Como sustenta Wladimir Pomar, nas condições em que foi eleito, o governo Lula tinha
como suas principais tarefas domésticas utilizar as forças capitalistas
predominantes no país para desenvolver a indústria, a agricultura e os
serviços, reconstruir a infra-estrutura de energia, transportes e comunicações
e a infra-estrutura urbana, estimular a criação de novos empregos, criar
mecanismos de redistribuição de renda e de democratização da propriedade
agrária além de dar maior musculatura ao mercado interno brasileiro. Essas
tarefas, feitas muito parcialmente, não consolidaram uma reversão completa do caminho trilhado pelos
governos neoliberais, por mais que algumas mudanças importantes tenham
ocorrido. Por exemplo, passamos da estagnação para o crescimento econômico.
Saímos da privatização das empresas públicas para a consolidação das empresas
estatais, que sobraram do processo de privatização, e para as parcerias
público-privadas, com concessões ao setor privado. O desmantelamento do
planejamento estatal foi deixado de lado e há um processo de tímida retomada do
planejamento macroeconômico e macro-social. Considera-se importante a
estratégia governamental de estimular o desenvolvimento capitalista, ao mesmo
tempo em que aproveita essa aliança com setores da burguesia nacional e
internacional para adotar mecanismos de “democratização do capital”,
multiplicação das formas de propriedade e produção (estatais, públicas,
solidárias, etc.) e instrumentos mais efetivos de redistribuição constante da
renda e de elevação do poder de compra e da educação das camadas mais pobres da
população. Para a esquerda que encampa este projeto democrático-popular, isso
ocorre porque a luta pelo socialismo na América Latina não podia
minimizar as chamadas “tarefas pendentes” da inconclusa revolução
democrático-burguesa. Seu papel seria a saída para estimular o capital
desenvolver forças produtivas ao conseguir ampliar espaços de acumulação,
diversificar a propriedade dos meios de produção, ampliar os destinos do
comércio exterior, reorganizar a capacidade de planejamento do estado e a
efetivação de políticas que combinam a crescente inserção de camadas
pauperizadas da população no mercado com o acréscimo do crédito e do consumo.
Entretanto, como contingência (ou necessidade?) deste caminho, junto com outras
implicações sociopolíticas, a “linha de menos resistência” retrai
progressivamente o projeto estratégico socialista a políticas públicas voltadas
ao atendimento parcial de algumas demandas do programa democrático-popular.
Talvez seja por isso que Pomar saliente que:
Diante das crises passadas e da atual, talvez tenha chegado o momento de
o PT retomar o conceito da luta de classes como parte da realidade e tirar daí
todas as conseqüências. Sua perspectiva de se manter à frente do governo para,
pelo menos, implantar as reformas democráticas e sociais demandadas pela maior
parte da sociedade brasileira depende de os petistas não abrirem flancos para
os ataques dos representantes burgueses. A aliança com uma parte da burguesia
continua sendo indispensável para derrotar os setores mais reacionários e
inimigos principais do povo brasileiro. Mas a esquerda não pode confundir seus
métodos com os métodos da burguesia, seja aliada ou não. O grande esforço atual
da direita burguesa consiste em fazer o povo acreditar que os métodos do PT não
diferem em nada dos métodos dos seus representantes, tema que já esteve
presente com muita força na última campanha eleitoral. Se conseguirem sucesso
nesse convencimento, terão dado o primeiro passo sério para retirar o PT e a
esquerda do governo.
Mas como se antecipar a este processo e avançar no programa
democrático-popular? Continuando com
Pomar:
para o governo Dilma não bastará a consolidação da política ou do
sistema de planejamento, resgatado pelo governo Lula. É preciso transformá-lo,
além disso, numa política ou num sistema de elaboração de projetos
estruturantes. Isto é, projetos que influenciem positivamente o desenvolvimento
do conjunto das forças produtivas, a exemplo da educação e dos setores
energético, de transportes, telecomunicações, indústrias básicas e ciências e
tecnologias [...] O desafio seria injetar no planejamento estatal brasileiro um
conteúdo que seja o oposto do planejamento do período ditatorial.
