camponeses podiam vender seus produtos ao mercado e não somente ao Estado com a iniciativa privada sendo tolerada em pequenas escalas. O que levou Lênin a dizer que “a NEP era um capitalismo de Estado, com conteúdo socialista, sob o controle dos trabalhadores”. A NEP permitiu um crescimento limitado do comércio e das concessões estrangeiras ao lado dos setores econômicos nacionalizados e controlados pelo Estado. Também estimulou o crescimento de uma classe de camponeses ricos e de uma burguesia comercial. Para os bolcheviques, tratava-se de um encorajamento das tendências capitalistas, de um recuo estratégico em virtude do atraso da revolução européia e das condições calamitosas de construção do socialismo na Rússia. Dessa forma Lênin procurava desenvolver na Rússia as forças produtivas com o crescimento de novas classes hostis a construção socialista. Ao promover mecanismos de mercado, propriedade privada, competição e integração na economia capitalista externa, a NEP evidenciou os problemas inerentes da construção do socialismo numa região altamente atrasada, em guerra e com pouca capacidade tecnológica. O governo bolchevique permitiu também certo espaço aos capitais privados na indústria e no comércio, permanecendo o Estado com a propriedade das grandes empresas industriais, dos transportes, dos bancos, dos meios de comunicação e com o monopólio do comércio exterior. Entre 1922 e 1924 o rublo foi sendo restaurado e um sistema monetário foi minimamente estruturado para melhorar a racionalização da economia e o ajuste dos preços. Muitos foram aqueles descontentes com o recuo da NEP apontando que a revolução teria traído seus princípios, o que inclusive impulsionou aquilo que depois ficou chamado como “stalinismo” que, de forma esquerdista, finalizou a NEP e iniciou os planos qüinqüenais, os processo de coletivização de terras, etc. Para muitos a NEP durou tão pouco que não pode ser considerada um paradigma na construção do socialismo.
Algumas décadas depois na China revolucionária, depois de anos de tentativas de elevar as forças produtivas e transformar as relações de produção e de poder (culminando na Revolução Cultural), começou a se desenvolver uma experiência que mescla diversas formas de propriedade denominada de “Socialismo de Mercado”. Optou-se por seguir a hegemonia modernizadora da propriedade estatal e cooperativa sem excluir elementos privados e mistos para a dinamização da economia e o aumento da produtividade e comercialização dos produtores do campo e das cidades. Longe de se romper a aliança com os camponeses como fizera o stalinismo, os comunistas chineses ampliaram os laços que deram sustentação ao pacto de poder de 1949 dando mais estímulos e autonomia para a produção no campo desdobrando-se nas empresas rurais de caráter territorial e coletivo - o “grande segredo” da experiência chinesa contemporânea, responsável por mais de um terço dos produtos exportados pelo país cumprindo um papel crucial na absorção de excedentes populacionais vindo do campo e desenvolvendo indústrias com alta tecnologia. Como argumenta Wladimir Pomar, a China aproveitou as dificuldades de reestruturação do capitalismo desenvolvido, que não mais conseguia manter as altas taxas médias de lucro, ou margens de rentabilidade, necessárias para sua reprodução ampliada em seus países de origem. O que o levou a criar novas corporações empresariais, de cadeias produtivas complexas, com indústria, finanças, comércio e logística, a utilizar amplamente a especulação financeira e o trabalho escravo, e a realizar uma profunda fragmentação ou segmentação da produção industrial, transferindo para países da periferia as plantas industriais dos países desenvolvidos. Os chineses resolveram aproveitar, de forma calculada, essas necessidades das grandes corporações e do capitalismo em geral. Abriram sua economia, apresentando como atração o baixo custo relativo de sua mão-de-obra, a boa infra-estrutura de energia, transportes e comunicação, a pouca burocracia nos processos de investimentos e a estabilidade social e política. Mas o fizeram de modo paulatino, condicionando os investimentos externos à associação com empresas chinesas, à transferência de novas e altas tecnologias e à participação no comércio internacional (POMAR, 2009, p. 193).
