Conjuntura internacional e o papel do Brasil
Hoje o sentimento geral impulsionado pelas mídias e pelos governos é que vivemos num mundo pós-crise. Afinal, pacotes econômicos na escala de trilhões de dólares foram feitos urgentemente para o salvamento de bancos e o restabelecimento do crédito. Entretanto, num contexto amplo dos países centrais, incluindo a Europa e o Japão, a recessão, o endividamento público, o colapso fiscal e os planos de austeridade tem se generalizado. Entretanto, se cortarem os auxílios estatais aos bancos o fantasma da depressão reaparecerá. Todos os presidentes e ministros estão atrapalhados e oscilam entre a continuidade do socorro ou a introdução de ajustes fiscais drásticos. Encontramos uma conjuntura financeira muito complicada com altíssimo desemprego e sem perspectivas progressistas claras para o avanço das forças populares na construção de uma alternativa radical.
Nesse panorama a crise global apresenta algumas tendências claras: estamos vendo 1) um processo em que centro capitalista entra em recessão e que as conquistas sociais do pós-guerra estão sendo – e tem que ser – destruídas; 2) está havendo um terrível empobrecimento da periferia mais pobre do planeta com a multiplicação de desastres sociais que se generalizam com o encarecimento dos alimentos e a expropriação dos recursos naturais e 3) o ascenso de economias intermediárias (semiperiferia?) como China, Índia, Brasil, África do Sul e Rússia (reemergente). São países com experiência prévia de dominação regional ou com grandes recursos demográficos e naturais. Existem diversas denominações para descrever estes novos atores (emergentes, BRICS), porém o mais importante é o aumento de seu poder de barganha geopolítica no sistema internacional. De qualquer forma, esses países não atuam em sintonia com projetos de emancipação popular. Cada subpotência destas tende ainda a privilegiar seus próprios interesses regionais em detrimento de uma ação conjunta e expressam, em última análise, os interesses de setores enriquecidos que aspiram a consolidar seus negócios e seu poder com ações no exterior.
Em síntese, na atual fase da crise existem três mudanças de largo alcance: uma reorganização geral das economias mais desenvolvidas, um maior empobrecimento da periferia e o ascenso de vários países intermediários com características subimperialistas. Ruy Mauro Marini costumava definir o subimperialismo como a “forma que assume a economia dependente ao chegar na etapa dos monopólios e capital financeiro” desdobrando-se em 1) exercício de uma política externa expansionista relativamente autônoma; 2) uma composição orgânica média na escala mundial dos aparatos produtivos nacionais capaz de apontar nos mercados externos como forma de resolver as contradições internas e; 3) contextos de luta de classes em que o que as alianças da burguesia se dão pela ampliação do mercado externo.
No caso do Brasil esse processo coincide com: 1) orientação da política externa brasileira de maior destaque internacional – busca pelo assento no Conselho de Segurança da ONU, comando das tropas MINUSTAH para a estabilização no Haiti desde 2004; 2) a consolidação de uma fração local da burguesia que retoma o interesse no mercado externo por meio da exportação de capitais, principalmente na forma de investimentos diretos. O aumento da composição orgânica das empresas brasileiras transnacionais ampliou a escala da massa de valor em busca de valorização, recolocando a insuficiência do mercado interno para a continuidade do processo de acumulação. Esse processo se reflete pela brusca elevação dos Investimentos Diretos brasileiros no exterior que acumulou entre 2000 e 2008 mais de sete vezes o volume acumulado em toda a década de 1990 tendo como espaço privilegiado a América do Sul. Essa internacionalização da burguesia concentra-se setorialmente em recursos naturais (Gerdl, Vale, Petrobrás, Votorantim), engenharia e construção civil (Odebrecht, Andrade Gutierrez) e manufaturas (Marcopolo, Sabó, Embraer, WEG e Tigre). A expansão das transnacionais brasileiras caracteriza-se por posições monopolistas. Por exemplo, em 2006 a Petrobrás correspondia a 17% do PIB da Bolívia, grandes produtores brasileiros controlam 95% da produção de soja paraguaia, Camargo Correa controla 50% do mercado de cimento argentino e FrigoBoi controla o mercado de carnes, no Peru a Votorantim controla 62% da produção de zinco e 3) aumento dos conflitos envolvendo a burguesia brasileira em países da América do Sul – empresários da soja em terras paraguaias e bolivianas, Petrobrás na Bolívia, Odebrecht no Equador.
O governo Lula procurou trabalhar pelo fortalecimento das relações Sul-Sul a fim de diversificar os destinos das exportações brasileiras. Enquanto a burguesia industrial interna se beneficia com o aumento do acesso aos mercados de países periféricos, assim como a instalação das suas empresas nestes países, a burguesia agrária (agrobusiness) depende em grande medida dos mercados dos países imperialistas tendo como destino os EUA, Europa e China. É uma condição contraditória de dependência e conquista, de servidão e imposição.
