segunda-feira, 30 de março de 2009

Notas filosóficas sobre Badiou - parte 1

A Filosofia, para Alain Badiou, é a teoria geral do evento, do impossível, do Real. Enquanto pensamento, a teoria do evento alveja a determinação de um trans-ser. Badiou acredita que neste ponto sua delimitação com Deleuze.

"A questão é a seguinte: uma vez admitido que o evento é aquilo com que ficamos certos de que nem tudo é matematizável, haverá ou não, que concluir que o múltiplo é intrinsecamente heterogêneo? Porque pensar que o evento é o ponto de ruptura em relação ao ser – aquilo que chamo de estrutura do trans-ser – não dispensa de pensar o próprio ser do evento. O ser do trans-ser. Requererá este ser do evento uma teoria do múltiplo heterogênea à que explica o ser enquanto ser? É, no meu entender, a posição de Deleuze. Para pensar a dobragem que o evento faz, é necessária uma teoria originalmente dúplice das multiplicidades, teoria herdeira de Bergson. As multiplicidades extensivas e numéricas devem ser distinguidas das multiplicidades intensivas ou qualitativas. Um evento é sempre a distância entre duas multiplicidades heterogêneas. Aquilo que acontece faz uma dobragem, se me permitem, do estender extesivo para o contínuo intensivo".

Enquanto isso, para Badiou, a multiplicidade é axiomaticamente homogênea. Por isso o evento perpassa que o ser constituindo uma ruptura da lei das multiplicidades estendidas sendo homogêneo a esta lei. Axiomaticamente, um evento não é nada mais que um conjunto ou uma multiplicidade, mas o seu surgimento, a sua suplementação subtrai um dos axiomas do múltiplo, nomeadamente o axioma de fundação – e evento é propriamente um múltiplo não fundado, um puro suplemente aleatório da situação-múltiplo para a qual ele é evento.

Badiou pergunta: “será a verdade o que vem ao ser ou o que desdobra o ser?”. Fico tentado a propor que essa questão é similar à diferença entre o Um e o Dois. Como escreve Zizek, “Dois não é simplesmente Um mais Um, já que Dois representa a própria mudança/passagem de Um para Dois (Visão em paralaxe, 2008, p. 63). A lacuna do Um consigo mesmo é a diferença mínima entre Um e Dois. A paralaxe, que só possível pela existência dessa lacuna dialética, é, dessa forma, eminentemente negativa. Aqui a diferença entre evento e o Ato: enquanto o evento é a cisão dentro da ordem do ser entre a pura multiplicidade dos seres e sua representação, o Ato é puramente negativo que suspende a Ética comportando necessariamente um excesso próprio do Ato.

Para Badiou o evento assume a forma do encontro ao acaso, à maneira de um lançar de dados. “O pensamento está condicionado por uma puta disjunção eventual e é por isso que produz uma Lógica implacável. Está Lógica provém de o pensamento se expor ao admitir o Ato, ao ser fiel ao evento. Esta fidelidade, por sua vez, dispõe uma verdade que não é necessária a ninguém menos ao ser Sujeito. A Necessidade é apenas um resultado”. Badiou corrobora com Kierkegaard e Derrida enfatizando que o Ato concretiza-se sob a Loucura que admite o Ato e, voluntariamente, retoma a Ideia enquanto Ideia. Nesse sentido o Ato é o movimento absurdo devolvido ao Infinito, sendo ele finalmente fixo.