Estas experiências, muitas vezes negligenciadas pela esquerda, demonstram que a estatização total da economia não é a única alternativa para a implementação dos primeiros estágios do socialismo. Para além das antigas antinomias, a verdadeira pergunta hoje é: o socialismo planejado de mercado é uma alternativa ao capitalismo neoliberal (e pós-neoliberal)? Este forma de socialismo se articula com um mercado regulado pelo planejamento das forças socialistas e será dividido em diversas formas de propriedade diferenciadas entre si pela relação de posse e comando das forças produtivas. Como salienta Atílio Borón,

trata-se de um socialismo superador da anacrônica antinomia “planejamento centralidade ou mercado incontrolado” e que, diferentemente disso, abra espaços para a imaginação criadora dos povos na busca de novos dispositivos de controle popular dos processos econômicos, dotados da flexibilidade suficiente para responder com rapidez à corrente de inovações que dia a dia modifica a fisionomia do capitalismo contemporâneo. Um socialismo que potencialize a descentralização e a autonomia das empresas e unidades produtivas e, ao mesmo tempo, faça possível a efetiva coordenação das grandes orientações da política econômica. Um socialismo que promova diversas formas de propriedade social, desde empresas cooperativas até empresas estatais e associações destas com capitais privados, passando por um amplo leque de formas intermediárias nas quais trabalhadores, consumidores e técnicos estatais se combinem de diversas formas para engendrar novas relações de propriedade sujeitas ao controle popular. Um dos problemas mais sérios que teve a experiência soviética, e todas as que nela se inspiraram, foi confundir propriedade pública com propriedade estatal. Um dos desafios maiores do socialismo do século XXI será demonstrar que existem formas alternativas de controle público da economia, distintas do passado (2010, p. 37- 38).
        
        Como se vê, existe muita má fé quando se debate o socialismo de mercado. Quando não se defende implicitamente a estatização total, muitas vezes se busca demonstrar que o mercado é incompatível com o socialismo ou que a existência de um socialismo com mercado estaria negligenciando a dimensão do planejamento social. Nada disso ocorreu tanto na experiência da NEP como no Socialismo de Mercado aplicado na China. Para lidar com o mercado se impõe um nível de planejamento mais flexível, mas que delimita progressivamente o comportamento do setor privado na economia pela modernização da propriedade estatal e cooperativa. O Socialismo de Mercado, assim, não é para o mercado manter suas relações caóticas e anárquicas, mas para utilizar os mecanismos dos mercados para uma melhor alocação dos recursos e estimular a competição entre os capitais visando alcançar os limites do capitalismo junto com uma transição socialista que prevê o controle da reprodução social pelos produtores associados de diversas formas que se sustentam reciprocamente. O objetivo é uma transição em que o capital se oponha a este processo com uma posição historicamente retrógrada e insustentável devido ao dinamismo das propriedades públicas, estatais e não estatais, com um sistema orgânico entre produção e distribuição, descentralização do poder político e radical transcendência  da divisão social hierárquica do trabalho. Afinal, como escreve Borón,
Porque não pensar num ordenamento econômico mais flexível e diferenciado, no qual a propriedade estatal dos recursos estratégicos e dos principais meios de produção – questão esta não negociável – conviva com outras formas de propriedade pública não estatal, ou com empresas mistas nas quais alguns setores do capital privado se associem com corporações públicas ou estatais, ou com companhias controladas por seus funcionários em associação com os consumidores, ou com cooperativas ou formas de “propriedade social” de diverso tipo – como as que estão se promovendo na Venezuela bolivariana – fora da lógica da acumulação capitalista? Obviamente, não se trata de um experimento simples (idem, p. 109).      