Para dar conteúdo a esse sistema de planejamento, Pomar salienta que a
sociedade brasileira necessita atualizar o projeto democrático-popular
apontando de forma mais consistente, no âmbito econômico, “para maior
participação das empresas estatais, em especial nos setores estratégicos, e
deve estimular a ampliação massiva do capitalismo democrático, isto é, das
micros e pequenas empresas privadas, urbanas e rurais. O que não significa
abandonar a política de reforço das empresas privadas, para que adensem as
cadeias produtivas industriais e agrícolas, e desenvolvam mais rapidamente as
forças produtivas do país, embora seja necessária uma ação permanente do Estado
para evitar que elas tornem o mercado mais caótico do que normalmente é”. O raciocínio de Pomar nos leva a
crer que o desafio do governo Dilma é a criação de uma espécie de “Plano de
Desenvolvimento Nacional Pós-Neoliberal” – cujo PAC é apenas um ensaio
geral. Esta seria uma transformação
estratégica que apontaria para uma superação do neoliberalismo definitivamente.
Sem a efetivação desse plano a indução do Estado no caos do mercado terá apenas
efeitos conjunturais, nunca conseguindo superar as determinações do
neoliberalismo e sua correlação de classes.
Tentaremos
esboçar uma pequena lista de iniciativas que poderiam ser adotadas caso se
firme a vontade de abandonar definitivamente o neoliberalismo no Brasil
considerando a atual correlação de forças e possibilidades econômicas,
burocráticas e administrativas. Ela se propõe apenas a identificar alguns
pontos prioritários no qual requerem medidas.
1) Adotar
políticas macroeconômicas coerentes, que mantenham a inflação baixa, utilize os
juros para incentivar os investimentos e trate do câmbio como instrumento de
política de desenvolvimento industrial. A política de crescimento necessita se transformar em política de
desenvolvimento industrial, científico e tecnológico junto com políticas de
apoio à existência de formas econômicas capitalistas, micro e pequenas empresas
além do reforço da propriedade estatal e pública.
2) Concentração
dos investimentos estatal em áreas estratégicas e elevação da taxa nacional de
investimentos para 25% a 30% do PIB levando em conta a criação de empresas que possam aplicar as terras-raras
brasileiras em processos e produtos em cadeias produtivas do mais alto valor
agregado aeronáutica, automobilística, energias renováveis, tablets, entre
outras, além do desenvolvimento de áreas relacionadas a biogenética,
biotecnologia, computação, etc.
3) Políticas de
construção de uma infra-estrutura moderna e de instalação de plantas de
fabricação dos setores produtivos estratégicos em conjunto com distribuição da
riqueza, cujos ramos principais são a poupança para a reprodução ampliada do
processo produtivo, os salários, a educação, a saúde e as demais demandas
sociais.
4) É
necessário elaborar políticas que guiem os investimentos estrangeiros,
impulsionando o adensamento das cadeias produtivas industriais e apenas
aceitando os empreendimentos com novas ou altas tecnologias associando-se em
joint venture com empresas estatais ou cooperativas. Também é crucial uma
política de importações que facilite a entrada de mercadorias que contribuam ao
desenvolvimento industrial. Sem regras claras para investimentos e importações
que busquem elevar as cadeias produtivas nacionais, as empresas brasileiras não
conseguiram disputar os caminhos competitivos do mercado mundial. Sem o adensamento das cadeias produtivas e da infra-estrutura,
maior participação das empresas nacionais nos setores monopolizados por
empresas estrangeiras e investimentos na construção
de parques industriais de alta tecnologia, o Brasil será tragado pela crise
internacional no primeiro tropeço.
5) Ampliação de ações anti-monopolistas
visando o aumento da produtividade e competitividade brasileira. O capital não
pode ficar dominantemente personificado por capitalistas individuais e
coletivos. Este plano depende da articulação competitiva entre os capitais
estatais, associações público-privadas, público-público, público-cooperativas e
cooperativas. Esse processo deve acabar deixando claro que a propriedade
privada capitalista dos meios de produção não é necessariamente aquela mais
produtiva e dinâmica. Quanto mais dinâmicas forem as iniciativas da propriedade
coletiva, pública e associativa melhor. Isso com políticas macroeconômicas
com capacidade de remediar as distorções do mercado pelo poder dos meios de
produção públicos e estatais que devem estar a prova de constantes reformas
modernizadoras para ganharem eficiência econômica e servir como instrumentos
chaves para um planejamento macroeconômico capaz de dirigir e regular o
mercado.
6) Expansão de corredores para melhorar a logística da exportação de
commodities e utilizar o excedente comercial para políticas industriais,
inclusive para os assentamentos da reforma agrária que iriam frear o aumento da
inflação puxada pelo aumento do preço dos alimentos.