Segundo estimativas esses países chamados de “emergentes” (ao imperialismo) terão um ritmo de crescimento três vezes maior em relação aos países mais desenvolvidos apontando que países como China, Brasil, Rússia, Índia e África do Sul representarão cerca de 80% da expansão global em 2011. Eles manterão seu dinamismo e seriam pólos de crescimento em meio a um ambiente internacional recessivo. Enquanto os países mais desenvolvidos crescerão cerca de 2,5% em média, os BRICS registrarão expansão de 7,4%. O Brasil tem a projeção de 4,5% e a China de 10% enquanto a zona do euro e o Japão crescerão algo entre 1,5 e 2%.
Esse processo está levando a um resultado paradoxal: o preço de alimentos e matérias primas estão aumentando e as manufaturas estão baixando. É um fenômeno de inflação e deflação ao mesmo tempo.
Da crise imobiliária à crise dos alimentos
A população mundial é de 6,5 bilhões de pessoas. Desse total, utilizando uma noção de “fome” extremamente rasa, cerca de um bilhão estão subalimentadas. Cerca de três bilhões de pessoas vivem em áreas rurais e estima-se que deste contingente 800 milhões passam fome. De acordo com dados da FAO, a distribuição dos famintos do mundo se encontra da seguinte forma: 642 milhões nas áreas da Ásia e do Pacífico; 265 milhões na África Subsaariana; 53 milhões na América Latina e Caribe; 42 milhões no Oriente Médio e 15 milhões nos países desenvolvidos.
Desde 2002 estamos vendo o aumento do preço de diversas commodities no mercado mundial. Por trás desse aumento encontra-se o inter-relacionamento de diversas causas como a maior demanda por parte de grandes países asiáticos – China e Índia – e o deslocamento da produção de algumas culturas, como o do milho para a produção de biocombustíveis. O crescimento da China, Índia e outros países “emergentes” exercem uma enorme pressão de demanda, cujos principais sintomas se manifestaram pela elevação dos preços de matérias-primas minerais, do petróleo e, mais recentemente, dos alimentos.
A valorização das commodities agrícolas tem efeitos distintos para os diversos atores internacionais. O FMI destaca o potencial da promoção da agroindústria dos países exportadores. Por isso, o Brasil entrou surfando nessa onda. Entre 2000 e 2007, por exemplo, as exportações brasileiras de soja passaram de 11,5 milhões para 25,5 milhões de toneladas. A exportação de milho passou de 700 mil toneladas para 11 milhões.
A trajetória de alta nos preços teve uma subida considerável em 2007 e no primeiro semestre de 2008. Os maiores incrementos foram nos preços dos metais, em especial do minério de ferro, cobre e estanho. No segundo semestre de 2007, petróleo e alimentos passaram a registrar fortes aumentos de preço e volatilidade. A cotação do barril do tipo Brent atingiu recorde histórico no dia 11 de julho de 2008 alcançando US$ 147,00 no mercado de Londres.
A partir do início da crise hipotecária norte-americana em agosto de 2007 houve uma grande fuga de capitais das aplicações relacionadas aos derivativos dos contratos hipotecários em direção aos mercados internacionais de commodities, em busca de ganhos ou redução de perdas. As commodities tornaram-se investimentos atraentes ante a menor rentabilidade dos ativos financeiros, resultante tanto dessa depreciação como das turbulências dos mercados financeiros das economias centrais. A atratividade das commodities como forma alternativa de valorização da riqueza aumentou ainda mais com a redução da taxa de juros nos Estados Unidos, a partir de setembro de 2007. Com a eclosão da crise financeira a partir da deterioração do mercado de hipotecas subprime nos Estados Unidos em meados de 2007, e seu espraiamento para os demais segmentos do mercado financeiro, doméstico e internacional, os fundos de investimento especulativos (os chamados hedge funds) e outros investidores institucionais (como os fundos de pensão) direcionaram suas apostas para os mercados de commodities e seus derivativos. A forte elevação das cotações dos cereais (milho, soja e trigo) e do petróleo na Bolsa de Chicago, ao longo do segundo semestre de 2007 e primeiro semestre de 2008, reflete, pelo menos em parte, esse movimento de busca de alto retorno nos mercados futuros de commodities para compensar as perdas com os ativos financeiros. Assim os investidores institucionais alocaram parcela crescente de suas carteiras em investimentos nos mercados futuros de commodities, que negociam 25 commodities (doze produtos agropecuários, seis tipos de petróleo e derivados, cinco metais básicos e dois metais preciosos). De um lado, esses mercados de commodities oferecem possibilidade de retorno elevado ante a menor rentabilidade dos ativos financeiros tradicionais em razão tanto da queda dos juros americano como da depreciação do dólar. De outro lado, fornecem oportunidade de diversificação de risco, uma vez que esses mercados não estão historicamente correlacionados com os mercados de títulos e ações. Os recursos alocados pelos investidores institucionais nos mercados futuros de commodities saltaram de US$ 13 bilhões para US$ 260 bilhões entre o final de 2003 e março de 2008, enquanto os preços das 25 commodities subiram, em média, 183% nesses cinco anos. Essa crescente "financeirização" gerou hiperinflação nos preços dos ativos financeiros nesses mercados internacionais, em especial petróleo e alimentos. As pressões inflacionárias tomaram as cotações de soja, milho e trigo, como forte impacto no preço de carnes, ovos e leite. O índice de preços de alimentos da ONU/FAO, que engloba 55 commodities agrícolas, apresentou alta de 57% entre março de 2007 e março de 2008.