            
         Lembremos também das teses controversas de Alec Nove. Para ele existiriam cinco formas de propriedade no “socialismo de mercado”: 1) Empresas Centralizadas de posse e comando do Estado. Concentradas em setores estratégicos, serão responsáveis por setores onde o custo de descentralização seja muito alto (tanto em termos econômicos, incluindo aí custos de externalidades, possibilidade de informação e ganhos de escala, como por questões sociais de distribuição e ineficiência). Exemplos para esse tipo de empresa seria o de produção de energia, crédito, a indústria siderúrgica, construção civil ou petroquímica; 2) Empresas socializadas. São empresas de posse do Estado, mas, com sua gestão partilhada com os trabalhadores. É uma proposta de se criar uma empresa mista onde o dono, Estado, permite que seus trabalhadores exerçam a autogestão; 3) Cooperativas. Sua característica principal seria ter tanto gestão como a posse dos próprios trabalhadores. Sua administração deve ser formada por uma comissão de trabalhadores escolhidos por eleição ou plenárias. Essa condição seria princípio de legitimidade das cooperativas. Elas também serviriam, do mesmo modo que as empresas socializadas, para serem formadas a partir de empresas privadas individuais que aumentassem em muito os seus lucros; 4) Empresas será o das empresas privadas não cooperativas e nem estatais. Sem ser considerado um mal social, a empresa privada deverá apenas ter limites quanto ao seu tamanho, poder e lucros; 5) Empreendimento produtivo de iniciativa individual. Nesta estão incluídos do barbeiro ao dentista, do pipoqueiro ao advogado que não querem fazer parte de nenhuma organização coletiva. Essas iniciativas são tidas como importantes para dinamizar a sociedade em diversas produções de pequena escala e serviços. Neste caso, não poderia também, essa iniciativa, ultrapassar limites socialmente estabelecidos de concentração e crescimento. Este socialismo de mercado – não de livre mercado! – é baseado na planificação consciente com predominância da propriedade estatal, social e cooperativas (NOVE, 1989).
            De alguma forma esta concepção encontra ressonância nas experiências do socialismo do século XXI. Para Michael Lebowitz, como o capitalismo é um sistema orgânico, a alternativa socialista também deve ser um sistema orgânico, uma combinação específica de produção, distribuição e consumo, um sistema de reprodução. Ele aponta um passo adiante em direção a uma concepção de tal sistema foi dada por Hugo Chavez enfatizando o “triângulo básico do socialismo” composto por propriedade social, produção social e satisfação das necessidades sociais onde todos os elementos coexistem e apóiam um ao outro (2011, p. 27).
Outro ponto que devemos ter em mente no processo de transição socialista é o que fazer diante da expansão do chamado trabalho imaterial e seu papel nos meios de produção a serem socializados. Quando falamos de trabalho imaterial, cognitivo, intelectual, subjetivo – termos que estão hoje na moda – não estamos nos aludindo a transformações essenciais no modo de produção que tornariam anacrônicos os termos de Marx. Conforme Marx, com a passagem da manufatura a grande indústria, o processo de trabalho depende menos do trabalho vivo imediato e mais da elaboração científica (e simbólica) dos meios de produção. O desenvolvimento das forças produtivas chega ao ponto de que as forças de trabalho tornam-se, em si, meios de produção pelo papel que cumprem no sistema de máquinas. Com isso a capacidade da maquinaria de “objetivação” das funções mais abstratas do intelecto humano torna possível a transformações profundas nas atividades intersubjetivas. Além disso, a maquinaria da grande indústria tem a capacidade de corrigir-se e adaptar-se a demandas variáveis dependendo cada vez mais dos trabalhos imateriais.