7) Um novo modelo
agrícola. Desde 2002 estamos vendo o aumento do preço de diversas commodities
no mercado mundial. Por trás desse aumento encontra-se o inter-relacionamento
de diversas causas como a maior demanda por parte de grandes países asiáticos –
China e Índia – e o deslocamento da produção de algumas culturas, como do milho
para a produção de biocombustíveis. O Brasil entrou surfando nessa onda. Entre
2000 e 2007, por exemplo, as exportações brasileiras de soja passaram de 11,5
milhões para 25,5 milhões de toneladas. A exportação de milho passou de 700 mil
toneladas para 11 milhões. A partir do início da crise hipotecária
norte-americana em agosto de 2007 houve uma grande fuga de capitais das
aplicações relacionadas aos derivativos dos contratos hipotecários em direção
aos mercados internacionais de commodities, em busca de ganhos ou redução de
perdas. As commodities tornaram-se investimentos atraentes ante a menor
rentabilidade dos ativos financeiros, resultante tanto dessa depreciação como
das turbulências dos mercados financeiros das economias centrais. Assim com a
eclosão da crise financeira a partir da deterioração do mercado de hipotecas
subprime nos Estados Unidos em meados de 2007, e seu espraiamento para os
demais segmentos do mercado financeiro, doméstico e internacional, os fundos de
investimento especulativos (os chamados hedge funds) e outros investidores
institucionais (como os fundos de pensão) direcionaram suas apostas para os
mercados de commodities e seus derivativos. Os recursos alocados pelos
investidores institucionais nos mercados futuros de commodities saltaram de US$
13 bilhões para US$ 260 bilhões entre o final de 2003 e março de 2008, enquanto
os preços das 25 commodities subiram, em média, 183% nesses cinco anos. Essa
crescente "financeirização" gerou hiperinflação nos preços dos ativos
financeiros nesses mercados internacionais, em especial petróleo e alimentos.
As pressões inflacionárias tomaram as cotações de soja, milho e trigo, como
forte impacto no preço de carnes, ovos e leite. Neste próximo período, portanto, os preços das commodities podem continuar superando
até as ações de empresas de grande porte, como JBS, Petrobrás e Vale. As
principais commodities cotizadas são café, boi gordo, algodão, açúcar, milho,
trigo e soja, além do pico do petróleo. A situação, por sua gravidade, complexidade
e emergência, exige estratégia ambiciosa para a agricultura brasileira tendo
como foco uma maior oferta de alimentos, equilibrada com a procura crescente, e
um combate as oligarquias transnacionais que fixam o alto preço dos alimentos.
Conforme o Dieese, durante os últimos anos, a alimentação fora do domicílio
registrou expressivo aumento de preços devido a dois fatores: (1) aumento do
emprego, da massa de salários e consequente elevação na demanda por refeições
fora de casa e (2) aumento no preço dos alimentos, fato que também provocou
aumento custo da alimentação no domicílio. A alimentação no domicílio registrou
grande aumento de preços devido, basicamente, ao aumento no preço dos alimentos
e, de forma colateral, à elevação do preço do gás de botijão, derivado do
petróleo. Por isso que
precisamos de um novo modelo agrícola baseado na pequena e na média
propriedade, na prioridade à produção de alimentos para o mercado interno, na
criação de uma nova matriz produtiva no campo, na adoção de técnicas de
produção que respeitem o ambiente, sem agrotóxicos, mas com industrialização. Qualquer
dado confiável aponta que a agricultura familiar é responsável pela maioria da
produção nacional voltada para alimentar a população e que, ao mesmo tempo, são
os alimentos que representam o principal componente que impulsiona a inflação.
O governo Dilma está procurando se antecipar em relação as eventuais altas nos
alimentos durante o próximo período dando um reforço no caixa da Companhia
Nacional de Abastecimento (Conab) para que em 2012 amplie fortemente as compras
diretas e as aquisições da nova safra de grãos e cereais. Seu objetivo é adquirir
alimentos diretamente do produtor a preços de mercado, garantindo boa
remuneração no auge da colheita, e formar estoques estratégicos maiores para
enfrentar uma eventual elevação das cotações ao longo da entressafra. Para o
próximo período estas medidas anti-inflacionárias devem ser acompanhadas por
outra frente crucial: uma política de industrialização dos assentamentos de
Reforma Agrária que impulsionaria o aumento da produção para o mercado interno.
Para isso também é necessário uma política de barrar a expansão da compra de
terras pelo agronegócio, assentar milhares de acampados e sem-terra, estimular
o crédito e o financiamento para dar início a produção de alimentos, retirar
taxações pelo uso da terra e comercialização de produtos, levar estrutura
básica e infra-estrutura a projetos dos assentamentos, assessoria técnica para
desenvolvimento de pesquisas de sementes e instituir todas as terras devolutas
do país como território de reforma agrária.