domingo, 8 de março de 2009

Notas sobre o conto “Casa Tomada” de Júlio Cortasár

Aquilo que ambos não sabiam e que os forçaram traumaticamente a sair da casa não é o Real? Não podemos interpretar o conto como a volta traumática das recordações das bisavós, do avô paterno e dos pais diante da falta de resolução do relacionamento entre os irmão e irmão? Não foi o retorno do impossível “simples e silencioso matrimônio de irmãos” que parecia ser o fim necessário para a genealogia fundada pelos bisavôs na casa? Ou ainda, essa aparição do Real não é efeito direto da inexistência de metalinguagem entre o masculino e o feminino? Não é esse Real exatamente o distúrbio inevitável da relação impossível entre os dois?
Fui pelo corredor até chegar à porta de carvalho, que estava entreaberta, e dava a volta ao cotovelo que levava à cozinha quando ouvi alguma coisa na sala de jantar ou na biblioteca. O som vinha impreciso e surdo, como o tombar de uma cadeira sobre tapete ou um abafado murmúrio de conversação. E o ouvi, também, ao mesmo tempo ou um segundo depois, no fundo do corredor que vinha daquelas peças até a porta.
Depois de ferver água na cozinha e trazer a badeja de mate para Irene diz solenemente: “tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte dos fundos”. Sob o implícito conhecimento de ambos do “eles” que tomaram a parte dos fundos da casa, tiveram que viver no lado que sobrou. O que possibilitaria tal calmaria? Diante da mudança que a priori foi incomoda já que os livros franceses estavam na biblioteca e algumas peças de roupa de Irene estavam na parte tomada da casa, as coisas voltaram ao normal: “eu andava um pouco desorientado por causa dos livros, mas, para não afligir minha irmã, comecei a examinar a coleção de selos de papai, e isso me serviu para matar o tempo. Nós nos divertíamos muito, cada qual em suas coisas, quase sempre reunidos no quarto de Irene, que era mais confortável”. Quando os ruídos voltaram, ambos não precisavam nem olhar para iniciar uma nova corrida contra o inominável. “Os ruídos ficavam mais fortes, mas sempre abafados, às nossas costas. Fechei de um golpe a porta e ficamos no saguão. Não se ouvia nada agora”. O espectro do som não é a causa do desejo transgeracional de seus bisavôs perturbando a aparente normalidade da relação entre os dois? Será que se olhassem diretamente para o que produziu o som veriam alguma coisa no nível da realidade? O que o conto deixa implícito é que não eram pessoas reais que entraram na casa e sim uma paradoxal materialização do desejo de reprodução da família e da casa – e como o desejo não tem substância não poderia passar de um som (ou um olhar) que simboliza a falta central da castração. Essa aparição espectral dependeu diretamente da fantasia que ambos compartilhavam – os ruídos foram o encontro com o Real. Infelizmente o Ato em sua dimensão ética não foi feito por ambos já que foram envolvidos pela potencia desse espectro e jogados para fora da casa.

segunda-feira, 2 de março de 2009

De quem é a crise companheiro? Perguntas que podem encomodar

No estabilishment midiático se anuncia que um capitalismo puro sem as interveções do Estado é impossível. A doce idiotia liberal sempre chega a conclusões que assuntam! Será que a lição marxiana (de mais de 150 anos atrás diga-se de passagem)de que o capital é materialmente dependente do Estado para se reproduzir ampliadamente não cairia muito bem como um pressuposto para se articular alternativas hoje? De mais quanto tempo a esquerda vai precisar para cair essa ficha, de que o capital não consegue sobreviver nem por 1 minuto sem a "segurança" dada pelo Estado? Se a busca da esquerda é, diante da crise, buscar formas para regular o capital financeiro e toda sua farra, onde está a crítica que aponta o processo de financeirização como um resposta lógica do processo de desenvolvimento do capitalimo global? Busca-se um novo papel para as instituições financeiras internacionais mas a pergunta que fica é: a esquerda não está inerentemente dentro do horizonte do capital impossibilitando a abertura radical para além do capital dessa forma? Não é óbvio que o debate dito de "esquerda" não está baseado num debate da "técnica" economica e não sobre os antagonismos estruturais do capital como relação social global? Não é óbvio que a crise demonstra que a relação entre as classes é assimétrico já que a velocidade da queda é maior para a classe-que-vive-do-trabalho? Não será esse o momento histórico para que a esquerda se redima de sua posição defensiva que tomou durante o século XX e começe a pensar alternativas ao próprio capital global numa ofensiva socialista que coloque em pauta tanto a crise estrutural do metabolismo global do capital quanto suas formas ideológicas par excellence como o multiculturalismo tolerante da democracia liberal? Será que não é tempo de parar de traduzir os conflitos antagonicos de classe em nível global em simples expressões culturais que seriam remediadas por mais tolerancia e respeito? Se essas perguntas não podem nem ser colocadas em pauta diante das "políticas de despoliticação pós-modernas", será que o devir capitalista de sua próxima etapa de desenvolvimento não será muito mais drástica e radical do que a atual conhecida por sua mercantilização da vida social e da experiência do sujeito num nível ainda inimagináveis que pode envolver a biogenética e a colonização expressa da natureza e do inconsciente?