Nos Grundrisse Marx aponta que a maquinaria da grande indústria aparece como sendo uma encarnação da apropriação de trabalho vivo através de trabalho objetivado, isso é, como dominação do trabalho morto sobre o trabalho vivo: na maquinaria, o trabalho objetivado se confronta materialmente com o trabalho vivo como sendo um poder que o domina e como subordinação ativa do segundo ao primeiro, não só através da apropriação do trabalho vivo, como também no próprio processo real de produção (MARX, 1973, p. 220). O aperfeiçoamento das máquinas, enquanto aplicação consciente da ciência, “só ocorre quando a grande indústria já alcançou um nível superior e o capital capturou e colocou ao seu serviço todas as ciências; por outro lado, a própria maquinaria existente já garante grandes recursos” (MARX, 1973, p. 227). Nesse estágio de desenvolvimento, a atividade inventiva torna-se objeto de um ramo particular da economia: “as invenções se convertem, então, em um ramo da atividade econômica e a aplicação da ciência à própria produção imediata se torna um critério que determina e incita a esta.” (idem, p. 227,). O próprio Marx reconhece que este “não é o caminho pelo qual surgiu em geral a maquinaria e menos ainda o caminho pelo qual ela prosseguiu em detalhes.” (MARX, 1973, p. 227). Ele descreve esse curso assim:

Esse caminho é a análise através da divisão do trabalho, a qual transforma cada vez mais em mecânicas as operações dos trabalhadores, de tal modo que em certo momento o mecanismo pode ser introduzido no lugar deles. O modo determinado de trabalho se apresenta aqui, portanto, diretamente transferido do trabalhador para o capital sob a forma da máquina (MARX, 1973, p. 227).

Na qualidade de órgão material do trabalhador coletivo, as máquinas são meios de apropriação da natureza. Se observadas como capital fixo, elas também são uma medida do desenvolvimento da objetivação das forças produtivas sociais. Nas palavras de Marx,

O desenvolvimento do capital fixo revela até que ponto o conhecimento ou o knowledge social geral se converteu em força produtiva imediata e, portanto, até que ponto as próprias condições do processo social de vida passaram ao controle do general intellect e foram remodeladas conforme o mesmo. Até que ponto as forças produtivas sociais são produzidas não apenas na forma do conhecimento [in der Form des Wissens], como também enquanto órgãos imediatos [unmittelbare Organe] da práxis social, do processo real de vida (MARX, 1973, p. 230).

O capitalismo contemporâneo – matéria-prima da transição socialista – é muito diferente do capitalismo manufatureiro dominante no século XX possuindo diversas características da grande indústria. A transição para o socialismo, conforme Marx, depende desta grande indústria estimulada pelo conhecimento cooperativo e compartilhado, e não da manufatura com trabalhadores manuais a lá Charles Chaplin.
O socialismo nascerá da transformação do capitalismo, vamos partir da sociedade que o capitalismo criou. Hoje o trabalho imaterial, cognitivo ou intelectual estimulador do General Intellect se apresenta como um dos componentes principais do capitalismo. Sua política busca a todo custo privatizar este General Intellect (Intelecto Coletivo). Talvez o melhor exemplo deste processo de privatização do Intelecto Coletivo nasceu da imbricação das redes informáticas e telemáticas na internet: o ciberespaço com seu fomento generalizado de regras de conduta que não violem a “propriedade intelectual” além do controle de dados, nomes, relações, interesses, conhecimento, fotos, músicas, e-mails, hábitos de navegação, conversas, imagens, plataforma de uso e toda forma de criação. O ciberespaço capitalista funciona como um gigantesco Shopping Center: uma nova forma de apropriação do espaço com novos hábitos para fugir dos aspectos “negativos” da realidade. Cria-se então um espaço virtual ideal que concentra inúmeras opções de consumo para os mais variados gostos e necessidades acabando por se tornar uma unidade simbólica de reprodução do capital. Seu formato constituído em redes “rizomáticas” e “desterritorializadas” em expansão ilimitada com processos de trabalho amplamente fragmentados não deve nos enganar: o ciberespaço não é um espaço público e aberto, mas privado com o objetivo de capturar, manipular e privatizar o substrato subjetivo da interatividade virtual e o intelecto coletivo. A materialidade do ciberespaço gera a ilusão abstrata de ser um espaço livre, sem as mediações capitalistas reais disseminando a idéia de que haja espaços puramente tecnológicos, sem envolvimento com os processos produtivos. Este é o espaço fundamental para o processo corrente que Arakin Monteiro chama de ciberespoliação:

O processo de ciberespoliação ganhou amplitude, sobretudo, com o desenvolvimento dos mecanismos de buscas, no bojo de uma profunda reestruturação produtiva da Internet comercial após a queda da Nasdaq em 2000. Valorizadas mais pela especulação financeira que pela sua capacidade de auferir lucros reais, após o crash da bolsa tornou-se necessário repensar os modelos dos empreendimentos. A ciberespoliação surge como a forma contraditória encontrada para dar escoadouros lucrativos aos excedentes de capital investidos no setor. Ela permitiu ao capital expandir suas formas de dominação e controle sobre a reprodução social, ao transformar a própria interatividade da rede em um ativo capaz de dar-lhe sustentação e lucratividade, ou seja, transformando-a em uma força produtiva do capital.

