sexta-feira, 28 de novembro de 2008

O que resta da modernidade?

Voltando para casa hoje tirei algumas conclusões provisórias e instáveis. Hoje não temos o “mapeamento cognitivo" suficiente para lidar com nossos mandados simbólicos sobrecarregados da modernidade (a pós-modernidade seria, nesse sentido, uma resposta severa a essa incapacidade). As mudanças nos últimos anos, principalmente em relação a tecnicização da ciência e a precarização dos laços humanos, trouxe como resposta do sujeito uma incapacidade de lidar com a Verdade. Aqui Verdade não usava em qualquer tipo de contexto bíblico, mas sim o entendimento sobre o norteamento das coordenadas rumo à emancipação humana para além do capital hoje, se ainda pensamos nisso, é claro.
Em tempos sombrios de crise estrutural do metabolismo global temos que ter em mente alguns pontos cruciais:
1) O processo de hibridização entre capital e Estado (não seria esse o significado real da democracia-liberal de hoje? Enquanto nos EUA demoraram em torno de semana para “votarem” o plano de “salvamento” do sistema financeiro, na China, normalmente denominada uma ditadura foram necessárias algumas horas para que um plano de salvamento também fosse posto em prática) que envolve necessariamente uma maior violência social para reprimir os grupos que lutam contra a lógica de maximização de lucros a custa da classe-que-vive-do-trabalho. Em outras palavras, a necessária força do Estado para conter as contradições reais que se acirram no plano de reprodução ampliada do capital. Se o nazismo é impossível hoje, qual será a nova forma de legitimação para um processo praticamente transparente de maciça transferência de renda?
2) Considerando que o estado de exceção torna-se potencialmente a regra, qual será o fardo histórico para os movimentos emancipatórios que buscam a superação radical nesse metabolismo social que não tem limite para responder adequadamente a seus imperativos existenciais de acumulação e expansão constante e progressiva? Aqui parece que a ofensiva socialista torna-se um novo imperativo contra a posição par excellence defensiva em relação à superação radical do Real do Capital: a luta de classes.
3) Aprofundando ainda mais essa Idéia, em termos lacanianos, o que poderíamos pensar em relação à superação radical do Capital e seu antagonismo constituinte com uma necessidade estrutural do sujeito de superar o Real como dimensão incognisível de estruturação da realidade? Essa tese provavelmente não teria muitos adeptos pela contradição entre estrutura do sujeito (da modernidade) e sua superação radical, entretanto, com o desenvolvimento atual das tecno-ciências, quais poderiam ser os limites? Testes hoje já constatam a possibilidade de transformar o cérebro humano em um desejo instantâneo como um controle remoto se esvaindo a diferente entre desejo e realidade. Quais seriam os limites desse processo? A luta iluminista ainda não pode ser deixada de lado. Entretanto, a pergunta que fica é: essa mudança cognitiva não pode ser feita naturalmente? Minha posição é positiva aqui: se os limites do Ser são aqueles da ordem simbólica, da linguagem, do Outro, não estaria aqui a resposta para esse novo mapeamento cognitivo? Talvez.
4) Sobre o amor: considerando o atual processo de desenvolvimento das forças produtivas, a virtualidade no sentido deleuziano de fluxo livre de devires não mostra que a materialidade das relações é apenas um pressuposto ontológico das relações humanas? Apenas porque aqui se abre uma porta nova da interação humana a ser investida: a rede imaterial. Não de computadores (não poderia dar uma opinião muito firme em relação a isso, pois confesso que meu entendimento sobre o computador ainda é praticamente nulo), mas sim de trocas simbólicas que percorrem necessariamente da construção de alternativas a desestruturação radical do sujeito moderno. Se o velho torna-se cada vez mais velho e o novo não consegue desenvolver-se ainda, não poderia ser essa uma resposta plausível para um novo projeto coletivo de emancipação hoje?

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

On EVIL: An interview with Alain Badiou

In philosophy and psychoanalytic theory, evil is back. The question of evil is, of course, an old and venerable one in Western philosophy, having fascinated philosophers from Socrates and Augustine through Leibnitz and Kant. For much of this history, "the question of evil" was a theological one, namely: If God is beneficent and omnipotent, why does he allow there to be such evil in the world? After Kant, philosophy largely severed its ties with theology, and, with that, the question of evil receded. Evil seemed no longer to be a question for philosophy, but instead became a question for psychiatry, sociology, and biology. Yet, in the past few years, a loosely connected group of philosophers and theorists, influenced by the work of Immanuel Kant and Jacques Lacan, has returned to the question of evil.
In 1993, the philosopher Alain Badiou published Ethics: An Essay on the Understanding of Evil, an analysis, critique, and reformulation of the discourse of evil in contemporary thought. Rejecting both the theological and the scientific (psychological, sociological, etc.) interpretations of evil. he locates good and evil in the very structure of human subjectivity, agency, and freedom.
The editorial group of Cabinet first began planning this issue in the spring of 2001. We found ourselves repeatedly returning to the initial terms of our theme-more than one editorial meeting was dominated by discussions of its slipperiness and complexity, by long and sometimes contentious debates over definition and scope. Something that was of interest to us was that the proliferation of images of evil in contemporary popular culture in fact seemed to go hand in hand with a fundamental inability to confront the question of evil within its religious, philosophical, and metaphysical contexts. It seemed, as one writer has put, that Satan had died. Although the content of this issue is effectively the same one we planned almost 9 months ago, there can be no doubt, however, that the events of 11 September have changed the frame of reference around it. In August, the word evil was likely to draw a smile or even laughter. That is no longer true as we write this in November. On the other hand, it seems that the incessant rhetorical appeal to the word evil since September 11 has in no way made the possibility of real debate about the concept any more likely.
The interview with Alain Badiou was conducted via email in July-August 2001. Alain Badiou asked to add the final paragraphs of his interview after the events of 11 September. A small number of other authors also asked and were allowed to make slight amendments to pieces they had already submitted.