Outro fator central para a elevação dos preços internacionais dos produtos primários é a baixa taxa de juros norte-americanas e o enfraquecimento do dólar, moeda na qual esses produtos são cotizados e comercializados. Diante da desvalorização do dólar - tendência também do euro e do yuan - os produtores tendem a elevar os preços para neutralizar as perdas cambiais.
Como corolário, talvez o marco mais interessante do próximo governo será a continuação da crescente convergência econômica entre Brasil e China. A potência asiática impulsiona o avanço dos setores de menos valor agregado brasileiro tendo como resultado mais imediato a maior dependência das exportações. A China produz uma política econômica que torna direta a relação entre expansão da manufatura e da grande indústria com a elevação das importações de produtos primários. Como resultado o preço desses produtos mantêm-se valorizados condicionando a grande indústria de países como o Brasil.
Enquanto as importações totais do Brasil de produtos dos EUA passaram de 23,21% em 2001 para 14,96% do PIB em 2010, as exportações da China ao Brasil cresceram junto com as exportações brasileiras para a China. A China já é responsável por 14,1% do total de importações brasileiras em 2010. Concomitantemente, as exportações para a China cresceram constantemente desde 2000, puxado pela venda principalmente de soja e minério de ferro passando de 1,41% do total de exportações brasileiras para 13,7% dez anos depois. Em 2011 passará de 15% ultrapassando os EUA.
Isso apresentará em médio prazo uma maior vulnerabilidade externa do Brasil pela condição volúvel dos preços das commodities. A diversificação do comércio exterior brasileiro não representou uma menor dependência do setor primário. Agora há exportação de commodities para os EUA (especialmente de óleos brutos que chega a 18% das exportações) e para a China.
2011 promete ainda alavancar o preço das commodities. As cotações de soja e milhos são as mais elevadas desde julho de 2008. A demanda por alimentos continua aquecida pelo mercado chinês. O total de investimentos financeiros nos mercados de commodities em geral soma algo em torno de US$ 360 bilhões. Assim Dilma iniciará o governo com o preço das commodities em alta impulsionando as exportações de bens primários. Segundo cálculos, os preços das commodities superariam até as ações de empresas de grande porte, como JBS, Petrobrás e Vale. As principais commodities cotizadas no final de 2010 são o café, o boi gordo, o algodão, açúcar, milho, trigo e soja, além do pico do petróleo. A desvalorização internacional do dólar também ajuda neste conjunto de fatores que apontam uma maior vulnerabilidade internacional do Brasil.
A situação é alarmante: a divisão internacional do trabalho com a crescente importância da China está impulsionando o Brasil a retomar uma espécie de “vocação agrícola” que sustentaria seu crescimento econômico e as políticas redistributivas que o governo petista tanto se vangloria. A falta de debate sobre esse modelo ainda é (quase) completa. De forma geral tem se aceitado que este modelo é viável, possível e adequado para “seguir mudando” o país. Teríamos que continuar construindo hidroelétricas gigantescas, continuar uma mineração destrutiva, com a soja, cana de açúcar para bicombustíveis, mares de pinos de reflorestamento sustentável, etc. Mas tudo bem já isso seria feito para o crescimento econômico que iria redistibuir a riqueza...ou não? É cada vez mais difícil não nos atentarmos para o caráter domesticador das políticas sociais que aliviam a pobreza. Por mais que menos pessoas passem fome, a desigualdade não para de crescer. Entretanto a capacidade dos atores sociais de se lançarem ao conflito diminui numa clara tendência de “transformismo as avessas” não apenas de dirigentes, mas de organizações inteiras. Na realidade a cooptação e a redistribuição são dois lados da mesma moeda.
Existem alternativas ao modelo social-liberal tão popularizado na América Latina e festejado pela esquerda de todo o mundo? Existem atores sociais capazes de combater esse modelo?
Um comentário:
Oi Fernando,
meu nome é Mariangela, esposa do Alex. Tua análise é de uma tremenda lucidez e, muito embora ainda não tenhamos encontrado respostas, saber fazer o dignóstico é o primeiro passo. Por razões profissionais, tenho acompanhado de perto o que se passa no mundo político-econômico europeu e persiste o horror atávico a qualquer questionamento profundo sobre os verdadeiros porquês. Continue a regurgitar. Um abraço
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