As divergências na esquerda têm resultados
devastadores para a esquerda como um todo. Na maioria das vezes, a principal
divergência ocorre em torno do inimigo principal.
Na Europa, durante a Primeira Guerra
Mundial (1914-18), os trabalhadores e os partidos socialdemocratas tomaram as
nações como inimigos principais, ao invés de suas próprias burguesias,
esquecendo-se de que iriam lutar, na suposta nação inimiga, contra
trabalhadores e outros partidos socialdemocratas e de esquerda. Já nos anos
1930, na Alemanha os comunistas consideravam os socialdemocratas seus
principais inimigos, e estes achavam o mesmo dos comunistas, quando o
verdadeiro inimigo a ser combatido naquele momento era o nazismo. Existem
inúmeros outros exemplos na experiência histórica da esquerda, em todos os
países, inclusive no Brasil. Aqui, por exemplo, antes do golpe militar de 1964,
embora houvesse evidências de que ele estava sendo armado pela direita, várias
correntes de esquerda consideravam o governo Jango o inimigo principal. Diante
dos dois fatores que desestabilizam a correlação de forcas (a ação conspiratória
do grande capital internacional e a ameaça direta de invasão de tropas
norte-americanas) a esquerda ficou perdida e brigando, sem comando de ação que
resistisse ao golpe de forma eficaz. Mesmo durante a ditadura militar, foram
comuns as divisões internas nos grupos de esquerda, muitas vezes
considerando-se como inimigos, ao invés de unificar-se na luta contra a
ditadura.
Como vemos, é
possível dizer que as divergências de fundo existentes na esquerda derivam
principalmente da questão acerca do inimigo principal. No Brasil, essas
divergências da esquerda tomaram novos contornos com o governo federal dirigido
pelo PT no capitalismo recente. Podemos identificar pelo menos duas posições
que ajudam a construir um verdadeiro conflito político, o que poderia abrir
espaço para a ação da direita, se aproveitando dessa divergência da esquerda
brasileira acerca do inimigo principal a ser combatido. São duas formas de
sectarismo que se equivocam na questão do inimigo principal e que encontramos
provavelmente no interior de todas as organizações de esquerda, sejam partidos,
movimentos sociais ou sindicatos. A diferença entre as organizações de esquerda
poderia até mesmo ser encontrada pelo papel que esses dois sectarismos se
encontram no interior de suas organizações.
O primeiro sectarismo é o que costuma
ser denominado de esquerdismo, extrema-esquerda ou ultra-esquerda. Essa posição
costuma ser identificada como daqueles que consideram o governo Lula e, agora, o governo Dilma,
os inimigos principais. O governo dirigido pelo
PT seria uma traição ao projeto socialista anteriormente predominante no
PT. O caminho a seguir seria baseado nas lutas contra o governo e o PT. Essa esquerda considera que o fato do PT participar de um governo de
coalizão, que inclui também forças de centro e de direita, já é sinônimo de
traição às forças populares e socialistas, tornando-a incapaz de apontar algum
tipo de perspectiva socialista. Como traidores,
os partidos que formam o governo de coalizão são os inimigos principais a serem
derrotados. Sendo um “traidor”, o
PT teria assumido o neoliberalismo da social-democracia do PSDB para aplicar
fielmente a agenda da burguesia. Enfim, o raciocínio dessa parte da esquerda é
que o governo dirigido pelo PT é o melhor administrador
do neoliberalismo, porque além de mantê-lo e consolidá-lo, o fazia dividindo e
confundindo a esquerda, neutralizando a amplos setores do movimento de massas.
Normalmente as críticas dessa esquerda aos governos Lula e Dilma batem na tecla de que
ambos não fazem nada mais do que consolidar o capitalismo no Brasil. A diferença entre a
privatização anterior e a privatização dos governos petistas estaria em que
estes colocariam as empresas públicas como instrumento a favor dos interesses
privados. Para esses setores entre o governo FHC
e Lula/Dilma existe uma continuidade conservadora, tanto em seus aspectos
macroeconômicos e em suas opções de desenvolvimento quanto na continuidade das
reformas neoliberais exigidas pela lógica da acumulação de capital. O PT
continuaria diluído numa aliança de centro-direita, disputando a hegemonia da
direção do projeto burguês com setores de direita, enquanto não existiria no
cenário político uma classe trabalhadora e uma real alternativa de esquerda. Enfim,
o debate se resumiria a saber quem executa as medidas de consenso de acumulação
do capital.
Essa parte da esquerda costuma ser
cercada de inimigos por todos os lados, julga que a história resulta de sua
vontade, enche a boca de categorias teóricas e procura não misturar-se com
pobretariado. Acham que podem chegar a qualquer momento
e propor soluções próprias para momentos de grande tensão, acreditando que as
massas os seguirão, dependendo apenas de capacidade de convencimento.