Q: You argue that in our philosophical and political discourses today, evil is "self-evident," and that both this "self-evidence" and this conception of "evil" are problematic. What is "our consensual representation of evil" and what is wrong with it?

A: The idea of the self-evidence of Evil is not, in our society, very old. It dates, in my opinion, from the end of the 1960s, when the big political movement of the 60s was finished. We then entered into a reactive period, a period that I call the Restoration. You know that, in France, "Restoration" refers to the period of the return of the King, in 1815, after the Revolution and Napoleon. We are in such a period. Today we see liberal capitalism and its political system, parlimentarianism, as the only natural and acceptable solutions. Every revolutionary idea is considered utopian and ultimately criminal. We are made to believe that the global spread of capitalism and what gets called "democracy" is the dream of all humanity. And also that the whole world wants the authority of the American Empire, and its military police, NATO.
In truth, our leaders and propagandists know very well that liberal capitalism is an inegalitarian regime, unjust, and unacceptable for the vast majority of humanity. And they know too that our "democracy" is an illusion: Where is the power of the people? Where is the political power for third world peasants, the European working class, the poor everywhere? We live in a contradiction: a brutal state of affairs, profoundly inegalitarian-where all existence is evaluated in terms of money alone-is presented to us as ideal. To justify their conservatism, the partisans of the established order cannot really call it ideal or wonderful. So instead, they have decided to say that all the rest is horrible. Sure, they say, we may not live in a condition of perfect Goodness. But we're lucky that we don't live in a condition of Evil. Our democracy is not perfect. But it's better than the bloody dictatorships. Capitalism is unjust. But it's not criminal like Stalinism. We let millions of Africans die of AIDS, but we don't make racist nationalist declarations like Milosevic. We kill Iraqis with our airplanes, but we don't cut their throats with machetes like they do in Rwanda, etc.
That's why the idea of Evil has become essential. No intellectual will actually defend the brutal power of money and the accompanying political disdain for the disenfranchised, or for manual laborers, but many agree to say that real Evil is elsewhere. Who indeed today would defend the Stalinist terror, the African genocides, the Latin American torturers? Nobody. It's there that the consensus concerning Evil is decisive. Under the pretext of not accepting Evil, we end up making believe that we have, if not the Good, at least the best possible state of affairs-even if this best is not so great. The refrain of "human rights" is nothing other than the ideology of modern liberal capitalism: We won't massacre you, we won't torture you in caves, so keep quiet and worship the golden calf. As for those who don't want to worship it or who don't believe in our superiority, there's always the American army and its European minions to make them be quiet.
Note that even Churchill said that democracy (that is to say the regime of liberal capitalism) was not at all the best of political regimes, but rather the least bad. Philosophy has always been critical of commonly held opinions and of what seems obvious. Accept what you've got because all the rest belongs to Evil is an obvious idea, which should therefore be immediately examined and critiqued. My personal position is the following: It is necessary to examine, in a detailed way, the contemporary theory of Evil, the ideology of human rights, the concept of democracy. It is necessary to show that nothing there leads in the direction of the real emancipation of humanity. It is necessary to reconstruct rights, in everyday life as in politics, of Truth and of the Good. Our ability to once again have real ideas and real projects depends on it.

Q: You say that, for liberal capitalism, evil is always elsewhere, the dreaded other, something that liberal capitalism believes it has thankfully banished and kept at bay. Yet isn't there also, in the contemporary imagination, a powerful idea of internal (social, psychological, domestic) evil? For decades, popular films and novels have been obsessed with the idea of evil lurking within (in the mind, in the house, in the neighborhood). The Timothy McVeigh affair in the US seems to have renewed political worries about "the evil within" (within each one of us, within the heart of the US). Just over a month ago, Andrea Yates, a Texas mother, systematically drowned her five children, prompting a national discussion about whether or not we are all capable of such evil. Philosophically, the new interest in Kant's conception of "radical evil" (and its Lacanian reinterpretation) would seem to fall in line with this idea of internal (rather than external, political) evil. Indeed, throughout most of the history of the West, it would seem that evil has been conceived as "internal," as something that morally haunts each one of us. So, my questions: In addition to the notion of "external" evil you propose, do you also recognize this notion of "internal" evil? Is this idea perennial, or does it tell us something peculiar about our historical moment? Do you see these two notions of evil (external and internal) as connected with one another in any way?

