Provavelmente, a principal marca do governo federal do PT no Brasil foi o fortalecimento da chamada “classe C”, mal entendido por alguns como uma nova classe média, composta nas estatísticas oficiais por famílias que tem uma renda mensal domiciliar entre R$1.064,00 e R$ 4.561,00. Se em 1992 a classe C representava 34% da população, em 2011 passou a 54% e, segundo estimativas, alcançará 58% da população em 2014. Isso significa que o perfil sócio-econômico do país e suas classes estão mudando.
Durante a última década, a chamada classe C – composta, sobretudo, por jovens negros com emprego formal, alto potencial de consumo e características altamente heterogêneas ligadas ao campo político e religioso – teve um aumento superior a 40% em sua renda familiar, o que permitiu maior poder de compra, acesso à tecnologia e ingresso em faculdades. Na última década, 31 milhões de pessoas entraram na classe C – ela já responde por cerca de 47% do consumo do país, metade dos cartões de crédito emitidos, 60% dos acessos à internet, 42% das despesas com educação. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são os jovens da classe C que alimentam a expansão de quase 77% no número de pessoas que declaram “freqüentar” ou “ter freqüentado” cursos de educação profissional entre 2004 e 2010. O Nordeste é a região onde a classe C mais cresceu recentemente e a região Sul soma a maior proporção de pessoas neste grupo. Espera-se que esta classe C será a principal fornecedora da força de trabalho mais qualificada para o desenvolvimento industrial nos próximos anos.
É claro que uma classe não pode ser definida em termos de renda ou pelo padrão de consumo. É sua experiência prática que diz como ela é. Como assinala Jessé de Souza, esta “nova classe trabalhadora” em formação convive com o antigo proletariado fordista – ou o que restou dele – e possui uma trajetória de ascensão por meio do trabalho duro, com fé em Deus para suportar a dor de viver, ter força de vontade e conseguir vencer os obstáculos que aprecem pela frente. Seus integrantes possuem uma narrativa sem tempo linear, previsível ou estável. Sua reprodução se constitui como um desafio permanente. Seu risco não é de proletarização, pois sua condição já é proletarizada, produto de trabalho duro todos os dias. Não é uma condição que se alcançou e se tem medo de decadência, mas uma condição que deve ser buscada em todo momento da vida.
Como podemos fazer uma interpretação marxista da classe C? Ela demonstraria que o aparato marxista é anacrônico diante destas transformações da composição de classe no Brasil? Naturalmente ela é parte do proletariado, mas qual parte? Para André Singer, poderíamos denominá-la de “subproletariado”, aqueles “que oferecem a sua força de trabalho no mercado sem encontrar quem esteja disposto a adquiri-la por um preço que assegure sua reprodução em condições normais”. A nosso ver, seria mais correto caracterizar a classe C como integrante do exército industrial de reserva – que Marx sempre frisou ser parte do proletariado. Marx identifica três formas deste exército nas quais “todo trabalhador dela faz parte durante o tempo em que está desempregado ou parcialmente desempregado”:
1) A parte flutuante representa aqueles trabalhadores que, acompanhando o ciclo da economia capitalista, oscilam no emprego tendendo a serem despedidos numa crise e esperar por uma época de prosperidade para serem incorporados ao exército ativo de trabalhadores. Eles flutuam no circuito empregatício de acordo com o estágio do ciclo econômico. Nas palavras de Marx, esses que são despedidos tornam-se elementos da superpopulação flutuante que aumenta ao crescer a indústria. Parte deles emigra e, na realidade, apenas segue o capital em sua emigração. Em suma, essa parte flutuante do exército industrial de reserva é constituída pelos trabalhadores que, por certo tempo, perdem seus empregos em conseqüência da queda na produção, no avanço de produtividade, no emprego de novas máquinas ou fechamento de empresas. Uma parte desses desempregados volta a se empregar numa potencial prosperidade industrial.
