terça-feira, 23 de outubro de 2007

Leituras da Vida Cotidiana - entre o espetáculo e a alienação

Lançado na França em 1967, A Sociedade do Espetáculo tornou-se inicialmente livro de culto da ala mais extremista do Maio de 68, em Paris; hoje é um clássico em muitos países. Em um prefácio de 1982, o autor sustentava com orgulho que o seu livro não necessitava de nenhuma correção.

O “espetáculo” de que fala Debord vai muito além da onipresença dos meios de comunicação de massa, que representam somente o seu aspecto mais visível e mais superficial. Em 221 brilhantes teses de concisão aforística e com múltiplas alusões ocultas a autores conhecidos, Debord explica que o espetáculo é uma forma de sociedade em que a vida real é pobre e fragmentária, e os indivíduos são obrigados a contemplar e a consumir passivamente as imagens de tudo o que lhes falta em sua existência real.

Na sociedade do espetáculo o sujeito se torna um espectador passivo de um mundo de aparências que se impõe como evidencia de sua superficialidade social. O espetáculo é o ultimo estagio da separação do sujeito e o produto de seu trabalho. O espetáculo reordena, como um desfile de imagens, o que merece atenção ou admiração.

A realidade torna-se uma imagem, e as imagens tornam-se realidade; a unidade que falta à vida, recupera-se no plano da imagem. Enquanto a primeira fase do domínio da economia sobre a vida caracterizava-se pela notória degradação do ser em ter, no espetáculo chegou-se ao reinado soberano do aparecer. As relações entre os homens já não são mediadas apenas pelas coisas, como no fetichismo da mercadoria de que Marx falou, mas diretamente pelas imagens.

A imagem é uma abstração do real, e o seu predomínio, isto é, o espetáculo, significa um “tornar-se abstrato” do mundo. A abstração generalizada, porém, é uma conseqüência da sociedade capitalista da mercadoria, da qual o espetáculo é a forma mais desenvolvida. A mercadoria se baseia no valor de troca, em que todas as qualidades concretas do objeto são anuladas em favor da quantidade abstrata de dinheiro que este representa. No espetáculo, a economia, de meio que era, transformou-se em fim, a que os homens submetem-se totalmente, e a alienação social alcançou o seu ápice: o espetáculo é uma verdadeira religião terrena e material, em que o homem se crê governado por algo que, na realidade, ele próprio criou. Só existe aquilo que aparece. Debord diz que“O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediada por imagens”. O espetáculo representa o modo de vida dominante pois é um reflexo dos modos de produzir e consumir. O mundo se torna uma relação de imagens que se tornam à realidade. A autoridade se desliza para a celebridade, que tem vários estilos e modos de vida em constante transformação permitindo uma rápida mudança sem um trabalho profundo na construção da identidade do indivíduo.

Anselm Jappe escreve que “O espetáculo cria um presente eterno em que a repetição contínua das mesmas pseudonovidades faz desaparecer toda memória histórica (...) a fim de que nenhum acontecimento possa mais ser compreendido em suas causas e em suas conseqüências”. Existe assim, na sociedade do espetáculo, uma compressão do tempo e do espaço para melhor se adequar às necessidades econômicas de tempo de giro das mercadorias. O que importa para as mercadorias é sua constante renovação. A insatisfação investe no que é descartável porque tal investimento garante a sua própria reprodução. O descartável e o imediato são os únicos prazeres possíveis na sociedade do espetáculo.

Esse imediatismo da imagem como relação social também se transforma no imediatismo das relações humanas pois a constante movimentação de mercadorias da sociedade capitalista transborda para a constante movimentação da vida social.

Maria Rita Kehl escreve que “O reconhecimento social depende inteiramente da visibilidade. O principio de diferenciação se da pela imagem. Dependemos do espetáculo para confirmar que existimos e para nos orientar no meio a nossos semelhantes dos quais nos isolamos”.

Segundo Debord existe um aperfeiçoamento da alienação na sociedade do espetáculo: os sujeitos não se apóiam mais sobre suas faculdade de julgamento, resolução e senso moral. Tampouco se sustentam sobre os laços que as ligam a uma comunidade com base em experiências compartilhadas. Se toda experiência é mediada pelo espetáculo, cuja produção esta fora do alcance da experiência mesma, e se o espetáculo desacostuma as pessoas a subjetividade, elas estão totalmente à mercê dele. Essa subjetividade que se consome por imagens é um modo de preencher o vazio da vida interior da qual se abriu mão pela força de pertencer à massa nos termos propostos pelo espetáculo. Por aí se explica o interesse enorme nos reality shows.

A saturação de imagens dispensa os consumidores e espectadores da responsabilidade pela dimensão singular do indivíduo. É a mercantilização do inconsciente a fazer da reprodução de uma esfera em que mercadorias criam subjetividades. Fredric Jamenson chegou a afirmar que o capitalismo colonizou o inconsciente. Na publicidade isso é visto de forma mais clara já que, hoje, a publicidade não serve apenas para convencer o possível comprador de que um carro é melhor que um outro já que junto com esses carros se vendem sonhos, ideiais, atitudes e valores para que os objetos da publicidade sejam sinônimos de felicidade, de um ideal de vida que essas mercadorias supostamente representam. A realidade diluída em imagens leva o sujeito a perder confiança em seu discernimento e a crer no que diz o espetáculo. O verdadeiro não é mais aquilo que é, mas sim o que é visto. A moral do espetáculo não é mais “ser” ou “ter”, mas sim “ser” ou “parecer”.
O espetáculo tem a força máxima de poder: ela cria realidades para nós vivermos.
23/Outubro/2007