Sem as interpretações e enxertos de Slavoj Zizek e Laymert Garcia dos Santos esse texto seria impossível de ser feito.
Escrever sobre Dançando no escuro de Lars von Trier é uma atividade muito difícil. Quando se assiste ao filme se tem uma impressão de que ele delimita uma época-limite na produção cinematográfica. Seu poder vai além da caracterização de filme político, estético, musical ou aqueles que são feitos para simplesmente divertir seu público. Ele é um filme com grandes sínteses históricas. Ele propõe uma reformulação no ser do cinema. É o novo cinema utópico.
Antes de qualquer coisa, por que tal exaltação? Por que ele não pode ser enfileirado entre os filmes bons ou ruins como normalmente é feito ou, de forma simplória, discutido? Por que ele pode ter essa denominação de novo cinema utópico?
Escrever sobre Dançando no escuro de Lars von Trier é uma atividade muito difícil. Quando se assiste ao filme se tem uma impressão de que ele delimita uma época-limite na produção cinematográfica. Seu poder vai além da caracterização de filme político, estético, musical ou aqueles que são feitos para simplesmente divertir seu público. Ele é um filme com grandes sínteses históricas. Ele propõe uma reformulação no ser do cinema. É o novo cinema utópico.
Antes de qualquer coisa, por que tal exaltação? Por que ele não pode ser enfileirado entre os filmes bons ou ruins como normalmente é feito ou, de forma simplória, discutido? Por que ele pode ter essa denominação de novo cinema utópico?
A história do filme se passa nos EUA na década de 1960: Selma (Bjork), uma emigrante checa que trabalha numa tecelagem, está ficando cega por uma doença hereditária; ela faz horas-extras para guardar dinheiro para uma operação que irá impedir seu filho que sofra do mesmo mal. Seu amável vizinho, com quem ela divide segredos, rouba seu dinheiro; ela o mata, é condenada à morte e executada... Como ela consegue viver sob tantas penúrias? Suas paixões são o canto e os musicais: ela depois do trabalho participa de um grupo amador que ensaia A noviça rebelde e sua realidade monótona são continuadamente suspensas pelas músicas que ela imagina cantar. Essas músicas crescem organicamente a partir de sons ritmados de seu ambiente de trabalho (remetendo-nos as boas e velhas teorias marxistas do nascimento da música a partir do ritmo do trabalho), tornando-se cada vez mais enxutas, com acompanhamento orquestral decrescente, até que, na hora que ela caminha para sua execução, ouvimos apenas sua voz hesitante tentando acompanhar a melodia. A ambigüidade aqui é radical: ela celebra o poder mágico da música que nos permite sobreviver às realidades terríveis ou está condenando a própria música por ser uma fantasia escapista que nos faz suportar passivamente a realidade social?
Como Selma consegue fazer isso? Adotando uma posição fetichista em seu estado mais puro: existe um elemento intermediário que permite o sujeito suportar uma realidade miserável.
Talvez o verdadeiro segredo de Dançando no escuro seja que ele narra um caso de fetichismo feminino, invertendo a doxa psicanalítica clássica que opõe a histeria feminina à perversão masculina. Não é verdade que Selma pode suportar tudo porque ela tem seu fetiche – o canto – para se apegar o tempo todo?
Tal função da música tem sua mais alta expressão num acontecimento na Mina 29 do campo Vorkuta Gulag em 1953. Poucos meses após a morte de Stalin, eclodiram greves em campos de trabalho forçado por toda a Sibéria; as reinvidicações dos grevistas eram modestas e razoáveis: as libertações dos velhos e muito jovens, a proibição de disparos aleatórios por guardas nas torres de vigilância, etc. Um por um, os campos sucumbiram a ameaças e falsas promessas de Moscou, e apenas a Mina 29 em Vorkuta permanceu irredutível, cercada por duas divisões de tropas da NKVD apoiadas por tanques. Quando as tropas finalmente entraram pelo portão principal, viram os presos numa sólida falange, braços dados, a cantar. Após um breve momento de hesitação, as metralhadoras abriram fogo. Os mineiros mantiveram-se juntos e eretos, continuando a cantar de modo desafiador, os vivos mantendo os mortos de pé. Depois de aproximadamente um minuto, a realidade prevaleceu, e os cadáveres começaram a se amontoar no chão. No entanto, esse breve minuto em que o desafio dos grevistas parecia suspender as leis da natureza, transubstanciando seus corpos exaustos na aparência de um imortal Corpo coletivo a cantar, foi uma ocorrência do Sublime, em seu estado mais puro, o momento prolongado em que, de certo modo, o tempo parou.
E se arriscarmos incluir Dançando no escuro nessa série, vendo o canto de Selma não como um gesto escapista, mas como um gesto de heróica contestação? Além disso, e se tomarmos nota do fato de que, numa sociedade com atendimento de saúde universal, a condição de Selma não teria nem vindo ao caso?