Recusam-se a partir do nível real de aprendizado delas participando do processo
real, às vezes lento, de luta e descoberta de problemas e soluções. Por
fim, essa esquerda costuma culpar os
outros por sua própria incapacidade em apresentar uma real alternativa de esquerda, pretensamente capaz
de mobilizar a classe trabalhadora, mudar a correlação de forças, pressionar o
governo, remodelar as alianças e fazer com que estas correspondam aos
interesses de classe em disputa. Pelo excesso de voluntarismo nem sequer se
perguntam por que são incapazes de realizar essa missão, permitindo que as
massas sejam "manipuladas". Para eles,
tudo depende dos setores mais avançados, dos líderes, partidos e governos
"ajudarem" os setores mais atrasados a avançarem, interferindo em seu
nível de conscientização, organização e luta. E, quando líderes, partidos ou
governos não agem sobre as massas como pretendem, isso representa uma traição.
Ficam mais ligados nas disputas entre as cúpulas e desprezam o
trabalho de criar raízes fortes com as camadas populares, através de
organizações de base capazes de acompanhar e participar do dia-a-dia de luta daquelas
camadas. Talvez seja por isso que muitos destes sectários voluntaristas acreditam
que é o partido que faz revoluções. Desconsideram que o povo tem seu próprio ritmo de aprendizado e mobilização, e decide o
momento em que deve transformar suas reivindicações, aspirações e
descontentamentos em ações massivas, independentemente de governo, partidos e
lideranças. Desconsideram que só o povo
pobre e trabalhador, massivamente mobilizado, faz revoluções, independentemente
de haver ou não partidos revolucionários em seu seio. E esse povo só se joga no
movimento da revolução quando não pretende mais viver como até então e sente a
coragem que não tem mais nada a perder. Estes sinais só conseguem ser
percebidos por quem está entranhado na vida do dia a dia do povo. Ao que
parece, a única forma de combater esse sectarismo é se voltando de forma
efetiva para a base da sociedade, para as inúmeras formas miúdas de organização
e mobilização social, que aparentemente não têm efeito global, mas cujo
somatório tem, certamente, grande força acumulada.
O segundo tipo de sectarismo é quase o inverso
do primeiro e acontece em diversos setores da esquerda brasileira. Trata-se
daqueles que consideram que o inimigo principal é a “extrema-esquerda”. Costumam
ser aqueles que falam toda hora que a “extrema-esquerda” faz o jogo da direita e
que estranhamente possuem pouca resistência em fazer todo tipo de aliança com a
direita e as elites reacionárias (em partidos como o PSD, PMDB ou PP) para derrotar a “extrema-esquerda”. É uma
contradição importante que se encontra também no centro das divergências da
esquerda brasileira. Isso parece se intensificar já que está ficando claro que,
por mais ainda
que tenha vitórias, o PSDB-DEM vem se enfraquecendo e mostra sua tendência de
fragilização e esgotamento enquanto oposição de centro-direita ao governo Lula/Dilma.
É uma “esquerda” que faz parte de um centro meio pantanoso, ora se aproxima de
um lado, ora de outro, ficando no mais das vezes como centro-esquerda e flertando
com a direita contra a retórica “extrema-esquerda”. Esse processo está formando
claramente um bloco multipartidário completamente desideologizado, um limbo onde
todos os gatos são pardos, e que hoje compõem a base petista, misturando
partidos com passado de esquerda até com a extrema-direita, com a direita mais
bárbara, o que tende a se fissurar, por mais que ainda seja muito cedo pra
saber o que vai acontecer.
É
difícil saber qual sectarismo é pior para a esquerda. Acredito que, para usar o
jargão, ambos fazem o jogo da direita. Nem a “extrema-esquerda” e nem a “esquerda
fisiológica” são alternativas para a recomposição das mobilizações das forças
populares no próximo período. Por um lado a “extrema-esquerda” tende a se
perder no voluntarismo sendo incapaz
de criar alternativas políticas fortes o suficiente para impor-se no cenário de
então, ou de criar o instrumento para o movimento de massas que tanto pretende.
Por outro lado, as vacilações da “esquerda fisiológica” abrem espaço ao oportunismo
parlamentar e a reorganização da direita e extrema-direita. Lembremos que a
ante-sala do extremismo fascista em diversos países não teve como causa as ações
da “extrema-esquerda”, mas as vacilações da esquerda, como no caso da social-democracia
alemã, dos socialistas italianos, da República Espanhola e no Chile de Allende.
A moderação da esquerda é o que abre as portas de um regime de terror do grande
capital. Enfim, como educar aqueles que consideram o governo dirigido pelo PT
como inimigo principal e aqueles apoiadores do governo Lula e Dilma que, em
sentido contrário, enxergam no PSDB e DEM (bem como outras organizações de
extrema-direita) possíveis aliados e tomam outros setores de esquerda como
inimigos principais? Todos dão uma demonstração clara de que não aprenderam com
a experiência histórica. O pior de tudo é que as teorias e o estudo dessas
experiências históricas a respeito parecem pouco valer para mudar essa
situação. Sem dúvida ainda será necessário que as
correntes de esquerda tenham que passar novamente pela prática de quebrar a
cabeça para definir contra quem realmente devemos lutar.