A: There is no contradiction between the affirmation that liberal capitalism and democracy are the Good and the affirmation that Evil is a permanent possibility for any individual. The second thesis (Evil inside of each of us) is simply the moral and religious complement to the first thesis, which is political (parliamentary capitalism as the Good). There is even a "logical" connection between the two affirmations, as follows:
1. History shows that democratic liberal capitalism is the only economic, political, and social regime that is truly humane, that truly conforms to the Good of humanity.
2. Every other political regime is a monstrous and bloody dictatorship, completely irrational. 3. The proof of this fact is that political regimes that have fought against liberalism and democracy all share the same face of Evil. Thus, Fascism and Communism, which appeared to be opposites, were actually very similar. They were both of the "totalitarian" family, which is the opposite of the democratic-capitalism family.
4. These monstrous regimes cannot produce a rational project, an idea of justice or something of that sort. Those who have led these regimes (Fascist or Communist) were necessarily pathological cases: One needs to study Hitler or Stalin with the tool of criminal psychology. As for those who have supported them, and there were thousands of them, they were alienated by the totalitarian mystique. They were finally directed by evil and destructive passions.
5. If thousands of people were able to participate in such ridiculous and criminal undertakings, it is obviously because the possibility of being fascinated by Evil exists in each of us. This possibility will be called "hatred of the Other." The conclusion will be, first, that we must support liberal democracy everywhere, and, second, that we must teach our children the ethical imperative of the love of the Other.
My position is obviously that this "reasoning" is purely illusory ideology. First, liberal capitalism is not at all the Good of humanity. Quite the contrary; it is the vehicle of savage, destructive nihilism. Second, the Communist revolutions of the 20th century have represented grandiose efforts to create a completely different historical and political universe. Politics is not the management of the power of the State. Politics is first the invention and the exercise of an absolutely new and concrete reality. Politics is the creation of thought. The Lenin who wrote What is to be Done?, the Trotsky who wrote History of the Russian Revolution, and the Mao Zedong who wrote On the Correct Handling of Contradictions Among the People are intellectual geniuses, comparable to Freud or Einstein. Certainly, the politics of emancipation, or egalitarian politics, have not, thus far, been able to resolve the problem of the power of the State. They have exercised a terror that is finally useless. But that should encourage us to pick up the question where they left it off, rather than to rally to the capitalist, imperialist enemy. Third, the category "totalitarianism" is intellectually very weak. There is, on the side of Communism, a universal desire for emancipation, while on the side of Fascism, there is a national and racial desire. These are two radically opposed projects. The war between the two has indeed been the war between the idea of a universal politics and the idea of racial domination. Fourth, the use of terror in revolutionary circumstances or civil war does not at all mean that the leaders and militants are insane, or that they express the possibility of internal Evil. Terror is a political tool that has been in use as long as human societies have existed. It should therefore be judged as a political tool, and not submitted to infantilizing moral judgment. It should be added that there are different types of terror. Our liberal countries know how to use it perfectly. The colossal American army exerts terrorist blackmail on a global scale, and prisons and executions exert an interior blackmail no less violent. Fifth, the only coherent theory of the subject (mine, I might add, in jest!) does not recognize in it any particular disposition toward Evil. Even Freud's death drive is not particularly tied to Evil. The death drive is a necessary component of sublimation and creation, just as it is of murder and suicide. As for the love of the Other, or, worse, "the recognition of the Other," these are nothing but Christian confections. There is never "the Other" as such. There are projects of thought, or of actions, on the basis of which we distinguish between those who are friends, those who are enemies, and those who can be considered neutral. The question of knowing how to treat enemies or neutrals depends entirely on the project concerned, the thought that constitutes it, and the concrete circumstances (is the project in an escalating phase? is it very dangerous? etc.).

Q: Given what you have said, one might expect you to turn the tables, to assert that, contrary to the prevailing view, liberal capitalism is itself "evil." But you don't do that. Instead, you offer an alternative theory of evil.

A: Were I to reverse the tables, as you suggest, I would leave everything in place. To say that liberal capitalism is Evil would not change anything. I would still be subordinating politics to humanistic and Christian morality: I would say: "Let's fight against Evil." But I've had enough of "fighting against," of "deconstructing," of "surpassing," of "putting an end to," etc. My philosophy desires affirmation. I want to fight for; I want to know what I have for the Good and to put it to work. I refuse to be content with the "least evil." It is very fashionable right now to be modest, not to think big. Grandeur is considered a metaphysical evil. Me, I am for grandeur, I am for heroism. I am for the affirmation of the thought and the deed.
Certainly, it is necessary to propose another theory of Evil. But that is to say, essentially, another theory of the Good. Evil would be to compromise on the question of the Good. To give up is always Evil. To renounce liberation politics, renounce a passionate love, renounce an artistic creation.... Evil is the moment when I lack the strength to be true to the Good that compels me.
The real question underlying the question of Evil is the following: What is the Good? All my philosophy strives to answer this question. For complex reasons, I give the Good the name "Truths" (in the plural). A Truth is a concrete process that starts by an upheaval (an encounter, a general revolt, a surprising new invention), and develops as fidelity to the novelty thus experimented. A Truth is the subjective development of that which is at once both new and universal. New: that which is unforeseen by the order of creation. Universal: that which can interest, rightly, every human individual, according to his pure humanity (which I call his generic humanity). To become a subject (and not remain a simple human animal), is to participate in the coming into being of a universal novelty. That requires effort, endurance, and sometimes self-denial. I often say it's necessary to be the "activist" of a Truth. There is Evil each time egoism leads to the renunciation of a Truth. Then, one is de-subjectivized. Egoistic self-interest carries one away, risking the interruption of the whole progress of a truth (and thus of the Good).
One can, then, define Evil in one phrase: Evil is the interruption of a truth by the pressure of particular or individual interests. Even the case that you cite above-the woman who drowns her five infants-springs from this vision of things. The debate you raise is absurd: Obviously, everyone is "capable" of everything. One has seen everywhere good people becoming torturers, or peaceful citizens brutalizing people over insignificant things. This consideration is of no interest. It only reminds us that the human species is an animal species, governed by the lowest interests, of which moreover capitalist profit is merely the legal formalization. All that is short of Good and Evil, it is nothing more than the rule of impulses. The question of Evil starts when one can say what Good one is talking about. I am convinced that the murder of five children is actually tied to a brutal renunciation of the Good, in the form of a love process. In any case, that's the only case in which it makes any sense to speak of Evil. The myth that one thinks of is Medea. She also kills her children. And it's not Evil, in the tragic sense of the term, because this murder is entirely dependent on her love for Jason.

Q: In your view, then, is the realm of the human animal simply beneath good and evil (such that acts of torture, for example, are not properly "evil")? Does one not have a moral obligation to become a subject (instead of remaining a human animal)? And, thus, is one's failure to become a subject not a moral failure?