Com
certeza outras medidas seriam cruciais, como uma reforma tributária e da comunicação
social, regulação regional dos mercados sul-americanos e uma política de
segurança voltada contra as milícias e seu respaldo político-administrativo-jurídico,
mas é mais importante ainda frisar que esse programa geral não exclui as
limitações próprias a estratégia de poder contida na processualidade da aplicação
deste programa “democrático-popular” que enfatiza o papel do Estado na condução
da economia e despolitiza a organização popular e dos trabalhadores para o aprofundamento da luta de classes
e amortece o povo por estabelecer somente negociações nas quais o Estado é o
interlocutor entre a luta social e o capital. A revolução passa a ser
desnecessária. Por mais que o governo “democrático e popular” possa desenvolver
as forças produtivas, isto é, as ciências, tecnologias, cadeias industriais,
infra-estrutura de transportes, energia e comunicações e a capacidade
educacional e técnica da força de trabalho, e quanto mais ampliar a presença da
propriedade estatal e pública na sociedade brasileira, estas condições exacerbam
a situação paradoxal de tornar o período pós-revolucionário mais frutífero ao
mesmo tempo em que submete toda a estratégia socialista aos limites da legalidade
da democracia-liberal. É contraditório que a aplicação deste programa
democrático-popular no quadro da democracia-liberal não leva necessariamente a
uma elevação do padrão da luta de classes no Brasil por mais que faça avançar o
capitalismo. Criam-se condições para um futuro socialista ao se desenvolver as forças
produtivas, mas se amplia a inviabilidade da revolução socialista como um movimento
em direção à socialização da produção, da propriedade e do poder político. Para
lidarmos corretamente com esta contradição histórica temos o desafio de
reconstruir a estratégia da revolução socialista brasileira. Isso corresponde,
em primeiro lugar, ao desconfortável fato de que algumas formas de ação
anteriores estão objetivamente bloqueadas, impondo reajustes profundos na
estratégia como um todo. Como essas mudanças exigidas são muito drásticas, é
mais provável que se prefira seguir a Realpolitik sem revolução ainda por um
tempo considerável e que somente
quando as opções dadas pelo consenso democrático-popular se esgotarem é que se
pode esperar por uma virada para uma solução radicalmente diferente. Mas é
necessário estar preparado. O processo revolucionário brasileiro vai se
construir no interior das fissuras da prática e da ideologia democrático-popular,
não é externo a ele como algo completamente novo que caia dos céus.
Agora, sob a égide do capitalismo
monopolista, o programa democrático-popular torna-se progressivamente um
enclave no avanço da luta socialista. Seu gigantesco pacto de poder inviabiliza
o horizonte socialista, ainda mais com o aprofundamento das contradições do
desenvolvimento recente do capitalismo brasileiro. É por isso que quando bater
o teto do programa democrático e popular sob a estrutura do “presidencialismo
de coalizão” a ofensiva socialista deve estar organizada – esperemos que com a
ajuda de alguns setores do PT. A nova classe proletária brasileira (produto da expansão
capitalista recente e impulsionada pelas obras de infra-estrutura, Copa e
Olimpíadas) junto com segmentos do subproletariado sem voz política,
mobilizações camponesas, servidores públicos, movimentos populares urbanos na
periferia, igrejas de base, dos povos indígenas, dos desempregados e de um novo
movimento estudantil progressista deverá renovar e formular sua estratégia, suas
organizações, métodos de luta comum e programa político. A combinação explosiva
desses sujeitos históricos tem seu próprio ritmo e mobilização e deverá saber
transformar suas reivindicações em ações massivas, independentes do governo e
seus correligionários. Isso só surgirá, entretanto, se retomarmos a velha lição
de organização junto a base popular, em seu dia a dia, em lutas diárias e
miúdas.
Os socialistas têm que considerar que
estão numa situação inesperada e que precisam se reconstruir encontrando
estratégias que não estão previstas em nenhum dos manuais marxistas. Somente
as grandes mobilizações, o estímulo a todas as formas de luta de massa por
necessidades imediatas e o trabalho de base podem alterar essa situação. Como salienta Ademar Bogo, o período da “esquerda negociadora” e das disputas
institucionais, isoladas, para acumular forças aproveitáveis para o processo
revolucionário, por si só, está superado; já não há o que negociar a não ser a
manutenção das conquistas anteriores, nem o que disputar no campo da
institucionalidade, quando o objetivo não for a ruptura com a ordem. Essas práticas
se desatualizam e converteram-se em fórmulas que, além de conter as
transformações, empurram o movimento das mudanças para trás.
A aliança da esquerda em torno do
projeto democrático popular está em crise, mas ainda não construímos nenhum
projeto político que o supere.
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