2) A parte latente surge “quando a produção capitalista se apodera da agricultura, ou nela vai penetrando, diminui, à medida que se acumula o capital que nela funciona, a procura absoluta da população trabalhadora rural” (2009, p. 746). Geralmente, os operários agrícolas estão fadados a enxertar as fileiras das indústrias nos grandes centros urbanos, pois “dá-se uma repulsão de trabalhadores, que não é contrabalançada por maior atração, como ocorre na indústria não-agrícola. Por isso, parte da população rural encontra-se sempre na iminência de transferir-se para as fileiras do proletariado urbano ou da manufatura e na espreita de circunstâncias favoráveis a essa transferência. Está fluindo sempre esse manancial da superpopulação relativa. Mas, seu fluxo constante para as cidades pressupõe no próprio campo uma população supérflua sempre latente, cuja dimensão só se torna visível quando, em situações excepcionais, se abrem todas as comportas dos canais de drenagem. Por isso, o trabalhador rural é rebaixado ao nível mínimo de salário e está sempre com um pé no pântano do pauperismo” (idem, p. 746).
3) Diante do aumento da acumulação de capital, duas porções do proletariado tendem a ter uma participação menor diante do aumento da dimensão estagnada do exército industrial de reserva. Como diz Marx, “a superpopulação estagnada se amplia à medida que o incremento e a energia da acumulação aumentam o número dos trabalhadores supérfluos. Ela se reproduz e se perpetua, e é o componente da classe trabalhadora que tem, em seu crescimento global, uma participação relativamente maior que a dos demais componentes” (idem, p. 747). A superpopulação relativa estagnada “constitui parte do exército de trabalhadores em ação, mas com ocupação totalmente irregular. Ela proporciona ao capital reservatório inesgotável de força de trabalho disponível. Sua condição de vida se situa abaixo do nível médio normal da classe trabalhadora, e justamente por isso torna-se base ampla de ramos especiais de exploração do capital. Duração máxima de trabalho e mínimo de salário caracterizam sua existência. Conhecemos já sua configuração principal, sob o nome de trabalho a domicílio. São continuamente recrutados para suas fileiras os que se tornam supérfluos na grande indústria e na agricultura, e notadamente nos ramos de atividade em decadência (idem, p. 746, 747). Esses trabalhadores não deixam de fazer parte do exército industrial de reserva, tampouco deixam de ter lugar na divisão social do trabalho no modo de produção capitalista. É parte cada vez mais importante do proletariado. Longe de ser inútil, a porção estagnada do exército industrial de reserva se reproduz com os trabalhos mais degradantes, com mais riscos à integridade física e moral, remuneração mais baixa sob vínculos empregatícios precários, ou seja, enfrentam um contato com o que Marx se refere como “ramos especiais de exploração do capital” baseados na “duração máxima de trabalho e mínimo de salário”.
Na classe C brasileira encontramos elementos das três formas de exército industrial de reserva. Em termos quantitativos, a classe C é uma conseqüência da neoliberalização da década de 1990, marcada pelas privatizações, precarização do trabalho e o aumento do desemprego. O resultado foi uma reorganização do proletariado baseada na redução do proletariado fabril e no progressivo crescimento da classe C, um fenômeno que decorre desde 1992, por mais que sua expansão aconteça de maneira mais acentuada desde 2003. Ela não é assim tão nova. Hoje, são 105,4 milhões de pessoas, ou 55,05% da população nesta faixa. Segundo um estudo da FGV, esse processo ocorre junto com o encolhimento das classes D e E. Em 1992 elas representavam juntas 62,13% da população. Em 2003 eram 54,85% dos brasileiros. Hoje, somadas, as classes D e E representam 33,19% dos 191,4 milhões de habitantes do país. É um fenômeno inédito na história do país. Ainda assim, são 16,2 milhões de pessoas vivendo com até R$ 70 mensais.
Para a classe C a estabilidade econômica é algo extremamente valorizado, pois é o caminho da ascensão social, por mais que ela seja composta por uma camada social altamente heterogênea em termos de valores, crenças políticas e comportamentos. É uma fração da classe trabalhadora emergente no Brasil, diferente daquela do ABC no final dos anos 1970, vivendo um processo de recomposição, ainda com pouca experiência de luta, mas que ainda não mostrou sua potencialidade. Os empregos da classe C são muito variados: telemarketing, feirantes, pequenos empreendedores, autônomos, trabalhadores da construção civil, caixas de supermercado, motoboys, secretariado, serviços de reparo em geral, parte do funcionalismo público, pequenos comerciantes, trabalhadores em domicílio etc. Em suma, são empregos altamente flexíveis e irregulares, por mais que alguns tenham uma formalidade oficial. Fazem parte dessa porção do proletariado os “desempregados ativos” que estão numa lacuna entre o trabalho atípico, parcial, desregulamentado, informal ou temporário e as agruras do não-trabalho. Alguns têm dupla jornada de trabalho e outros tantos são trabalhadores completamente informais. Todos lutam para pagar suas contas e costumam morar nas periferias das grandes cidades. Muitas vezes seu acesso a formas de mínimas de auto-organização e ao espaço público se dá por meio de igrejas evangélicas e neopentecostais.