A: The question actually combines two common conceptions of morality (and thus of the distinction between Good and Evil): the "natural" conception, derived from Rousseau, and the "formal" conception, derived from Kant:
1. There is a "natural" morality, things that are obviously bad in the opinion of any human consciousness. Accordingly, Evil exists for the human animal. The example given is that of torture.
2. There is a "formal" morality, a universal obligation that is above any particular situation. And therefore there is a universal Evil, which, too, is independent of circumstances. The example given is that of the obligation to become a subject, to place oneself above the basic human animalism. It is bad to refuse to become a fully human subject, no matter what might be the particular terms of this becoming.
I must, of course, specify that I am absolutely opposed to these two conceptions. I maintain that the natural state of the human animal has nothing to do with Good or Evil. And I maintain that the kind of formal moral obligation described in Kant's categorical imperative does not actually exist. Take the example of torture. In a civilization as sophisticated as the Roman Empire, not only is torture not considered an Evil, it is actually appreciated as a spectacle. In arenas, tigers devour people; they are burned alive; the audience rejoices to see combatants cut each other's throats. How, then, could we think that torture is Evil for every human animal? Aren't we the same animal as Seneca or Marcus Aurelius? I should add that the armed forces of my country, France, with the approval of the governments of the era and the majority of public opinion, tortured all the prisoners during the Algerian War. The refusal of torture is a historical and cultural phenomenon, not at all a natural one. In a general way, the human animal knows cruelty as well as it knows pity; the one is just as natural as the other, and neither one has anything to do with Good or Evil. One knows of crucial situations where cruelty is necessary and useful, and of other situations where pity is nothing but a form of contempt for others. You won't find anything in the structure of the human animal on which to base the concept of Evil, nor, moreover, that of the Good.
But the formal solution isn't any better. Indeed, the obligation to be a subject doesn't have any meaning, for the following reason: The possibility of becoming a subject does not depend on us, but on that which occurs in circumstances that are always singular. The distinction between Good and Evil already supposes a subject, and thus can't apply to it. It's always for a subject, not a pre-subjectivized human animal, that Evil is possible. For example, if, during the occupation of France by the Nazis, I join the Resistance, I become a subject of History in the making. From the inside of this subjectivization, I can tell what is Evil (to betray my comrades, to collaborate with the Nazis, etc.). I can also decide what is Good outside of the habitual norms. Thus the writer Marguerite Duras has recounted how, for reasons tied to the resistance to the Nazis, she participated in acts of torture against traitors. The whole distinction between Good and Evil arises from inside a becoming-subject, and varies with this becoming (which I myself call philosophy, the becoming of a Truth). To summarize: There is no natural definition of Evil; Evil is always that which, in a particular situation, tends to weaken or destroy a subject. And the conception of Evil is thus entirely dependent on the events from which a subject constitutes itself. It is the subject who prescribes what Evil is, not a natural idea of Evil that defines what a "moral" subject is. There is also no formal imperative from which to define Evil, even negatively. In fact, all imperatives presume that the subject of the imperative is already constituted, and in specific circumstances. And thus there can be no imperative to become a subject, except as an absolutely vacuous statement. That is also why there is no general form of Evil, because Evil does not exist except as a judgment made, by a subject, on a situation, and on the consequences of his own actions in this situation. So the same act (to kill, for example) may be Evil in a certain subjective context, and a necessity of the Good in another.
I must particularly insist that the formula "respect for the Other" has nothing to do with any serious definition of Good and Evil. What does "respect for the Other" mean when one is at war against an enemy, when one is brutally left by a woman for someone else, when one must judge the works of a mediocre "artist," when science is faced with obscurantist sects, etc.? Very often, it is the "respect for Others" that is injurious, that is Evil. Especially when it is resistance against others, or even hatred of others, that drives a subjectively just action. And it's always in these kinds of circumstances (violent conflicts, brutal changes, passionate loves, artistic creations) that the question of Evil can be truly asked for a subject. Evil does not exist either as nature or as law. It exists, and varies, in the singular becoming of the True.

Q: In response to an earlier question, you remarked that "it is necessary to reconstruct rights, in everyday life as in politics, of Truth and of the Good." Can you say more about how the ethic of truths might get mobilized in practical terms, and how this might constitute an alternative to the current conception of "human rights"?

A: Take the nearest example: the terrible criminal attack in New York in September, with its thousands of casualties. If you reason in terms of the morality of human rights, you say, with President Bush: "These are terrorist criminals. This is a struggle of Good against Evil." But are Bush's policies, in Palestine or Iraq for example, really Good? And, in saying that these people are Evil, or that they don't respect human rights, do we understand anything about the mindset of those who killed themselves with their bombs? Isn't there a lot of despair and violence in the world caused by the fact that the politics of Western powers, and of the American government in particular, are utterly destitute of ingenuity and value? In the face of crimes, terrible crimes, we should think and act according to concrete political Truths, rather than be guided by the stereotypes of any sort of morality. The whole world understands that the real question is the following: Why do the politics of the Western powers, of NATO, of Europe and the USA, appear completely unjust to two out of three inhabitants of the planet? Why are five thousand American deaths considered a cause for war, while five hundred thousand dead in Rwanda and a projected ten million dead from AIDS in Africa do not, in our opinion, merit outrage? Why is the bombardment of civilians in the US Evil, while the bombardment of Baghdad or Belgrade today, or that of Hanoi or Panama in the past, is Good? The ethic of Truths that I propose proceeds from concrete situations, rather than from an abstract right, or a spectacular Evil. The whole world understands these situations, and the whole world can act in a disinterested fashion prompted by the injustice of these situations. Evil in politics is easy to see: It's absolute inequality with respect to life, wealth, power. Good is equality. How long can we accept the fact that what is needed for running water, schools, hospitals, and food enough for all humanity is a sum that corresponds to the amount spent by wealthy Western countries on perfume in a year? This is not a question of human rights and morality. It is a question of the fundamental battle for equality of all people, against the law of profit, whether personal or national.
In the same way, the Good in artistic action is the invention of new forms that convey the meaning of the world. The Good in science is the audacity of free thought, the joy of exact knowledge. Likewise, the Good in love is the understanding of what difference really is, of what it is to construct a world when one is two, and not one. And Evil, then, is academic rehearsals or "cultural" commerce; it is knowledge in the service of capitalist profit; it is sexuality considered as merely a technique of pleasure (jouissance). I'll repeat it: All the world shares these experiences. The ethics of Truth always returns, in precise circumstances, to fighting for the True against the four fundamental forms of Evil: obscurantism, commercial academicism, the politics of profit and inequality, and sexual barbarism.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