A virtualização radical da vida social “real” no World Wide Web tem como suposto a idéia que a rede é um organismo “natural” que se desenvolve por si mesmo fora da censura “estatal” da internet. O ciberespaço seria aparentemente dotado de uma lógica própria com a suspensão do conjunto das relações de poder e de classe. Mas o que esconde esta naturalização do ciberespaço é que sua “substância” advém de uma massa acumulada de trabalho morto sob a forma de capital fixo virtual. Na realidade, o próprio ciberespaço poderia ser considerado, assim como o capital fixo, “produto do trabalho, um certo quantum de trabalho em uma forma objetificada”. Ao invés de um espaço de entretenimento social externo aos mecanismos privados do mercado, o ciberespaço está profundamente conectado com a grande indústria como um todo. Sobre esse processo de privatização progressiva do ciberespaço global, como salienta Zizek, “não existe nada de “natural” no fato de que duas ou três empresas, em posição quase monopolista, possam determinar os preços a seu bel-prazer, além de filtrar os programas que fornecem, dando a essa “universalidade” nuances específicas que dependem de interesses comerciais e ideológicos (2011, p. 10).
Sem dúvida uma das grandes lutas socialistas contemporâneas gira em torno da organização do cyberespaço. O paradoxo é que quanto mais comunal é o espaço virtual maior o perigo de este espaço ser privatizado. Além disso, atividades como produção de idéias, códigos, textos, programas, figuras, informação, etc. alarga o vasto domínio dos “comuns”: conhecimento compartilhado, formas de cooperação e comunicação que não podem mais ser contidos na forma da propriedade privada já que seus produtos não são objetos materiais, mas novas relações sociais (interpessoais), produção direta de vida social que reconfigura o acúmulo de conhecimento produzido pela humanidade, ou seja, tudo que “a humanidade” sabe. É a partir deste conhecimento acumulado que somos capazes de “inventar” coisas e idéias novas que vão por sua vez também fazer parte do Intelecto Coletivo. Um processo de transição ao socialismo além da “desprivatizar” o Intelecto Geral deve criar mecanismos para estimular sua produção, expansão, filtragem e consumo experimentando propriedades cooperativas e públicas para quebrar o monopólio da “propriedade intelectual” que busca alavancar grandes rendas pela apropriação privada de conteúdos sociais que são universais – vide a Microsoft que cerceia a criação e acesso ao conhecimento. A expansão do uso do software livre – como na experiência venezuelana e outras – entra nesta linha de desprivatizar o acesso ao conhecimento ao permitir seu uso, estudo e distribuição para generalizar novas produções de conhecimento ao permitir modificá-lo além de atuar como um instrumento de integração social.
É possível dizer que qualquer projeto socialista no século XXI depende da descentralização do conhecimento e do estímulo ao desenvolvimento de meios para fazê-lo com um planejamento flexível cortando as relações de dependência com o imperialismo virtual que cerceia o acesso aos “comuns”. O planejamento do socialismo do século XXI será estimulado pelo processo de socialização e descentralização do Intelecto Coletivo – internet rápida de graça e irrestrita ao menos, software livre, filtragem dos conteúdos virtuais, etc. As formas de propriedade privada entram em contradição com o Intelecto Coletivo e qualquer política socialista deve aprofundar esta tensão com crescente expansão e descentralização do conhecimento. 