Esta transformação da composição social do proletariado resulta, agora, em novas lutas de classe – só que, até agora, sem muita organização, representação e visibilidade política. O que fazer? Qual é o futuro político da classe C? Ser cooptada pelos ideais do livre-mercado, típicos da classe média? Ou pelas milícias e empresas religiosas privadas? Ou poderia ser tomada pelo ideal de uma sociedade calcada no trabalho duro e uma sociedade justa e socialista?
A necessidade de ascensão política de massas da “classe C” será provavelmente o mais importante norteador da nova dinâmica da luta de classes no Brasil no próximo período. Aquela parte da população que passou a ter mais acesso aos bens de consumo, mas ainda é muito conservadora, impede que projetos “socialistas” sejam aceitos facilmente, por mais que se coloque em movimento num novo ciclo de lutas das classes populares. Mostra-se que a inclusão no mercado por si só não garante o aumento da organização popular da classe C nem um desenho claro de uma consciência de classe.
Longe disso, ela parece estar atualmente mais próxima das diversas formas de individualismo possessivo do tempo presente e das grandes empresas de evangelização do que de qualquer “ideologia socialista”, muitas vezes demonizada, sendo vista como uma desculpa apenas para “instabilidade social” ou “politicagem”.
Para adentrarmos na consciência da classe C, devemos evocar a fórmula do lulismo feita por André Singer. O lulismo seria “a execução de um projeto político de redistribuição de renda focado no setor mais pobre da população, mas sem ameaça de ruptura da ordem, sem confrontação política, sem radicalização, sem os componentes clássicos das propostas de mudanças mais à esquerda”. O lulismo "expressa um fenômeno de representação de uma fração de classe que, embora majoritária, não consegue construir desde baixo as próprias formas de organização". Essa fração de classe é caracterizada por uma expectativa de Estado forte, que reduz a desigualdade, mas sem ameaçar a ordem estabelecida.
Portanto, ao contrário do que pensa o próprio Singer, essa fração de classe não apresenta afinidades partidárias de qualquer tipo ou intensas rejeições a partidos, e tampouco identificações personalistas fortes. Segundo Singer, as constantes declarações de Lula a favor da manutenção da estabilidade satisfizeram não só os banqueiros e investidores, nacionais e estrangeiros, como também o eleitor pobre e conservador, que teme a ruptura da ordem, embora deseje a redução da desigualdade e pobreza. O lulismo representa uma nova orientação ideológica, marcada pela preferência por redução da desigualdade, mas com manutenção da estabilidade, algo que não é “nem de direita, nem de esquerda e nem de centro”.
Nosso desafio é desenvolver uma verdadeira alternativa política para a classe C, trabalhar na base dessa classe e de outras classes populares da sociedade brasileira, vivenciando e contribuindo para sistematizar suas pequenas experiências de luta, elevando sua consciência de classe. Esse processo não é imediato. É uma missão estratégica, de longo prazo, orientando essas classes no momento que decidirem lutar. Devemos urgentemente reorganizar a esquerda sob este marco, pois ela se encontra muitas vezes alheia a tal processo, sem saber como tratar adequadamente as transformações. Nossa disputa começa ao colocar a classe C em movimento como um setor da classe trabalhadora, fazê-la agir e pensar como parte substancial da classe trabalhadora e seu destino na luta política.
Um primeiro passo neste sentido seria entender que diante da enorme dificuldade do movimento sindical em organizar no espaço de trabalho este segmento crescente de trabalhadores, principalmente da classe C, o espaço em que milhões de trabalhadores no Brasil tem se organizado e lutado é o território, em especial na periferia e nas favelas das grandes cidades. A politização destes territórios é parte integrante do processo de politização da classe C. Nosso dever é saber transformar suas reivindicações em ações massivas, independentes do governo e seus correligionários. Isso só surgirá, entretanto, se retomarmos a velha lição de organização junto à base popular, em seu dia a dia, em lutas diárias e miúdas, em especial da classe C. Somente as grandes mobilizações, o estímulo a todas as formas de luta de massa por necessidades imediatas e o trabalho de base podem alterar nossa situação diante da nova dinâmica da luta de classes.