A luta de classes sob a crise estrutura do capital como Significante-Mestre (desculpe o lacanês, mas não me conti)

Como entender um projeto de emancipação hoje, se ainda pensamos nisso? Vamos sair de alguns pressupostos teóricos para depois adentrar realmente no assunto. Primeiramente, concordo com Ernesto Laclau: a sociedade não existe. A Não-sociedade é organizada a partir de antagonismo não-resolvível. Dessa forma, entender a sociedade como um sistema fechado é impossível. A aparência de que ela é um sistema fechado é produzida por uma fantasia ideológica que cria a ilusão de completude e possibilita a reconciliação entre uma origem mítica e uma futura utopia ideal ou, a noção de emancipação.
As políticas emancipatórias expõem essa fantasia e torna “transparente” o antagonismo central (imsimbolízável) que representa a completude da sociedade: a divisão social do trabalho historicamente existente que, de forma nenhuma, uma condição ontológica do ser social. Entretanto a questão continua: é possível transcender (ou atravessar em lacanês) essa fantasia?
Para Laclau o sujeito emancipatório é o lumpenproletariado que é um “outsider absoluto”. De acordo com Laclau, contra Marx que concebeu as partes inseridas na produção capitalista, a expulsão do lumpenproletariado desse processo é a condição que possibilita uma pura interioridade onde a história possui uma estrutura coerente. Para ele o lumpen é o resto que possibilita estruturar uma luta emancipatória sendo um sujeito antagonista. Nesse sentido, para Laclau o Significante-Mestre que deve estruturar as lutas emancipatórias é um significante Vazio que possibilite uma multiplicidade de entidades-substâncias que adentrem esse significante Vazio e possibilitem uma mudança radical nas coordenadas simbólicas hegemônicas.
Em contrate com Laclau, Slavoj Zizek coloca que o sujeito emancipatório par excellente é, de fato, o proletariado. Isso porque o proletariado é um não-grupo no edifício social existente. O proletariado existe como um grupo contraditório que é, simultaneamente, incluído e excluído da sociedade. É incluído no sentido que é requerido na ordem dominante de produção, mas é excluído no senso de que a sociedade não pode lhe dar um lugar próprio. O lumpen, ao contrário, é negado de historicidade das relações de produção. É um grupo que é marginalizado social e economicamente das relações de produção capitalistas sendo, dessa forma, um elemento que flutua livremente por qualquer estrato ou classe social. Dessa forma, o lumpen é um grupo que pode se apropriado tanto pelo populismo de um regime opressivo ou pelo populismo “do povo”. Nesse ponto Zizek continua sua crítica apontando que Laclau, ao reduzir lutas particulares como um “universal equivalente” tem como resultado não ver que essas lutas fazem parte de uma contingência política em busca pela hegemonia. Zizek aponta, em contraste, que o sujeito emancipatório pré-existe a luta emancipatória e, nesse sentido, só consegue fazer parte da luta emancipatória quando se integra na ordem simbólica. Aprofundando um pouco mais essa Idéia, Zizek considera que esse sujeito emancipatório tem o caráter de um objeto pequeno a (significante-Mestre): aqui seu caráter imsimbolizável por estar estruturado a partir de um antagonismo fundamental, o Real do capital, a luta de classes. Esse Significante tem a funcionalidade de trazer unidade ao processo de fragmentação sobredeterminando a articulação das lutas emancipatórias. O que falta radicalizar no pensamento do Zizek é historicizar a luta de classes diante na nova morfologia da classe-que-vive-do-trabalho sob a crise estrutural do metabolismo global do capital. Mas isso acho que será assunto para outro post...

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Para Zizek, crise tem paralelos com 11 de Setembro e revela a fragilidade e as contradições do capitalismo

O filósofo esloveno Slavoj Zizek esteve no Brasil em outubro (Rio, Salvador, São Paulo) para lançar "A visão em paralaxe" (Boitempo) em que reflete sobre questões atuais buscando revitalizar a dialética de Hegel e destaca a importância da psicanálise no reino das ciências cognitivas. Nesta entrevista, conta quais são suas impressões do país e analisa os novos dilemas da crise financeira internacional, a qual, em sua opinião, tem paralelos profundos com o choque causado pelo 11 de Setembro. Diz que em Marx não há como encontrar respostas para a crise. Segundo Zizek, é possível que as partes mais dinâmicas da sociedade no mundo hoje não estejam evoluindo em direção a democracias.

O GLOBO: Como foi sua passagem pelo Brasil?
SLAVOJ ZIZEK: Para mim, a cidade é São Paulo. Embora o usual seja dizer que a Bahia é o máximo, com uma imagem relacionada ao carnaval e ao prazer de viver, prefiro São Paulo. Gosto de cidades grandes, vidas orsanizadas, espírito de trabalho, disciplina. Eu não poderia me imaginar morando na Bahia. Mas gosto também da estrutura não-rtransparente da cidade de São Paulo, ao contrário do que é Nova York, com suas ruas definidas com números. Mesmo no Rio, a estrutura é mais transparente. São Paulo é mais caótica. Agora, tem algo de que gosto no Rio e também na Bahia. E isso me fascina no Brasil: vocês não escodem suas favelas. Um quarteirão pode ser muito rico e, logo depoi!?, vem a favela. O que faz uma cidade bonita não são as praias bonitas etc; eu gosto do caos, do caos vibrante. Veja, em Nova York não suporto quando entramos numa cafeteria e há esse ambiente de normalização: um garçom se apresenta, diz que está nos servindo, pergunta se tivemos um bom dia e se estamos bem. Não gosto dessas amizades pseudo-ritualizadas. Agora, um evento mítico para mim a respeito do Brasil é o de Canudos, na Bahia, cuja história conheci através do livro de Mario Vargas Llosa ("A guerra do fim do mundo"). Foi uma comunidade que conseguiu sobreviver no meio do nada por muito mais tempo que a centena de comunidades de socialistas utópicos que se multiplicavam nos EUA na época. Há algo miraculoso com Canudos.