            A dinâmica das diversas formas de propriedade num processo de transição socialista deixa claro que a propriedade privada não seria o fator determinante numa economia de mercado predominantemente socializada. Esse “socialismo de mercado” é uma forma de superar o fetichismo do mercado baseado na propriedade privada que governa o mundo capitalista aprofundando a coexistência de formas de propriedade estatal, pública não-estatal, cooperativas, empreendimentos de economia solidária e de propriedade privada com diversos mecanismos de controle dos trabalhadores, consumidores e técnicos descentralizando os poderes de decisão e a produção/circulação de conhecimentos de forma material e imaterial. Superar a antinomia falsa entre planificação socialista e o mercado faz parte deste processo de transição, ainda mais quando os objetos veiculados pelo mercado são materiais e imateriais. Qualquer socialismo de mercado depende de ampla e complexa planificação. Um socialismo de mercado não é uma convivência pacífica com o mercado dominado pelo capitalismo. Não devemos confundir mais capitalismo ou “livre iniciativa” com mercado. Qualquer socialismo demanda formas de controle dos elementos que produzem o mercado. Devemos mostrar que é possível um mercado sem a dominação da propriedade privada. Claro que um dos objetivos do socialismo é suprimir o mercado, mas isso não se dará de maneira imediata por decreto, estatização total ou isolamento num só país, mas pelas próprias contradições do mercado mundial. É a partir daí que podemos buscar elementos mínimos para elaborar o projeto do socialismo do século XXI que, felizmente, ainda está trilhando apenas seus primeiros passos.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Notas sobre a luta de classes no Brasil



O Brasil vive um momento de radicalização na base da sociedade, abortada pela falta de canais e instrumentos que organizem politicamente este tipo de rebelião popular fruto das contradições do capitalismo recente.
            Uma das respostas que estão sendo dadas pela classe trabalhadora nesta situação é a ação direta: seja por greves, paralisação de vias públicas ou ocupações de terras urbanas e rurais.
            Está cada vez mais claro que o acúmulo de forças da “esquerda negociadora” e das disputas institucionais está superado, a não ser quando o objetivo for a ruptura com a ordem. Isso num momento em que se encontra latente a possibilidade da direita mais ordinária e golpista voltar ao poder, o que cedo ou tarde vai acontecer, as práticas institucionais passam a conter as transformações, empurrando o movimento popular para trás.
Nossa dificuldade é que diante da enorme dificuldade do movimento sindical em organizar no espaço de trabalho um segmento crescente de trabalhadores (desempregados, temporários, terceirizados, trabalhadores por conta própria etc.), o espaço em que milhões de trabalhadores no Brasil e em outros países tem se organizado e lutado é o território, em especial na periferia das grandes cidades. Na atual dinâmica da luta de classes, o local das verdadeiras lutas contra a ordem social não é no campo ou na selva, mas na periferia, o território da nova classe trabalhadora. É por isso que desenvolver formas mínimas de auto-organização nas periferias é nosso grande desafio urgente.
Não é a toa que talvez a tendência mais explosiva da luta de classes no Brasil no próximo período seja a expansão de ações policias contra os protestos que interditam ruas, estradas e prédios públicos. Reconhece-se que o avanço destas ocupações interrompem o serviço de transporte público e de cargas causando danos importantes ao capital. Será cada vez mais usual o envio de forças armadas com o objetivo de “contenção dos trabalhadores”, seja a Força Nacional, Polícia Militar, Comando de Operações Especiais, bombeiros, agentes da Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal entre outros órgãos de segurança. Em suma, o próximo período será marcado por uma rígida atuação policial durante os protestos em vias públicas.
            As classes populares no Brasil ainda necessitam de água, luz, esgoto, moradia e infra-estrutura e estão colocando-se em luta para socializar a riqueza.  A combinação e unidade entre esses sujeitos, demandas e ações tem seu próprio ritmo e mobilização. Nosso dever é saber transformar suas reivindicações em ações massivas, independentes do governo e seus correligionários. Isso só surgirá, entretanto, se retomarmos a velha lição de organização junto à base popular, em seu dia a dia, em lutas diárias e miúdas. Somente as grandes mobilizações, o estímulo a todas as formas de luta de massa por necessidades imediatas e o trabalho de base podem alterar nossa situação diante da nova dinâmica da luta de classes.