Além disso, o filme tem o grande mérito de evitar efeitos melodramáticos onde os acontecimentos parecem clamar por eles. A cena-chave é a discussão entre Selma e seu vizinho que roubou seu dinheiro por desespero de que, se sua mulher descobrisse que ele estava falido, ela o deixaria. Então, quando Selma o questiona a respeito do crime (de modo calmo e digno, sem representações patéticas) o amável vizinho responde de forma calma e racional, admitindo tudo, e apresentando-lhe uma escolha: ou ele fica com o dinheiro ou ele prefere morrer. Essa cena é única em sua tensão radical: a crueldade que está acontecendo (a vítima a confrontar o criminoso que arruinou sua vida) é expressa na forma de um diálogo sinceramente aberto e compadecido entre dois amigos verdadeiros, ambos vítimas das circunstâncias, de modo que, quando Selma mata o ladrão, seu ato é consumado não em uma raiva descontolada, mas como um ato sensível de ajuda a um amigo, fazendo-nos lembrar a cena final de A medida de Brecht, quando três revolucionários levam a morte um jovem companheiro que falhou em sua tarefa – eliminação política como um ato de pietà.
O filme tem como grande propósito brincar com as impossibilidades que permeiam a vida dentro da sociedade capitalista. Lars von Trier nunca devia ser perdoado pelo jeito com que trata suas heroínas tanto em Dançando no escuro quanto em Ondas do destino.
Além de tudo isso, existem coisas substancias sobre a simbologia do filme, principalmente para nossos indeterminados dias. Ele nos comove por ver nele alguém que se sacrifica no presente para a geração futura. Aqui não está inserido o debate sobre a destruição do meio-ambiente? Somos nós capacitados de sacrificar nossos modos de vida baseados no desperdício para salvar gerações futuras? Essa é a questão fundamental tratada por Trier: Como lidar com a cegueira que progressivamente toma conta de nós? Como fazer com que nosso legado não seja uma herança negativa, mas a possibilidade de recuperação da visão? Como aceitar o sofrimento agora para que o outro seja salvo no futuro? Como saber morrer para libertar o outro da condição de aprisionamento? Como se salvar através da salvação do outro?
Bem, outro aspecto interessante é que Selma vive intensivamente o modo de produção capitalista tal como ele se põe e se repõe no cotidiano dos oprimidos. É altamente explorada na fábrica porém tem em contraposição a amizade, a solidariedade dos companheiros de trabalho, a oferta do amor, o grupo que ensaia o musical.
Além disso, o filme instaura pela trilha sonora e até o fim o som terá tanta importância quanto a imagem na concepção cinematográfica, o que por uma lado evidencia a importância da colaboração de Bjork na realidade, por outro atesta a sintonia fina que compartem quanto ao potencial artístico da tecnologia digital. Às cegas, Bjork e Trier exploram as possibilidades de um contracinema, ou melhor, um novo cinema utópico da classe trabalhadora capaz de apropriar-se dos equipamentos eletrônicos, dos gêneros do cinema americano a até mesmo do seu repertorio de imagens e sons para transmitir as gerações futuras condições de uma visão renovada.
A radicalidade do filme é o fato de ousar dizer sim. Quando todos acreditavam não ser mais possível fazer arte revolucionária, o cineasta propõe um cinema utópico, eminentemente político, de combate, justamente no terreno que o capitalismo de ponta mais deseja controlar: a esfera da tecnologia digital. Subvertendo eletronicamente íntimas relações que o trabalho na sociedade capitalista estabeleceu com meios de produção hollywoodianos, rompendo a monotonia da cadência, Trier mostrou que ainda há esperança.
01/11/07
5 comentários:
De fato, muito bom esse filme...voc� come�ou este
Blog agora???
Eu li o post anterior tamb�m(interessante por sinal)...grande coincid�ncia, estou pretendendo ler este livro,(sou estudante de Hist�ria)mas entrei no seu blog sem saber o que esperar.
Continue escrevendo... seus posts s�o interessantes.
Amor, nossa que massa o que vc escreveu! E eu AMO esse filme...
Passei para te encorajar a continuar a postar, vc tem um dom que n�o deve ser desperdi�ado!
TE AMO LINDO!
Cobaia!
Excelente qualidade dos textos, hein!
Bela análise desse filme tbm! Com certeza, é um filme que abrange uma série de fatores e discussões muito importantes!!
Continue com o blog que eu continuarei lendo hahahaha
adorei!
Beijo!!
A crueldade desse filme é marcante... Realmente é sobre uma impossibilidade de viver.
Il semble que vous soyez un expert dans ce domaine, vos remarques sont tres interessantes, merci.
- Daniel
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