É um tipo de auto-suficiência insustentável hoje, não?
ZIZEK: Não digo que devemos transformar o mundo numa grande Canudos, mas faz pensar e em questões interessantes. Na questão alimentar, é impossível hoje a auto-suficiência. Quando a há necessidade de ajuda alimentar, o dinheiro custa a chegar. As grandes potências já reconheceram sua falência nisso. Na questão ecológica, muita gente fala de aquecimento global, é um blá-blá-blá. Li recentemente que milhares de pessoas morrem na Inglaterra esperando por operações de câncer. Mas agora temos uma crise financeira e não houve problema em se obterem bilhões de dólares em poucos dias. É a força real do capital. Há algo irônico nisso: usa-se o dinheiro para restabelecer crença e confiança. É sugestão, parece mágico. Aos poucos, vemos as limitações do sistema.

Vê paralelo entre o impacto desta crise com o que se viu no pós-11 de Setembro? No primeiro caso, a crise chegou de fora; agora inicia-se dentro...
ZIZEK: Paralelos profundos. O 11 de Setembro foi importante por suas dimensões ideológicas. Agora, há um choque equivalente. Primeiramente, os EUA sempre gostaram de se ver como uma ilha de segurança. Além disso, simbolicamente o 11 de Setembro representou o fim da utopia. Não da utopia socialista ou relacionada ao sistema de proteção social, mas a utopia de Fukuyama, que decretara o fim da história, depois da queda do Muro de Berlim, num período de expansão do capitalismo liberal. Foi o fim dessa era feliz. Voltou-se à História, aos conflitos locais entre os povos. Se o 11 de Setembro causou um choque de cunho mais político e militar, agora atinge-se a utopia do capitalismo liberal . Pode-se até superestimar as atuais consequências da crise - acho que não haverá uma gigantesca recessão -mas há um choque nos aspectos utópicos da globalização econômica. E repare que a linguagem usada pelo presidente Bush é praticamente a mesma que usou depois de 11 de Setembro. "Nosso estilo de vida está em perigo, devemos esquecer nossas difenreças políticas, nos unir todos pelo país". Um tanto irônico.

Obama repete o discurso?
ZIZEK: Ele fez algo certo num debate com McCain, quando este disse que era hora de esquecer diferenças políticas. Obama disse não, que aquela era a hora do debate. O que devemos fazer? Esta é a verdadeira questão para mim, o verdadeiro debate político? como proceder para lidar com as limitações do sistema. Isso se relaciona a uma visão politica. Sabemos, também, que os modelos conhecidos para agir no mercado não são a verdadeira alternativa. Nem o antigo socialismo de intervenção direta, nem algo mais latino-americano, como uma economia de Estado populista, como a de Hugo Chávez. Talvez algo diferente esteja ocorrendo na China. É preciso encontrar novas formas coletivas de ação. Há decisões básicas que não podem ser deixadas nas mãos do mercado, mas meu ponto é: na verdade muitas delas não estão nas mãos do mercado. Há uma hipocrisia nos paises desenvolvidos que é preciso confrontar. Eles pregam uma economia liberal para os paises de terceiro mundo, mas violam as regras o tempo todo. Os EUA financiam seus produtores de algodão para que este não seja comprado na África, como no Mali, onde a produção é mais barata e os fazendeiros moram nas favelas. O subsídio americano a esses agricultores nos EUA é maior que o PIB do Mali. Então, a crise nos deixa com o pé atrás não apenas em relação ao livre mercado, mas de certa forma nunca houve livre mercado. Veja a União Européia: metade do seu orçamento é para subsidiar agricultores. Os limites estão ficando claros, e temos um grande desafio quanto ao que fazer.

O momento é, portanto, de grande indefinição.
ZIZEK: Isso é outra coisa que me choca. Veja, cada vez mais o capitalismo tem dificuldade de trabalhar no nível da propriedade intelectual, para definir quais são os direitos legais desta. Na internet, há algo nos produtos intelectuais que resiste à propriedade privada. A economia digital tem um fundo socialista; os produtos foram artificialmente adaptados na fórmula capitalista, mas não funciona muito bem. Quero dizer que vivemos em tempos interessantes, em que há grandes confusões. Agora, com esta crise, alguns dos meus amigos cairam na armadilha de dizer que temos a chance de voltar à economia real, e sair da especulação virtual. Ora, não há "economia real". Trata-se de uma maravilhosa contradição. Um dos slogans desde setembro é que devemos abandonar a especulação Irreal. Também se diz que é preciso salvar os bancos, sob o risco de uma gravíssima crise. É preciso salvar o banco porque o dinheiro é real. Devemos superar essas metáforas ingênuas. O fato é que há um mecanismo irracional em jogo. É preciso não só acreditar, como acreditar que os outros acredi- tam. Talvez a melhor solução seja não fazer nada. Se os governos põem tanto dinheiro, então a mensagem é que o problema é mesmo profundo. Quanto mais se tenta resolver o roblema, mais pânico se gera. tudo frágil, baseado em confiança. Isso é algo louco sobre o capitalismo.

Está se voltando a Marx...
ZIZEK: E ainda mais a Keynes. No meu caso, posso dizer que Marx não tem repostas, mesmo que tenha insights do mecanismo do capitalismo. Para Marx, a mais importante fonte de valor é o trabalho. Mas ele próprio disse algumas vezes que, com o desenvolvimento tecnológico, o fator chave na produção deixaria de ser o trabalho mecânico. O conhecimento e as especialidades passariam a ter outra importância. Estamos neste nível hoje. Marx não é a resposta, mas devemos repetir, hoje, a mesma pergunta que fez em relação ao capitalismo do século XIX. Temos algumas tentativas teóncas, como no caso de Antonio Negri ou Giddens, mas é jornalismo teorético. Hoje temos um bom argumento a favor do capitalismo. Em geral, diz-se que leva a alguma liberdade, mesmo com periodos de ditadura, como no Chile. Mas não concordo com quem diz que, com o desenvolvimento, daqui a 20 anos a China vai se democratizar. Algo muito dinâmico está se produzindo lá, genuinamente novo. Talvez o dinamismo da sociedade não esteja se movendo em direção à democracia. Isso deveria nos preocupar. Vejamos a VenezueIa. Não sou pró-Chávez, mas ele foi o primeiro que tentou mobilizar politicamente os excluidos nas favelas. Como era o pais antes de Chávez? Era melhor para os excluidos?

O exercício de paralaxe, uma certa desconstrução do olhar, é pois fundamental.
ZIZEK: Sim, mas vamos esquecer agora a politica. Meu coração está na primeira parte do livro ("A visão em paralaxe''). Busco revitalizar a dialética de Hegel. Na segunda parte tento salvar a psicanálise do ataque das ciências cognitivas, e mostrar como podem colaborar entre si. Sou a favor de Hegel mesmo contra Marx. A visão de Marx sobre Hegel foi um .r equívoco. Hegel é capaz de nos o oferecer respostas mais proe fundas. Não apenas políticamente. Precisamos de filosofia. Hoje, os cientistas conseguem conectar diretamente o neurônio a um computador, que, assim, permite que se faça movimentos apenas com o pensamento. Modifica-se a percepção do que é ser humano. Nisso Fukuyama estava certo, ao falar sobre as transformações da biogenética. A liberdade não está perdida, mas quando nos tornamos tão mestres de nós mesmos, algo na liberdade se modifica. Devemos pensar muito a respeito.

O que seria a "merda divina" de que fala no livro?
ZIZEK: E irônico, ligado a Martinho Lutero. Para ele, o ser humano é o pedaço de merda que caiu do ânus de Deus. É a mais horrivel definição do ser humano. Não é fácil explicar aqui, mas se relaciona ao fato de que quando você aceita que está totalmente abandonado por Deus, está na posição de Cristo na cruz, que pergunta "pai, porque me abandonaste?". Algo inacreditável aconteceu ali. Todos fomos abandonados, inclusive Deus. Por um momento, Deus também se tornou ateu. Ficamos sós, a comunidade dos crentes sem Deus. Sou totalmente ateu, mas acho que no cristianismo encontramos certa lógica coletiva, uma lógica de emancipação coletiva que pe absolutamente crucial e preciosa, hoje mais do que nunca.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Observações sobre o desastre econômico

Os desdobramentos da crise financeira são ilustração exemplar da explicação feita por Marx do capitalismo

1. A partir dos anos 1970, os EUA introduziram paulatinamente uma série de alterações no funcionamento do sistema econômico internacional que, na prática, subverteu o modelo anterior firmado no pós-guerra. As políticas anticíclicas que permitiram a expansão conhecida como os “30 anos dourados” foram desmontadas uma a uma.

Os excedentes monetários, até então sob o controle parcial dos Estados, passaram a ser geridos pelo mercado, com a concomitante redução da participação dos salários na renda nacional e dos benefícios conquistados como direitos sociais. O controle de capitais pelos Estados nacionais, outra peça-chave do arcabouço anterior, cedeu lugar à livre circulação inclusive de capitais de curto prazo, propiciando os movimentos especulativos que moldam atualmente o mercado de dinheiro.

Ao longo desse processo, os Estados passaram por alterações substanciais não só com a restrição de sua participação direta como agente econômico, mas sobretudo com a redução significativa de suas atividades de planejamento e regulação.


2. Com o fim da situação de exceção, da assim chamada “regulação keynesiana”, o capitalismo retornou ao seu leito habitual. O ímpeto e a dinâmica econômica voltaram a ser ditados pelo mercado, e as crises a se suceder com precisão matemática.

Para um leitor de Karl Marx os delineamentos e desdobramentos da atual crise bancária e financeira afiguram-se como uma ilustração exemplar e quase didática de sua explicação do capitalismo. A teoria do valor e o fetichismo da mercadoria expostos em "O Capital" ressaltam que, apesar de sua origem como uma mercadoria específica, como equivalente geral, o dinheiro tende a adquirir autonomia no decorrer do processo em que salta da condição de mero mediador das trocas alçando-se à posição de centro impulsionador da circulação mercantil.

No descolamento entre essas funções, em si contraditórias, encontra-se o germe das crises econômicas, precipitadas, em geral, pela correção abrupta de ativos inflados devido à lógica imanente que os descola de seu solo e substrato real.

A teoria marxista prediz ainda que um desarranjo financeiro tende a afetar a ordem econômica em suas múltiplas dimensões. A desarticulação da função “meio de pagamento” (o sistema de crédito), que o dinheiro adquire com o desenvolvimento dos mecanismos de compensação bancária, altera suas outras funções como “meio de circulação” ou como “medida de valor”. Eis por que uma crise bancária não deixa de ressoar no âmbito da produção e tende a se tornar sistêmica com a perda da medida de valor das mercadorias e das empresas, fenômeno patente na volatilidade dos mercados e das bolsas.

A crítica de Marx ao capitalismo readquire atualidade precisamente quando a prática política inspirada no marxismo passa por seu momento de maior descrédito. O paradoxo é ainda maior quando se recorda que o marxismo viveu seu apogeu político e intelectual no Ocidente no período em que a regulação estatal desmentia a linha geral de "O Capital".


3. No capitalismo, Estado e mercado são faces de uma mesma moeda. A política econômica predominante nas últimas décadas –inspirada no receituário proposto, entre outros, por Friedrich Hayek e Milton Friedman, e rotulada de “neoliberal”– visava desprender a lógica econômica da política, liberar o mercado das “amarras” do Estado. Esse objetivo, no entanto, uma demanda da classe capitalista assustada com o declínio das taxas de lucro, só pôde ser alcançado por meio da ação política, da conquista do Estado.

A magnitude dessa intervenção estatal sobre a esfera institucional do capitalismo, aceleradas nos governos de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, só é comparável às modificações na esfera econômica introduzidas na década de 1930.

O desmanche da chamada economia mista (estatal e de mercado), a privatização de domínios até então públicos (da infra-estrutura à previdência, passando pela saúde e pela educação), a desregulamentação dos mercados de trabalho, de mercadorias e de dinheiro foram obtidos por meio de uma série deliberada e coordenada de ações extra-econômicas. Semelhante mudança no padrão de acumulação exigiu uma política agressiva de enfraquecimento dos sindicatos e do poder social da classe trabalhadora.

A manutenção desse modelo de capitalismo pressupõe a continuidade dessa modalidade de ação política, assentada numa militância ativa e sobretudo numa hegemonia intelectual que está sendo seriamente abalada pelos desdobramentos da atual crise financeira.


4. Não é casual que o epicentro da crise esteja localizado nos Estados Unidos e na Inglaterra. Trata-se dos dois países que foram mais longe na desregulamentação do capitalismo. Apesar da vitória incontestável do poder norte-americano sobre o socialismo estatal do Leste europeu, a “nova ordem mundial” aderiu ao modelo preconizado com parcimônia.

Na área econômica unificada pela adoção do euro como moeda comum, apesar da insistência tanto dos conservadores como da social-democracia, o Estado do bem-estar social foi pouco modificado, ficando as políticas de desregulamentação concentradas na esfera financeira.

A reinserção da China no mercado mundial e seu espantoso crescimento econômico nas duas últimas décadas –a manifestação mais peremptória do “capitalismo globalizado”– transformaram a sociedade chinesa no máximo numa economia mista, com uma combinação peculiar de livre mercado e intervenção estatal comandada e controlada pela camada dirigente do Partido Comunista.

Na América Latina, sua implantação tardia (com a exceção do Chile), nos anos 1990, por meio das terapias de choque do “consenso de Washington” redundou em fracasso. O malogro foi tão grande que impulsionou o acesso ao poder de políticos e partidos situados à esquerda do espectro político. Se não conseguiram reverter as reformas implementadas, tampouco levaram adiante com o mesmo ímpeto o receituário neoliberal.


5. O colapso desse modelo põe em xeque a hegemonia dos EUA no sistema interestatal. Nesse cenário, amplifica-se a contradição latente, que perpassa a história norte-americana ao longo do século XX, entre a república e o império.

A crise debilita o arranjo que permitiu a combinação de uma sociedade afluente, com um nível de consumo exacerbado e uma relativa democratização da vida pública, no plano interno, e o intervencionismo militar, econômico e político, no qual não estiveram ausentes até mesmo momentos de ocupação e domínio neocolonial, no plano externo.

A próxima eleição presidencial opõe duas vias distintas para a reconstituição do poder norte-americano: a ênfase na reforma do ambiente econômico e social, conforme o programa de Barack Obama, ou a tentativa de resolver os impasses internos intensificando a intervenção externa, proposta por John McCain, com a sugestão de pequenas alterações na dosagem adotada durante os oito anos do governo de George W. Bush.


6. Os detentores do capital, no mundo todo, vivem um momento de perplexidade. A hegemonia norte-americana tem uma de suas fontes no reconhecimento de sua ação, extremamente eficaz nos últimos 70 anos, em defesa, para além das fronteiras nacionais, dos interesses da classe capitalista.

Uma legitimidade conquistada com o uso, sem escrúpulos, de todos os meios possíveis seja no campo econômico, político, cultural ou militar. Nesse sentido, seu engajamento e sua liderança na guerra contra o comunismo internacional pode ser visto como apenas um momento de sua condição de “garantia em última instância do capital”.

Só isso explica porque, apesar da insolvência que perpassa o sistema bancário norte-americano e do tamanho descomunal de seus dois déficits –o de transações correntes e o público–, o dólar se valoriza ante as demais moedas, ao exercer a função de reserva de valor e instaurar-se como o último porto seguro para capitais de todas as nacionalidades.

O provável declínio dos EUA apresenta-se assim como uma espécie de efeito colateral inesperado de sua irretorquível vitória sobre o socialismo estatal do Leste europeu.


7. O anunciado giro na direção do fortalecimento do Estado, resgatando modalidades explícitas de capitalismo estatal; o retorno de políticas anticíclicas, de inspiração neokeynesianas; a retomada de práticas regulatórias, não só no âmbito financeiro, demandas assumidas hoje pela classe capitalista e até mesmo por políticos conservadores, surgem como uma exigência técnica, como uma operação de restabelecimento da racionalidade econômica.

Esse olhar retrospectivo para o arsenal profilático desenvolvido a partir da crise de 1929 recusa-se a ver, no entanto, que tais procedimentos originaram-se no âmbito e mediados por um intenso confronto político no qual a classe trabalhadora exerceu o papel de protagonista (mesmo quando derrotada).

No contexto atual, a representação política dos trabalhadores, desacreditando da viabilidade do socialismo, defende, entretanto, apenas modalidades de capitalismo reformado e versões mitigadas de capitalismo de Estado. Diante desse encurtamento do horizonte político, resta a questão crucial: o que irá galvanizar as massas de atuais e futuros deserdados do mundo?


Por Ricardo Musse, professor da USP